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The ball is round, Capítulo 4 – Pérfida Albion: resistindo ao surgimento do futebol global

The ball is round, Capítulo 4 – Pérfida Albion: resistindo ao surgimento do futebol global

Marcos Alvito

(da série Leituras para pensar o futebol)

Goldblatt abre o capítulo chamando atenção para um possível engano: achar que o triunfo do futebol como o esporte mais popular do mundo era inevitável. Porque houve resistências ao seu avanço. E por irônico que isso possa parecer, muito dessa resistência veio exatamente de regiões controladas pelo Império Britânico ou que haviam feito parte do mesmo. Ele afirma que a recepção ao futebol esteve ligada diretamente à atitude diante do poderio britânico. No sul da Irlanda, por exemplo o futebol era desprezado juntamente com outros esportes ingleses, substituídos por esportes que representavam a independência cultural e o nacionalismo, o futebol gaélico e o hurling. Nos Estados Unidos, sequiosos de afirmar sua independência e originalidade, os esportes britânicos foram deixados de lado em benefício de variações e inovações norte-americanas: futebol americano, beisebol, basquetebol e hóquei no gelo. Logo estes esportes também se difundiram por outros países competindo com os esportes ingleses.

No Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia e na África do Sul havia um sentimento complexo e dúbio em relação à Inglaterra. Por um lado, pertencer ao império britânico era fonte de segurança e força, ao sentirem-se psicologica e culturalmente ligados à metrópole e ao Velho Mundo. Por outro, estavam tão distantes e eram tão diferentes da Inglaterra que buscavam algo que permitisse afirmar uma identidade alternativa e distinta. Resultado: em nenhuma dessas quatro sociedades o futebol irá alcançar algo além de um status marginal em suas culturas esportivas modernas.

No Canadá a divergência em relação à Inglaterra foi radical. Até que o futebol, juntamente com o críquete, floresceu nas escolas e universidades de elite de meados do século XIX. Mas não passou disso. O verão logo foi preenchido pelo beisebol importado dos Estados Unidos e, para as mulheres, pelo Lacrosse, um jogo originalmente dos índios americanos que foi formalizado pelos canadenses brancos. Mas o que realmente incendiou o coração dos canadenses foi o hóquei no gelo. Era o esporte perfeito para o clima canadense, podendo ser jogado por todos durante os longos invernos em que os campos de grama estavam impraticáveis. Melhor de tudo: os canadenses eram bons no jogo e era um esporte tão bacana que logo os norte-americanos o importaram. O futebol não tinha nenhuma chance.

A Nova Zelândia conheceu diversas modalidades de futebol no último quartel do século XIX: futebol, futebol gaélico, futebol australiano, rugby e rugby league (uma variação do rugby que já era profissional no final do século XIX). À altura da Primeira Grande Guerra a parada já estava decidida em favor do rugby. Na verdade, já em 1870, já havia clubes de rugby por todo o país e o esporte dominava nas escolas de elite e nas universidade. O futebol sobrevivia apenas em algumas comunidades industriais. A hegemonia do rugby foi afirmada e garantida, sobretudo, pelas vitórias dos All Blacks. Em 1905 eles fizeram uma excursão à Inglaterra em que ganharam 32 partidas e só perderam uma para Gales, graças a um try cuja legalidade está sendo debatida até hoje.

No caso da África do Sul, o rugby também serviu para afirmar a identidade nacional a partir das vitórias dos Springboks (seleção nacional) sobre Gales e Irlanda em 1906. Mas ao contrário da Nova Zelândia, o rugby não era o esporte de toda a nação e sim da elite branca, sobretudo dos fazendeiros africâneres. Como o futebol era jogado pelos soldados britânicos, de classe social baixa e que ainda por cima tinham o hábito de jogar também com os negros, acrescido do fato de que na Inglaterra era cada vez mais o jogo da classe operária, tudo isso levou os brancos sul-africanos a rejeitarem o esporte. O futebol vai permanecer um esporte marginal, jogado por trabalhadores brancos, imigrantes e crescentemente pelos negros. Quando se forma uma classe trabalhadora negra em meados do século XX, o futebol avança e se torna um instrumento de organização social, de expressão cultural e de resistência às autoridades.

O caso australiano é diferente de todos. Por um lado, o críquete se tornou uma paixão nacional. Há mais de um século que a série anual disputada contra a Inglaterra (Ashes series) representa a complexa relação com a antiga metrópole. O rugby também se tornou extremamente popular e a a Austrália é uma força mundial tanto no rugby quanto no rugby league. Ao mesmo tempo, a Austrália abraçou as culturas e os esportes praianos do Pacífico Sul, sobretudo o surf. Por fim, em parte da Austrália triunfou o chamado futebol australiano, cujas regras foram estabelecidas em 1863.

II.

A primeira década do século XX foi um momento crucial para o fortalecimento da nação australiana. Embora os australianos ainda se vissem como uma espécie de entreposto leal do Império Britânico e como essencialmente uma sociedade britânica, havia um sentimento crescente de independência e de nacionalismo. Esta relação paradoxal de distância e proximidade, identificação e oposição entre a Austrália e a Inglaterra ficava bem encarnada na Ashes series de críquete. A fantástica vitória australiana em 1882, na casa da rival, cimentou a relação entre a seleção nacional de críquete  e o emergente sentimento de identidade nacional.

Em segundo lugar no coração dos australianos vinha o futebol australiano, esporte de inverno por excelência. A federação deste esporte soube promovê-lo com o lema: “uma bandeira, um destino, um jogo de futebol”. Para acentuar, era jogado somente com bolas fabricadas na Austrália e com uma bandeira australiana tremulando em cada estádio. Goldblatt se pergunta: por que a mais anglófila das sociedades inventou a sua própria versão do futebol ao invés de adotar a versão da metrópole?

Uma das explicações pode estar na questão do momento em que o futebol chegou à Austrália, ainda em meados do século XIX, antes de ter uma regra geral, o que só viria com a Football Association em 1863. Sendo assim, já se jogava futebol na Austrália adotando regras diferentes, desde o futebol das multidões de origem medieval até as diversas variantes das public schools. O futebol australiano nasceu deste caldo de cultura, mas em 1859 estabeleceu suas regras próprias, quatro anos antes do futebol propriamente dito. A modalidade, ao contrário do futebol, permite agarrar e conduzir a bola e suas regras geraram um jogo rápido e fluente. Suas regras eram claras e simples. Resultado: já na década de 1860 tinha um público considerável.

A paixão pelo futebol australiano aumentou quando criaram uma competição tipo mata-mata, a Challenge Cup, em 1862, nove anos antes da FA Cup ser criada na Inglaterra. De início o jogo era amador, mas logo começaram os pagamentos por debaixo do pano. Em uma sociedade mais aberta e menos presa a velhos ideais como a Inglaterra, a adoção do profissionalismo foi mais tranquila e rápida. Na década de 1880 já havia uma liga profissional em Melbourne e que logo se espalhou pelo restante do país e até para a Nova Zelândia. Ou seja, novamente a Austrália estava na frente de desenvolvimentos que só posteriormente seriam adotados na Inglaterra, onde o futebol se tornou oficialmente profissional em 1888, como já vimos.

Na Austrália o futebol permaneceu muito tempo amador e sem grande penetração. A federação nacional de futebol só foi criada em 1923. Já era tarde demais. Em todo o país o futebol era o segundo ou terceiro esporte de acordo com a região. O esporte só seria energizado no período entreguerras e logo após a Segunda Grande Guerra com a chegada de uma nova onda de imigrantes da Grécia, Itália, Croácia e outras partes da Europa. Para os recém-chegados, o futebol estabelecia uma conexão com seus países de origem e não com a Inglaterra. Mesmo assim, o status do futebol não mudou e ele só se torna um esporte respeitado na Austrália quando estas novas comunidades de imigrantes começam a ser assimiladas pela “Austrália branca” no último quartel do século XX.

III.

Como é que o futebol, questiona Goldblatt, que se tornou o esporte principal em todos os continentes, foi tão mal nos Estados Unidos? Não foi por falta de experiências pioneiras. Ainda no século XVII colonos britânicos e seus descendentes já jogavam o futebol das multidões em aldeias e cidades da Nova Inglaterra e da Virgínia, a tal ponto que em 1657 as autoridades de Boston já editavam uma lei proibindo o jogo no centro da cidade. Apesar disso, o esporte era jogado em uma sociedade completamente diferente e que sempre foi marcada por seu particularismo.

Os Estados Unidos não tinham uma classe operária forte e organizada e esta era a base do futebol, em termos de participantes, jogadores e público. O beisebol e o futebol americano não eram esportes predominantemente operários. Outro elemento: nos Estados Unidos era o mercado que dava as cartas, sem uma organização central no âmbito do esporte e da educação. No caso do futebol, isso levou a uma fragmentação e a uma orientação a partir do mercado que não beneficiaram o jogo. O esporte também acabou sendo excluído das instituições educacionais da elite.

No início do século XIX, as principais universidades e faculdades norte-americanas copiavam o modelo das public schools, com suas crueldades, desigualdades e hierarquias de poder. Da mesma forma praticavam o futebol com diversas regras. E ele era um esporte importante em Harvard, por exemplo, onde havia a “Bloody Monday” (Segunda-feira sangrenta), quando calouros e alunos do segundo ano se enfrentavam. Antes de 1840 também se jogava futebol em Dartmouth, Yale, Princeton e Columbia. Mas só no interior das escolas, nunca entre elas.

Em 1869 começaram a jogar entre si embora a regra ainda fosse mista, algo entre o rugby e o futebol, havia uma preferência pelo jogo com os pés. Mas em Harvard, na mesma década, o jogo havia sido banido por conta da sua violência e do seu potencial anárquico. É reintroduzido em Harvard na década de 1870 com uma regra que privilegiava a bola agarrada com as mãos e carregada. Como Harvard era a universidade com maior prestígio, mais exclusiva e elitista, ela acabou influenciando as outras a adotarem a sua variante de futebol, afastada do nosso futebol e mais próxima do que é hoje o futebol americano. Logo a associação encarregada de gerir os jogos entre as universidades e faculdades irá criar uma regra a partir das regra de Harvard, onde os elementos essenciais do futebol americano já estarão presentes.

Já o futebol devidamente codificado pela FA em 1863 vai chegar aos Estados Unidos quando a cultura esportiva já havia solidificado o beisebol como o esporte de verão e clamava para si o título de esporte nacional americano. O inverno já estava tomado pelo futebol americano. Para piorar, na década de 1890 é inventado um outro esporte barato, simples e flexível: o basquetebol. Mesmo assim, acredita o autor, o esporte ainda teve uma chance de se estabelecer nos Estados Unidos nas três primeiras décadas do século XX, mas ela foi desperdiçada porque seu desenvolvimento caiu em mãos erradas.

A primeira tentativa de criar uma liga de futebol profissional nos Estados Unidos foi extremamente desajeitada, para dizer o mínimo. Seis proprietários de times de beisebol decidiram criar, em 1894, a American League of Professional Football Clubs (ALFC), somente para usar seus estádios inativos entre duas temporadas. Ao invés de marcar os jogos para os fins de semana, marcavam para dias de semana. Sugeriram ao público que os times de futebol seriam treinados pela equipe de beisebol e que os astros do bastão e das luvas grossas iriam entrar em campo. Em três meses a experiência terminou.

Exlcluído das universidades e tendo fracassado no mercado, o futebol sobrevivia nas ruas e nas vizinhanças onde havia uma nova onda de imigrantes ingleses e escoceses, bem como em comunidades irlandesas, alemãs, holandesas, escandinavas e do sul da Europa. Em grandes cidades como Nova York, Boston, Chicago, Filadélfia e Pitisburgo, comunidades de imigrantes criaram ilhas étnicas e futebolísticas. Saint Louis era uma cidade onde o futebol tinha uma liga vibrante. Mas os problemas de organização eram permanentes. Por exemplo, antes da Primeira Guerra Mundial havia duas federações nacionais querendo representar o futebol nos Estados Unidos. Ambas enviaram solicitações para serem aceitas na FIFA. A entidade respondeu que elas deveriam se fundir e promover o jogo. Elas até se fundiram, mas a associação resultante não soube criar uma competição atraente que pudesse ao menos compensar a falta de uma liga.

Em 1921, pela primeira vez, é criada uma liga de forma competente: a American Soccer League (ASL). Ela sobrevive doze anos, um período que Goldblatt considera a época de ouro do futebol nos Estados Unidos, que culmina com a chegada da seleção à semifinal da Copa de 1930 no Uruguai. A liga começou com oito times e depois cresceu. Em sua maioria as equipes eram do nordeste dos Estados Unidos. Havia boa cobertura da imprensa e no rádio, com até algumas transmissões de jogos. A liga era popular em cidades menores e nos mercados de onde vinham as equipes. O público era considerável e gerava dinheiro suficiente para atrair jogadores profissionais das ilhas britânicas e de outros locais. Eram comuns excursões de times europeus, como o Hakoah Viena, time vienense judaico que fora campeão austríaco em 1925 e que atraíu um público de 46 mil pessoas para vê-lo jogar contra seleção da liga. Os salários eram tão bom que o time inteiro do Hakoah ficou nos Estados Unidos para jogar na ASL.

O colapso da liga veio a partir de uma luta fratricida entre a ASL e a federação nacional. A ASL queria que a copa da federação fosse disputada depois do término do campeonato da liga, para evitar coincidência de datas e não dispersar a atenção do público. A federação não aceita. Alguns clubes da ASL concordam com a federação, saem da liga e criam uma liga rival. Não havia público para isso. Ademais, vem a crise da Bolsa em 1929 seguida de uma feroz depressão, afetando o público dos jogos. Em 1933 a liga estava terminada.

IV.

O destino quis que o futebol chegasse à Irlanda exatamente no momento em que uma vasta oposição ao domínio britânico e aos senhores britânico-irlandeses estava sendo mobilizada. O esporte e a política tornar-se-iam inseparáveis. E a constante da política seria uma luta entre as forças do imperialismo e do nacionalismo. O futebol seria associado ao imperialismo. E os jogos gaélicos, como vieram a ser conhecidos, ao nacionalismo.

Na década de 1870 o futebol começou a ser jogado por regimentos do exército britânico, por comunidades predominantemente mas não exclusivamente protestantes do norte, especialmente em Belfast e em algumas instituições educacionais em Dublin. Belfast, uma cidade-porto industrial com classe trabalhadora, sua popularidade logo é estabelecida e reforçada pelas conexões da cidade com centros importantes do futebol no oeste da Escócia, leia-se Glasgow e sua fortíssima cultura futebolística como vimos no capítulo passado. Já na década de 1880 é criada a Irish Football Association, baseada em Belfast. A IFA logo organiza a Copa da Irlanda em 1881, da qual participavam inclusive times compostos de soldados ingleses. Em 1890 é criada uma liga.

Enquanto isso, havia uma onda crescente de manifestações contra a presença do esporte britânico e da dominação britânica, sempre colocados lado a lado. Alegava-se que os esportes nacionais irlandeses haviam sido suprimidos pela dominação britânica. Goldblatt aponta que, na verdade, o declínio destes esportes havia ocorrido por conta do despovamento massivo da população rural, da migração e do deslocamento que se seguiram à Grande Fome mais do que a qualquer programa ativo de repressão cultural levado a cabo pelos britânicos. Os nacionalistas argumentavam que o insidioso impacto da cultura britânica só poderia ser enfrentado propriamente pela redescoberta e modernização da cultura irlandesa autêntica e indígena. Enfim, Goldblatt não diz mas eu digo, mais uma “invenção da tradição” como diria Hobsbawm.

Seja lá como for, a Igreja Católica, crescentemente nacionalista, bem como a oposição no Parlamento, a Liga da Terra – que lutava pelos direitos dos camponeses e a mais radical Fraternidade Republicana Irlandesa, todos eles se unem para apoiar a criação da Gaelic Athletic Association em 1884. Ironicamente, era uma organização esportiva bem nos moldes vitorianos e suas ações lembram a Football Association: codificar e organizar jogos antes existentes. Até o nacionalismo irlandês da GAA era semelhante ao valor atribuído pelos ingleses ao esporte com a ideia da Cristandade Muscular, por exemplo. Primeiramente a GAA codifica as regras do hurling, um jogo de bola e bastão cuja origem era inquestionavelmente irlandesa, ao contrário de outros.

A GAA fez mais do que meramente preservar, codificar, inventar e patrocinar os jogos irlandeses e a cultura irlandesa. Ela também pensou e implantou uma série de regras visando excluir e marginalizar o esporte britânico, além de desafiar o domínio da Inglaterra. Nenhum esporte britânico poderia ser jogado em campos da GAA. A organização estava fechada a soldados do exército britânico ou das forças irlandesas de apoio aos britânicos. Qualquer membro do GAA que participasse ou assistisse a esportes britânicos seria expulso. A GAA foi muito bem sucedida na sua primeira década.

Todavia, se a força da GAA residia na sua relação com a política e com o nacionalismo irlandês, isto também se revelou o seu calcanhar de Aquiles. As autoridades britânicas passaram a vigiar a organização, infiltrando sua polícia secreta. Parnell, líder da oposição nacionalista no Parlamento, é acusado de ter um caso com uma mulher casada e o escândalo o incapacita politicamente já que estavamos no período vitoriano. A GAA se divide: uns apoiam Parnell, outros são contrários a ele. Uma ala mais radical acaba dominando a GAA, levando inclusive a uma campanha por parte da Igreja Católica, o que leva à incorporação também de nacionalistas mais moderados.

De qualquer forma, a associação entre esportes irlandeses e a nação irlandesa estava bem estabelecida. O bastão de hurling se tornara um símbolo da liberdade irlandesa, como se com ele fosse se afastar a dominação britânica. No início do século XX as finais do futebol gaélico em setembro atraíam até 80 mil espectadores, que além de assistir à partida participavam de uma série de rituais patrióticos. Para se ter uma medida de comparação, à mesma época a final da Copa da Inglaterra atraía mais alguns milhares, mas a Inglaterra de então tinha uma população dez vezes maior do que a população da Irlanda.

A politização de boa parte dos componentes do GAA fez com muitos deles se juntassem a movimentos radicais dispostos a pegar em armas contra o domínio britânico, o que desembocou em um levante em 1916, duramente reprimido, levando à prisão inclusive de muitos jogadores de futebol gaélico. A resposta ao levante e a brutalidade da repressão britânica acabou por incendiar o apoio popular à causa da independência da Irlanda. Logo começa a guerra de independência contra a Inglaterra e a consequência para o futebol é deixa de haver contato entre os clubes do norte e do sul da Irlanda. A chegada de uma seleção irlandesa a uma copa do mundo iria demorar setenta anos, só então sendo possível ao futebol encontrar um lugar no coração de uma nova Irlanda e de uma nova identidade irlandesa.

V.

O futebol era jogado esporadicamente nos portos e nas maiores cidades da Índia desde a metade do século XIX, por marinheiros britânicos, soldados e, antes da sua dissolução, por funcionários e homens da Companhia das Índias Orientais. Assim como o poder britânico, o futebol na Índia era concentrado em Calcutá até o começo do século XX. A cidade era um enorme entreposto comercial, o coração do estado colonial e o epicentro da primeira onda de industrialização da Índia. Em 1854 já há registro do primeiro jogo de futebol, entre o Calcutta Club of Civilians e o the Gentlemen of Barrackpore. Calcutta FC, o primeiro clube, se estabelece em 1872, mas ao que parece pretendiam jogar rugby. Como havia pouco interesse, mudaram para o futebol em 1894. Na década de 1890 já havia uma liga em Calcutá e em 1893 é formada a Indian Football Association (IFA). O papel principal na introdução do futebol na Índia deve ser atribuído às tropas do exército britânico, que serviam durante longos e tediosos períodos. Foram eles que realmente difundiram e popularizaram o jogo. Soldados formavam times de regimentos e jogavam em várias cidades. Logo foram criadas competições. A Durand Cup, jogada pela primeira vez em 1888 é a terceira competição de futebol mais antiga (só perde para a Copa da Inglaterra e para a Copa da Escócia). Mas em nenhuma dessas competições havia um indiano jogando.

O futebol servia como meio de se distanciar dos nativos e de manter os laços com a terra natal para os britânicos. Daí a exclusão dos indianos. Mas isto não podia se manter durante muito tempo. A partir dos levantes de 1857-8, os britânicos entenderam a necessidade de cortejar as casas reais e as elites indianas para obter seu apoio. Em troca da sua submissão política e da sua lealdade, os príncipes indianos eram convidados a se tornarem cavalheiros britânicos honorários. Segundo Lord Curzon, vice-rei da Índia no final do XIX, Deveriam aprender a língua inglesa e familiarizar-se com os costumes, literatura, ciência, modos de pensamento, padrões de verdade e honra e… com esportes másculos e jogos.

Logo a elite indiana abraça o british way of life, inclusive nos esportes, apesar de alguma resistência inicial por motivos religiosos. Inicialmente, as competições de ingleses e de indianos eram separadas, mas logo se cria uma copa em que jogam uns contra os outros. Mohum Bagan, um clube criado em Calcutá em 1889, foi o primeiro a desafiar o domínio britânico no futebol. Em 1909, participando de uma competição antes fechada aos times indianos, o clube chega à final, mas perde para um time de soldados. Dois anos depois, em 1911, o Mohum Bagan novamente vai à final, contra outro time de soldados, o East Yorkshire Regiment. Multidões se dirigem de trem para o estádio. Diante de 60 mil pessoas o Muhum Bagan vence de dois a um, depois de estar perdendo de dois a zero até cinco minutos antes do fim da partida. Uma virada sensacional.

Um jornal indiano, o Nayak, comenta após a vitória:

“Indianos podem competir com britânicos em todos os campos: arte e ciência, profissões especializadas, altas funções do serviço público… Só faltava aos indianos bater os ingleses neste esporte particularmente britânico, o futebol. … Cada indiano se alegra e se orgulha em saber que estes bengalis comedores de arroz, doentes de malária e descalços levaram a melhor sobre John Bull comedor de bife, hercúleo e        calçado com botas.”

Mas mesmo depois de ter demonstrado seu valor, os times indianos ainda experimentavam muitas limitações por parte dos britânicos. Apenas dois deles podiam participar da Calcutta Cup e nenhum indiano podia participar da direção da Indian Football Association. No começo da década de 1930 os clubes indianos se revoltam e ameaçam boicotar a Calcutta Cup e criar uma federação de futebol alternativa. Os ingleses cedem, permitindo a participação de clubes indianos em todas as competições e a entrada de indianos na direção da IFA.

Ao que parecia, o futebol caminhava para se tornar o esporte mais popular da Índia. Mas não foi o que aconteceu. Goldblatt explica isso da seguinte forma:

“Em uma nação que permanecia dividida pelas hierarquias do sistema de castas, o críquete se mostrava mais afeito às distinções do que o universalismo do futebol. De qualquer forma, o futebol já tinha se tornado profundamente entrelaçado às identidades comunais e conflitos do subcontinente; o futebol era muito polarizado e muito conflituoso para servir de metáfora esportiva da nação – um argumento surgido a partir das ferozes rivalidades comunitárias e regionais das décadas de 1950 e 1960.”

A Índia preferiu representar e testar a si própria contra a pérfida Albion (Inglaterra) no críquete.