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The ball is round, Capítulo 1: A Pré-História do Futebol

 

The ball is round, Capítulo 1: A Pré-História do Futebol

Marcos Alvito

(da série Leituras para pensar o futebol)

Conforme anunciamos na coluna da semana passada, começamos hoje a resumir, capítulo a capítulo, o livro The ball is round: a Global History of Football (A bola é redonda: uma História Global do Futebol) do inglês David Goldblatt.

 

O capítulo 1 chama-se Chasing Shadows: the Prehistory of Football (Perseguindo sombras: a Pré-História do futebol). Ele começa examinando o cuju, jogo amplamente praticado na Dinastia Han (206 a.C. a 221 d.C.), cujo nome pode ser traduzido como chute-bola. O jogo provavelmente foi praticado antes, mas somente sob a Dinastia Han é que foi formalizado e organizado como um esporte. A bola consistia numa esfera de couro costurada e recheada com pele ou penas. Confrontavam-se dois times em um campo com dois gols marcados nas extremidades. Os chutes na bola eram importantes, mas ela também era carregada com as mãos e era permitido derrubar os adversários com força. O jogo era benquisto na Corte Imperial mas era sobretudo praticado no Exército onde era ao mesmo tempo uma forma de treino e de recreação. Nas dinastias subsequentes o jogo continuou a ser praticado mas mudou a forma da bola, que passou a ser oca, o que facilitava o controle mas dificultava o jogo mais físico. De qualquer forma, o cuju irá desaparecer em meados do século XVII, durante a Dinastia Ming (1368-1644).

Ao que parece, os chineses acabaram levando o cuju para as terras alcançadas por eles militar ou comercialmente. Um indício disso é o sepak raga, jogo praticado na Malásia quatrocentos anos atrás e que pode ser descrito como uma mistura de futebol e voleibol. Embora os japoneses não gostem de admitir, também o kemari é derivado da China. Começou a ser praticado no século XII, sobretudo dentre a nobreza. Quatro árvores, preferencialmente pinheiros, demarcavam o campo, que era pequeno, um quadrado com seis a sete metros de largura. Oito jogadores participavam, dois em cada árvore. A bola era oca, leve e feita de pele de cervo, geralmente tingida de branco ou amarelo. O cortesão com o status mais alto chutava a bola para o alto e o objetivo era mantê-la no ar o mais tempo possível. Às vezes havia a contagem formal dos chutes e o árbitro poderia conceder pontos extras para chutes impressionantes ou com mais estilo. O respeito à etiqueta do jogo e às suas tradições era bastante enfatizado. O kemari tornou-se um passatempo importante junto à elite japonesa nos séculos XII e XIII. Até mesmo imperadores participavam. Escolas e clubes de kemari floresceram, cada uma com seu treinamento, técnicas e regras. Até mesmo a cor das meias era regulada de acordo com o status social e a habilidade no jogo. O jogo continuou a estar presente na arte e na literatura japonesa até o século XIX. Mas sucumbiu ao processo de modernização iniciado com a Restauração Meiji (1868) e ao fim da Segunda Guerra Mundial estava praticamente extinto.

Pode-se dizer então que o cuju chinês e o kemari japonês são ancestrais do futebol? Negativo, pois não há nenhuma continuidade entre eles e o futebol enquanto esporte, surgido com a modernidade.

Embora jogos competitivos com bola tenham existido em quase todas as culturas do mundo antigo, em nenhum lugar eles foram tão centrais quanto na Mesoamérica, na região onde hoje estão o México, a Guatemala, Belize e Honduras. Durante 3 mil anos, do surgimento dos Olmecas no México Central até a queda dos Astecas diante dos conquistadores espanhóis em 1521, todas as sociedades da Mesoamérica jogavam com bola. Achados arqueológicos encontraram mais de 1.500 campos e há que pensar em muitos mais que foram perdidos para a floresta ou destruídos pela ocupação espanhola. Além disso temos uma riqueza extraordinária de figurinos de cerâmica, relevos, entalhes e estátuas que retratam o jogo e os seus rituais. No Popul Vuh, um texto mitológico central para a cultura maia que dominou a região de 800 a 1400, boa parte da história consiste em uma partida entre dois habilidosos gêmeos e os deuses. Os gêmeos, que eram muito bons de bola, vencem as divindades e com isso conseguem libertar seu pai e seu tio, que estavam presos no subterrâneo depois de perderem uma partida.

Por terem borracha, as bolas da Mesoamérica quicavam. Segundo a arqueologia, bolas de borracha começaram a ser feitas ali por volta de 1.500 a.C. Mas foi somente com o Império Olmeca, a partir de 1.200 a.C. que um jogo com regras foi criado. O campo era parte de um espaço público ou um templo. Era normalmente retangular, com altas paredes brancas e frequentemente decorado com murais de colorido brilhante. Nos maiores devia haver até uma espécie de arquibancada. A bola de borracha, cujo tamanho variava entre uma bola de beisebol e uma bola pequena da basquete, movia-se de um lado para o outro através da linha central entre dois competidores ou dois times. Os jogadores usavam proteções, daí se depreendendo que a bola era atirada ou rebatida com força, usando-se os braços, ombros, quadris e até mesmo as nádegas. O objetivo era similar ao do vôlei de hoje: manter a bola no ar na sua metade ou restringir ao máximo o número de quiques antes de enviá-la para a outra parte do campo. Ao longo do tempo a forma do jogo variou, houve momentos e locais em que foi jogado com bastões, por exemplo. Entre os Astecas, o jogo era conhecido pelo nome de tchatali.

Na Mesoamérica, o jogo era praticado por todas as classes sociais. O significado do jogo relacionava-se aos complexos sistemas astronômicos e ao calendário que organizavam estas sociedades. A divindade protetora do jogo era Xolotl que aparece no céu noturno como Vênus e os jogadores aparecem nos murais como representando outros corpos cósmicos. O jogo era geralmente acompanhado ou precedido por apresentações teatrais e havia um animado mercado de apostas. Inimigos vencidos na guerra primeiramente jogavam antes de terem suas cabeças cortadas ou seus corações arrancados. Os espanhóis proibiram o jogo. O que nem era necessário diante do genocídio dos povos da Mesoamérica através de doenças e do processo de escravização. Mesmo assim, no noroeste da província de Sinaloa, no México, uma variante do jogo, chamada de ulama, ainda sobrevive.

Por fim o autor chega à Europa, berço efetivo do futebol tal qual o conhecemos. A Antiguidade Clássica não desconhecia jogos com bola, mas eles não desfrutavam de grande importância. Os gregos conheciam vários tipos de jogos com bola, como o episkyros e a phainida, mas nenhum deles chegou a ser significativo o bastante para constar dos Jogos Olímpicos, por exemplo. Eram apenas divertimentos com bola. Os romanos já apreciavam mais os jogos com bola, tendo inclusive construído quadras fechadas para o expulsum ludere, de certa forma semelhante ao handebol. Havia também pila e trigon. E sobretudo o harpastum, jogado em campo aberto e que parece ter sido uma tipo de rugby mais violento permitindo chutes, agarrões e contato físico no estilo da época. Feito o cuju, o harpastum parece ter sido um jogo mais popular no Exército e utilizado como parte do treinamento militar. Mas não era um jogo que atraísse espectadores como as corridas de carro ou as lutas de gladiadores praticados no Coliseu diante de 50 mil espectadores. Pode-se dizer que não tinha grande importância para a sociedade romana.

O futebol, ou ao menos sua primeira forma, irá nascer no noroeste da Europa, na opinião do autor sobretudo junto às sociedades célticas, que de alguma forma mantiveram algum grau de autonomia diante da cultura dominante na Idade Média. Dentre eles durante toda a Idade Média foram praticados jogos de larga escala, envolvendo dois grupos a disputar uma bola a ser levada de um lugar para o outro, sem muitas regras ou restrições. Normalmente os confrontos envolviam dois distritos ou duas aldeias, com a bola sendo disputada pelos campos abertos que os separavam. Às vezes os adversários também podiam ser bairros diferentes, grupos de idade distintos ou até casados e solteiros. Na Cornualha havia o hurling e no sul de Gales o knappen. No início da Idade Média o futebol era tão popular e difundido que diversos reis emitiram éditos tentando banir, controlar ou restringir a prática. Era muito violento, com contusões e ferimentos abundantes e mortes relativamente frequentes. Dentre as cidades que tentaram proibir o jogo estão algumas que hoje são verdadeiros templos do futebol: Halifax, Leicester, Manchester e Liverpool. As regras variavam de local para local, as versões eram muitas. De qualquer maneira, tanto no campo quanto na cidade, o esporte era adorado pelas camadas populares.

No século XVIII a Inglaterra havia desenvolvido uma forte cultura esportiva. A caça era predileta das classes proprietárias. Formas embrionárias de cricket, tênis e golfe também eram praticadas pela elite. As corridas de cavalo e o boxe geravam muitas apostas. A primeira revolução industrial iria colocar a Inglaterra no centro da economia mundial. Estavam dadas as condições para a consolidação do futebol como esporte e para a sua difusão por todo o planeta.

O autor também assinala uma exceção a este domínio das ilhas britânicas e de áreas célticas no que tange aos esportes com bola na Europa. Trata-se do calcio, jogado em Florença desde a Idade Média e que persistiu até ser banido em meados do século XVIII. Hoje, depois de ser revivido pelos fascistas em 1930, sobrevive como um espetáculo cívico e turístico. Na Idade Média era jogado somente na cidade e de maneira bastante formal com atenção às regras e à etiqueta da corte.

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