Tá faltando lado B no futebol brasileiro
Cara leitora, caro leitor, responda rápido: qual é o esporte mais praticado nas escolas brasileiras? Acertou quem disse… o handebol. É isso mesmo. Curiosamente, o esporte da bolinha pesada quicando, não está nem entre os dez mais esportes praticados no Brasil, perdendo até para o skate (7º lugar) e o surf (8º lugar). Mas esta penetração no ambiente escolar rende bons frutos: a seleção brasileira que foi campeã nos Jogos Pan-americanos veio praticamente toda de jogadores de times escolares.
Claro que o futebol é ainda o esporte mais popular em geral, pouco mais de 30 milhões de praticantes. Mas é bom lembrar que o vôlei já tem a metade desse número, com mais de 15,3 milhões. O futsal, quem diria, está apenas em 5º lugar, com 10 milhões de adeptos.
Já houve quem dissesse que no Brasil vivemos uma monocultura esportiva. Não é o brasileiro goste mais de futebol do que o inglês, o uruguaio, o argentino ou o alemão, sem falar no português, no italiano, no grego… É que no Brasil o futebol tem um papel muito importante do ponto de vista da construção da nossa identidade nacional, juntamente com o samba. Algo que foi fruto de um processo histórico e, portanto, sujeito à mudança. Deitados em berço esplêndido, os dirigentes desperdiçam o potencial do nosso esporte mais querido.
O lado A do futebol brasileiro vai mal, todo mundo sabe: clubes endividados até o pescoço, campeonato brasileiro de baixo nível técnico, seleção brasileira em 7º lugar no ranking da FIFA, cada vez menos gente nos estádios, campeões mundiais em brigas de torcidas organizadas, ingressos caros impedindo a ida do povão às arenas que foram construídas com seu dinheiro… Enquanto isso: a CBF nada em dinheiro e a televisão, verdadeira dona e gestora do nosso futebol, tendo lucros cada vez maiores com a venda de anúncios de um espetáculo que lhe rende os maiores índices de audiência.
Isso é o lado A. Mas e o lado B? Ou seja, o futebol não-profissional. O futebol praticado em toda a parte: penitenciárias (o Comando Vermelho surgiu de uma equipe de detentos na Ilha Grande), nas praias, nas praças, parques, fábricas, campinhos alugados, no que ainda existe da várzea, nas favelas, nas ruas de terra ou asfalto, conjuntos habitacionais, condomínios de luxo, clubes sociais sem futebol profissional, escolas e universidades. Peraí, eu disse escolas e universidades? Fiquemos com as escolas, já que os universitários já estão em uma idade mais avançada, a escola é mais básica, tem uma base de alunos bem maior, teoricamente abarca todas as crianças brasileiras.
Tem muito futebol em “escolinha”, com clima competitivo desde muito cedo, o que é condenado por psicólogxs e educadorxs, mas totalmente comum no Brasil todo. Ambientes em que muitas vezes as crianças são literalmente exploradas, submetidas com uma frequência acima do recomendável a exercícios extenuantes, sem falar no stress dos campeonatos desde a mais tenra idade. Ali o futebol, com honrosas exceções, já é muito mais guerra do que brincadeira. Os meninos, porque aqui a diferença entre os gêneros é brutal, são tratados como matéria-prima, como possível mercadoria a ser vendida dentro de alguns anos. Muitas vezes com a complacência de pais que sonham com um futuro melhor para toda a família. Os casos de maus tratos, de desleixo, de condições insalubres, de assédio sexual, são inúmeros. A “escolinha” é a infernal sala de “entrada” no lado A do futebol. Coloque aspas no “entrada” porque ela não chega nem para 1%. Milhares de crianças e adolescentes são “descartados” todos os anos sem que lhes tenha sido proporcionada uma educação de qualidade que permita a inserção de forma digna no mercado de trabalho. Vão engrossar as fileiras dos desempregados, trabalhadores informais, temporários. Quando não do tráfico e das atividades criminosas.
Enquanto isso, nas escolas de verdade, por piores que sejam, o futebol é totalmente desperdiçado. Não só como esporte a ser praticado em um ambiente supervisionado por educadores mais preocupados com o desenvolvimento sadio da criança em todos os níveis, sem obsessão pela formação de atletas de alto rendimento, o que ocorre naturalmente, como demonstra o exemplo do handebol.
O futebol é sobretudo desperdiçado como elemento motor da pedagogia, da sala de aula. Aulas de Biologia tratando do corpo humano através do estudo da movimentação corporal dos jogadores ou da sua alimentação visando maior rendimento. O professxr de Matemática ensinando as quatro operações usando o exemplo do futebol: “se Pelé fez 1281 gols na sua carreira e Cristiano Ronaldo fez (até o dia de hoje), 501, quantos gols a mais fez o genial atacante do Santos?”; “Se Pelé fez 1281 gols em 1363 partidas, quantos gols em média ele fazia por partida?” e por aí vai… Aulas de Português com lindas crônicas de Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Paulo Mendes Campos e muitos outros craques da pena que eram apaixonados pela bola que já foi de couro. Aulas de Química usando o teste anti-doping como exemplo. De Física sobre a força, a velocidade e a trajetória de uma bola chutada por Messi. Enfim, os exemplos seriam infinitos. Infelizmente, foram todos criados pela minha imaginação, ao invés de relatos de experiências concretas, que decerto existem, mas são gotas no oceano.
O futebol é desperdiçado também como meio de tentar diminuir as desigualdades de gênero, de tentar desnaturalizar a ideia de que é jogo “pra macho”. Em muitas escolas, talvez na maioria, só os meninos jogam, impedindo ou expulsando as meninas, num eterno ciclo vicioso: “elas não podem jogar, logo não aprendem e como não aprendem não podem jogar (conosco meninos)”. O futebol também poderia ser uma poderosa arma contra a homofobia, ao invés de ser o esporte mais homofóbico do mundo: até no Brasil jogadores de outros esportes já revelaram ser homossexuais, no vôlei, por exemplo. Quem fez ou pode fazer isso no futebol brasileiro? Uma simples “suspeita” – palavra que aliás já diz tudo, leva a um massacre nos estádios e na mídia, como o caso Richarliysson comprova tristemente. Ora, imaginem só uma liga só de times gays, masculinos e femininos, disputando um campeonato. Ou então a disseminação de campeonatos com times mistos. Tudo isso seria uma contribuição poderosa e possível, que não implica em gasto de recursos, apenas na chamada “vontade política”, que prefiro chamar de “vontade pedagógica”.
Uma breve comparação entre o papel da CBF e da Football Association na Inglaterra, permite ver o problema com toda a clareza. A CBF só cuida do lado A do nosso futebol, aquele que dá grana, muita grana. A Football Association cuida do futebol inglês como um todo, de times amadores e profissionais, de futebol para pessoas com deficiência, de futebol em todos os níveis, idades, gêneros. Entrando no site (www.thefa.com), descobre-se que a FA oferece vários cursos visando a igualdade entre meninos e meninas, cursos sobre como cuidar e proteger crianças, sobre como estimular e treinar pessoas com deficiência e por aí vai. Enquanto isso, a CBF oferece um curso para técnico profissional de futebol ao custo de mais de dez mil reais, sem incluir a acomodação e a alimentação em Teresópolis, totalmente por conta do aluno ou aluna. Dá para entender a diferença?
De um lado, em um país com a liga profissional mais forte do mundo, mesmo com inúmeros problemas, o futebol é plenamente explorado em seu potencial pedagógico e cidadão. Em outro, que gosta de se pensar como “O País do Futebol”, o lado A esquece quem sem um lado B forte é o próprio futuro do lado A que está em risco. A paixão indiscutível do brasileiro e da brasileira pelo futebol só é aproveitada pelas grandes corporações e entidades futebolísticas, gera apenas lucro a um custo humano altíssimo. Deixando, com o perdão da expressão, o lado B de lado, perdemos uma chance de ouro de usar o amor ao futebol para fazer do Brasil um país com uma melhor formação escolar e cidadã das nossas crianças. Tremendo gol contra.