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O PATINHO FEIO QUE VIROU ESCRITOR

O PATINHO FEIO QUE VIROU ESCRITOR (Resenha para o Jornal Rascunho)
Em “Por que você dança quando anda?”, o djibutiano Abdourahman A. Waberi conta sua história com um misto de autopiedade e triunfalismo
MARCOS ALVITO
RIO DE JANEIRO – RJ
# EDIÇÃO 263, MARÇO DE 2022
Era uma vez um consagrado escritor nascido em um pequeno país africano. Vivendo em Paris, ele tinha o saboroso encargo de levar a filha pequena à escola. Certo dia a criança lhe faz a pergunta que dá título ao livro: “Papai, por que você dança quando anda?”. Anos depois, quando a menininha de cinco anos já se transformou em uma mulher, o escritor resolve responder na forma de um livro construído como uma conversa explicativa.
Sendo assim, o autor conta sua história desde o nascimento até o momento em que faz a universidade em Paris, em seguida se tornando professor e escritor. De certa maneira, é uma espécie de conto de fadas semelhante ao Patinho Feio. É uma autoficção assumida, mas Abdourahman A. Waberi escolhe dar um outro nome ao protagonista. Aden nasceu no mesmo ano, no mesmo lugar, na mesma classe social e enfrenta os mesmos problemas físicos e psicológicos do autor.
Ele foi o primogênito, mas desapontou as expectativas de seus pais: era uma criança frágil, enfermiça. Era ignorado pelo pai e rejeitado pela mãe, que o entregava aos cuidados de outras mulheres. Isso o leva a perguntar: “Por que mamãe me detesta tanto”. Na rua, a situação não era melhor; costumavam chamá-lo de Magricela ou de Aborto. Na escola, sofre uma perseguição violenta de um bando de meninos, é humilhado e agredido.
Mas tudo sempre pode piorar. Aos sete anos, ele tem poliomielite e sua perna direita fica para sempre “boba”, dificultando a interação com as outras crianças e trazendo mais um pesado estigma. Por fim, ele ganha um irmão, saudável e vigoroso, logo abraçado com alegria pelos pais. Tempos depois, há o assustador episódio da circuncisão, operada por um açougueiro.
Aden só tem dois refúgios: a avó Cochise, cega e contadora de histórias. Carregava consigo o passado e a sabedoria dos nômades do deserto. Mas punia Aden à base de bengaladas. No dizer do menino, ela era: “Meu amor e meu terror também”.
A segunda rota de fuga é a escola, incluindo a paixão infantil por Madame Annick, a professora francesa de cabelos louros, “pernas sólidas” e “panturrilhas bem desenhadas”. É com ela que o menino “fraco e febril” aprende a ler e, em seguida, descobre a literatura e o alcance universal das histórias. Mas também fica impregnado pela ideia de que “os franceses da França são pessoas felizes que dançam a noite inteira ao clarão da lua”.
Passa a ler de tudo e não cessa de buscar novos livros, revistas, histórias em quadrinhos. Torna-se um excelente aluno e uma segunda professora, Madame Ellul, estimula o menino a escrever. Aos poucos vai ficando conhecido e conquista a proteção dos valentões, para quem escreve redações.
Eles tiram notas razoáveis, mas só quem passa para o único liceu existente no país é ele, Aden. Daí para frente, passamos do tom vitimista ao tom triunfalista. No liceu, conhece Baudelaire, Poe, Maupassant, mas quem mais o impressiona é Sócrates. Dali vai para a França, estudar na universidade: “Nunca dormi tão bem quanto na semana em que cheguei à França”.
Problemas narrativos
Assim que desembarca na França, Aden tem um quarto somente para ele pela primeira vez na vida. Ali ele fica, refugiado com seus pensamentos, suas leituras e seus escritos. Esse é o maior problema do livro: uma narrativa enclausurada no ego do autor-protagonista. Além de Aden, alguém que parece amadurecer de uma hora para outra, não há um só personagem bem desenvolvido. Tanto o pai quanto a mãe, importantes em um relato que trata da infância, são delineados sem maior profundidade. Só interessam no que diz respeito aos sentimentos que tinham ou deixavam de ter pelo menino. O irmão caçula é apenas mencionado, com raiva. As duas professoras francesas que o ajudam são louvadas em prosa e verso, mas não parecem pessoas de carne e osso. Resta a avó. Seu caráter é ao menos esboçado, é verdade. Entretanto, o que significava ela ter sido nômade? Quais eram as características dessa cultura nômade? O que nos leva a uma segunda questão.
É possível contar a vida de um personagem sem dedicar o mínimo de atenção ao cenário em que ele se move? Ficamos sabendo que o Djibuti era uma colônia francesa, a última a se tornar independente, em 1977, ano em que Aden tinha doze anos. Mas qual o interesse que a França tinha no Djibuti? Como era o domínio francês? En passant, o narrador fala que uma empregada da casa, Ladane, se suicidou e dá um possível motivo: “Teria sido estuprada em alguma viela obscura por uma horda de legionários bêbados?”.
Ficamos sabendo, rapidamente, que os nativos não podiam entrar no bairro francês a não ser com salvos-condutos, portados somente para os que lá trabalhavam como serviçais. Em nenhum momento o autor problematiza o seu deslumbramento com a cultura francesa. E, ainda mais inacreditável: jamais fala da questão racial.
Se o propósito dele era escrever algo que levasse sua filha a entender seus anos de formação, creio que a moça, depois de ler o livro, terá mais lacunas do que respostas. Mas este ainda não é o maior problema.
Metáforas pobres
Há quem pense que a principal função da metáfora é embelezar o texto. Também é, sem dúvida. Mas a metáfora é, sobretudo, uma forma de tomar o leitor ou leitora pela mão e dar um salto na direção de uma emoção ou ideia, uma espécie de atalho poético. Por isso ela deve ser inesperada e original. Só assim ela causa o efeito esperado: ela é capaz de criar um clima, estabelecer um tom. Segundo Hans Ulrich Gumbrecht, em seu Atmosfera, ambiência, stimmung — Sobre um potencial oculto da literatura, para os leitores, entender ou decifrar o texto estão em segundo plano; a questão é quanto o texto consegue causar o efeito de estar presente em uma outra realidade. Para este fim, não há nada mais propício do que uma boa metáfora.
Infelizmente, acho impossível qualificar assim as metáforas batidas e rasteiras de que se vale o autor de Por que você dança quando anda?. Leitor, leitora, me diga o que acha das seguintes imagens:
No nosso bairro, a morte tinha um rosto familiar
Silêncio sepulcral
Silêncio profundo
Beleza rústica
Pontapés raivosos
Meu olhar penetrante
O chão desapareceu sob meus pés
Ela não está mais aqui e tudo é cinza e triste
Soltei minhas amarras
Naquele ritmo, corria o risco de ir ladeira abaixo, pelo mesmo caminho que levara Askar para o fundo do poço
Quando a gente chega ao fundo do poço é bom parar. E, para não dizerem que estou de birra, gostei desta, que não é nenhuma maravilha mas tem um tiquinho de originalidade: “Minha dor era uma ilha deserta (…) Ela me pertencia”.
A história é interessante? Sem dúvida. Mas é contada a partir de uma perspectiva restrita, pobre e de uma forma pouco atenta ao uso das palavras. Como diz o autor a certa altura: “As palavras são importantes. Tão importantes quanto a água, a comida ou o ar que você respira”.
Principalmente para um escritor.
POR QUE VOCÊ DANÇA QUANDO ANDA?
Abdourahman A. Waberi
Trad.: José Almino
Tabla
182 págs.
ABDOURAHMAN A. WABERI
Nasceu em 1965, no Djibuti (África). Aos vinte anos, foi para Paris estudar literatura inglesa. É professor de literatura francesa e de criação literária na Universidade de Washington. Publicou doze romances, dois livros de poesia e um de ensaios.