The ball is round, Capítulo 5: O grande jogo e o império informal: a difusão internacional do futebol, 1870-1914 – parte A
I.
Inglaterra e esporte já eram sinônimos em toda a Europa por volta de 1860. Mais do que isso: na Inglaterra não faltava quem achasse que o esporte era o diferencial que tornava os ingleses superiores, como o diretor da Harrow School:
“a hegemonia inglesa baseia-se na saúde e na têmpera trazidas pelo esporte… a energia, a perseverança, o bom temperamento, o auto-controle, a disciplina, a cooperação, o espírito coletivo, que levam ao sucesso no críquete e no futebol… estas são as verdadeiras qualidades que fazem vencer na paz e na guerra.”
Por todo o mundo, o futebol foi levado por trabalhadores, soldados, marinheiros e empregados das ferrovias britânicas, que jogaram as primeiras peladas vistas até então em lugares tão distantes quanto Roterdã, Copenhagen, Odessa, Rio de Janeiro, Lima e Buenos Aires. Qualquer lugar servia: campo para desfile militar, ao lado das ferrovias, em descampados, campos de críquete… Mas, na verdade, o futebol vai ser abraçado inicialmente pelas elites destes países e não pela classe trabalhadora. Antes da Primeira Guerra Mundial, o futebol se transformou no esporte das elites da Europa e América Latina. O jogo também fez suas primeiras aparições em partes da África e da Ásia mais ligadas à Europa. Os primeiros clubes nativos de futebol foram formados pelas elites no Egito, na Argélia e na África do Sul antes de 1914. O jogo irá se desenvolver normalmente através de uma parceria entre as elites locais e os técnicos do Império britânico informal.
Nos cinquenta anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, os britânicos estavam em toda a parte. Os homens da Marinha Mercante britânica atravessavam todos os oceanos e em cada porto que paravam havia sido formada uma comunidade britânica de comerciantes, empresários, varejistas e especuladores. Esses circuitos de comércio criavam um outro Império britânico, economicamente falando, que alcançava a China, a América do Sul, o México e na Europa ia de Lisboa a Constantinopla. Além do comércio, os britânicos exportavam capital, estabelecendo bancos, investindo em ferrovias, infraestrutura e fábricas. Se não havia mão de obra qualificada ou tecnologia, exportavam também técnicos, técnicas e máquinas. Como no caso da construção de toda a rede de ferrovias da América Latina.
Embora seu propósito fosse primordialmente econômico, esse império informal não girava somente em torno de dinheiro: como a Inglaterra representava a modernidade, as elites, seja da Europa, seja da América do Sul, demandavam a presença de professores, escolas e filosofias educacionais britânicas. Associada a um rápido processo de industrialização, a uma possante armada e ao desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação como o telégrafo, a uma sociedade em um processo dinâmico de transformação econômica e social, a Inglaterra significava riqueza, poder e modernidade. O que todos queriam imitar.
É claro que lado a lado com a atração, a anglofilia, também havia a reação, a anglofobia, principalmente entre as forças do nacionalismo. Uma revista de ginástica italiana apontava em 1906:
“eles se vestem, comem, bebem e xingam em Inglês… só jogam futebol para parecerem ingleses e para poderem utilizar um vocabulário exótico. Durante algum tempo isto foi considerado na moda e um sinal de bom gosto. Afortunadamente, agora todos reconhecem o quanto esta atitude é grotesca.”
Só que a anglofilia era uma onda tão forte que normalmente abafava estas vozes dissidentes. E abraçar a Inglaterra e seu modo de vida significava abraçar o esporte.
Os principais agentes desta diáspora esportiva foram as elites expatriadas de britânicos que preenchiam os postos educacionais e econômicos do império informal, além dos que apareciam por ali como viajantes ou aventureiros. Colônias britânicas bem estabelecidas em São Paulo, Rio, Lima, Buenos Aires, Porto e Lisboa enviavam seus filhos para serem educados na Grã-Bretanha. Ali chegando eles adquiriam um gosto pelo esporte tão insaciável que criavam clubes esportivos no seu retorno. A eles veio se juntar uma nova onda de imigrantes britânicos no final do século, voltados para o comércio, negócios e bancos que se dirigiram à Escandinávia, Itália, Suíça, França, Rússia e cidades do Império Austro-Húngaro. Embora houvesse filhos de famílias aristocráticas e burguesas, havia uma predominância de old boys (ex-alunos das public schools, escolas de elite) e de formados em Oxford ou Cambridge. Ou seja, a nata. Além deles, havia uma nova classe de técnicos especializados altamente educados, particularmente engenheiros, gerentes fabris, técnicos ferroviários e professores enviados para a Bélgica, a Rússia, Espanha, Alemanha e México. Todos eles desembarcavam com a moda e a paixão do esporte.
O futebol, de 1860 a 1880, era apenas mais um dos esportes que eram jogados e assistidos pela primeira vez nas terras do império informal. Mas afora parte da elite holandesa, que preferiu o críquete e no sudoeste da França, onde o rugby triunfou, foi o futebol que capturou a imaginação.
Os pioneiros do futebol eram primordialmente homens, embora haja alguns indícios de futebol feminino na Inglaterra, França, Holanda, Rússia e Suécia, normalmente de jogos isolados e esporádicos. Normalmente estes homens eram citadinos, sempre endinheirados e normalmente com bastante escolaridade. Normalmente o setor das jovens elites na Europa e na América do Sul que se interessava pelo futebol era constituído pela porção anglófila e normalmente liberal dos aristocratas e das classes médias das cidades. Estudantes de escolas britânicas ou, o que era ainda mais valorizado, que haviam estudado na Inglaterra, estavam entre os primeiros entusiastas. Em segundo lugar vinham homens de negócios que travavam contato regular com o comércio britânico ou até mesmo viajavam para a Inglaterra a negócios. Médicos, advogados, professores, engenheiros, todos os que viam na Inglaterra uma fonte do pensamento liberal e de padrões profissionais avançados, juntavam-se a eles. A própria língua inglesa era considerada uma marca da modernidade e um instrumento fundamental para excluir eventuais candidatos a jogador provenientes das classes baixas. Por isso até hoje o Milan não se chama Milano, um dos principais clubes da Suíça até hoje se chama Grasshoppers e na América do Sul temos Liverpool (Uruguai), Arsenal (Chile), Lawn Tennis (Argentina), Corinthians (Brasil) e The Strongest (Bolivia).
O futebol também atraía muitos dos mais intelectualizados e estudantes universitários formaram a base de novos clubes de futebol no Rio, Copenhague e Praga.
Claro que o futebol também competia com outros esportes: críquete, rugby, tênis, hóquei, atletismo e ginástica. O que havia no futebol, sobretudo em jogar futebol, indaga Goldblatt, que capturava a imaginação de tantos jovens da elite europeia e latino-americana? Ele acha que, em primeiro lugar, o sucesso do futebol se explicava pelos mesmos motivos que levaram a seu sucesso junto à classe operária: regras simples para jogar e marcar; flexibilidade em termos de número de jogadores, duração do jogo e espaço para jogar; sem necessidade de equipamento; baixa probabilidade de uma lesão séria, sobretudo se comparado ao rugby. Mas estas razões, diz o autor, aplicam-se sobretudo aos pobres urbanos. O cavalheiro do final do século XIX podia jogar o que quisesse, não tinha as limitações de um operário. Em suma, os aristocratas e a classe média desses países jogavam futebol porque amavam fazê-lo.
Não temos muitos relatos em que esta elite de jogadores explique as razões da sua paixão. Para Goldblatt, provavelmente os motivos eram os mesmos que tornam o jogo atraente até hoje: sua fluidez contínua, seu caráter de imprevisibilidade, sua combinação de jogo de equipe e valor individual e seu respeito tanto pelo trabalho físico quanto mental.
Quando o jogo já estava bem estabelecido como um passatempo amador dos jovens e ricos do império informal, uma segunda onda britânica ajudou a modelar seu crescimento. Nas duas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, times britânicos, amadores e profissionais, fizeram longas excursões à Europa e América Latina, proporcionando inspiração, reflexão e multidões de pagantes por onde passavam. Alguns jogadores mais aventureiros até resolveram ficar.
Mas mesmo entre os anglófilos amantes do futebol, começou a haver algum ressentimento contra o exclusivismo e sentimento de superioridade dos clubes de ingleses expatriados. E os descontentes começaram a criar clubes dissidentes para desafiar a hegemonia dos britânicos. Claro que estes novos clubes eram nacionalistas: Nacional de Montevidéu, Stade Français em Paris e Independiente de Buenos Aires são exemplos. Ao mesmo tempo, na Europa Central, na América Latina e na Suécia, o jogo estava indo além do círculo dos privilegiados e alcançando a classe trabalhadora urbana – que não sabia nada da Inglaterra e pouco se lixava para a modernidade ou sofisticação. Mas só vieram a tomar posse do esporte após a Primeira Guerra Mundial, onde morreram dez milhões de pessoas.
II.
Os primeiros pontos de penetração do futebol na Europa continental foram os portos e capitais da Escandinávia e dos Países Baixos. Estudantes universitários e jovens burgueses urbanos da Dinamarca, Suécia, Holanda e Bélgica foram futebolistas pioneiros e entusiasmados. Logo havia clubes, competições municipais, federações nacionais e seleções. Nesses quatro países, com sociedades em rápido processo de industrialização, havia os quatro fatores necessários para o crescimento de um esporte popular organizado: urbanização; a emergência de uma massa de homens jovens de classe média na cidade dispondo de tempo; o desenvolvimento de uma classe trabalhadora geograficamente concentrada e escolarizada; novos modos de comunicação intra e entre cidades. Só faltava chegar a bola e a ideia de que chutá-la em um gramado podia ser algo divertido. Isso foi trazido pelos ingleses.
Os ingleses estavam na área, porque a Escandinávia e os Países Baixos certamente faziam parte do seu império informal. As relações econômicas e comerciais eram numerosas e bem estabelecidas. Só que ao contrário do que ocorreu na Europa Central e em boa parte da Europa Ocidental, o processo não foi iniciado por clubes de expatriados britânicos. A anglofilia era tão forte na Escandinávia e nos Países Baixos que foram as próprias elites locais que criaram os primeiros clubes, muitas vezes indo à Inglaterra para aprender. Sendo assim o primeiro clube da Europa continental foi criado em Copenhague em 1876 e em 1889 a Dinamarca ostentava a primeira federação nacional de futebol da Europa afora as já existentes nas Ilhas Britânicas. Nas Olimpíadas de 1908 a seleção da Dinamarca ficou em segundo lugar, perdendo para a Inglaterra na final.
A burguesia dinamarquesa não prezava o exclusivismo e o elitismo, e estava em pleno processo de concessão de direitos a uma aliança entre trabalhadores organizados e camponeses independentes. Isso facilita a difusão do futebol junto à classe operária dinamarquesa. O futebol dinamarquês só não se desenvolveu mais por conta dos limites econômicos de um pequeno país e por ter ficado preso à camisa de força do amadorismo, só voltando a figurar no futebol mundial muitas décadas depois desse brilhante início.
De qualquer forma, os dinamarqueses desempenharam um importante papel na difusão do futebol na Holanda. Dinamarqueses educados na Inglaterra fundaram clubes esportivos por toda a Holanda na década de 1870. Os holandeses também eram anglófilos ao ponto dos times da época posarem para as fotos da mesma forma que os jogadores ingleses, com grandes bigodes, e um estudado ar despreocupado, de indiferença estudada e arrogância. O interessante é que a primeira onda esportiva da Holanda esteve centrada no críquete. Nas décadas de 1880 e 1890 o críquete foi decaindo e muitos clubes de críquete passaram a ser clubes de futebol, que era cada vez mais popular sobretudo entre os mais jovens. A tendência era que jogassem de maneira mais livre e despreocupada. Os jogos também eram mais abertos, inclusive à participação de não-sócios.
Esta democratização do futebol holandês se aprofunda nos primeiros anos do século XX: o movimento sindical consegue grandes conquistas em termos de horas de trabalho e de salários, facilitando a participação dos operários no futebol. Houve uma explosão de clubes informais, jogadores não registrados, competições espontâneas e jogos fora do calendário. Alguns times surgiam a partir de clubes operários pré-existentes: ciclismo, tiro e corridas de pombo. Outros surgiam espontaneamente entre os grupos de jovens de baixa classe média e classe operária. Os clubes da elite não excluíram e até ajudaram os novos clubes. Quando passou a existir uma rede ferroviária ligando todo o país, as competições de futebol organizado cresceram enormemente.
Mais ao leste, a Suécia estava uma década atrás da Dinamarca e da Suécia em termos de abraçar o futebol. Por um lado, a competição entre os esportes era maior: parte da classe média sueca já se engajara em uma versão nacionalista da ginástica que era apropriadamente austera. O clima muito frio tornava difícil jogar futebol o ano todo e oferecia a alternativa dos esportes de inverno. De qualquer forma, uma combinação de ingleses e de suecos educados na Inglaterra iniciou o futebol organizado em Gotemburgo no final da década de 1880.
No início do século XX, o futebol sueco assistiu a um influxo de jogadores, clubes e espectadores da classe trabalhadora. Isso é válido para a Dinamarca e a Holanda também, mas somente na Suécia isso teve uma dimensão política. A burguesia sueca, que até então tinha controlado todos os aspectos do futebol, tinha adotado uma forma particularmente rigorosa de amadorismo inglês na qual as virtudes cavalheirescas do fair play (“jogo limpo”) estavam associadas com um rejeição marcada do aspecto comercial e combinada com uma visão de uma masculinidade nacionalista e levemente militarista. Os jogadores e torcedores de classe operária, entretanto, adotaram o jogo sem conhecer ou aceitar este sistema de valores. As autoridades suecas ficaram furiosas com o declínio dos padrões de jogo e com a persistência de brigas dentro de campo. Na verdade, parece que desde cedo os jogos de futebol serviram tanto para fazer protestos espontâneos quanto para as demonstrações de rivalidade furiosa entre vizinhanças.
Em 1912, os conflitos de classe latentes na sociedade sueca foram representados por um clube de trabalhadores (IFK Göteborg) e um clube da burguesia (Örgryte IS), explodindo no final do clássico. Durante o jogo já tinha havido brigas entre os jogadores e a massa explodiu quando o juiz terminou o jogo sem dar tempo do IFK cobrar pênalti que poderia desempatar o jogo a seu favor (estava 1×1). No jogo do ano seguinte, a multidão invadiu o campo, cercou e empurrou os jogadores do Örgyte até o vestiário onde eles ficaram refugiados ma non troppo porque a massa arremessou pedras e quebrou os vidros.
A resposta das autoridades a esta grande onda de futebol da classe operária foi dupla. Diante da ameaça de comercialismo e profissionalismo que o grande público e os jogadores apresentavam, retrucaram com a implementação de uma forma ainda mais rigorosa de amadorismo. Que inclusive proibiu a visita de clubes ingleses até 1910. Mas, ao mesmo tempo, havia flexibilidade e se fechavam os olhos permitindo que os melhores jogadores operários fossem pagos, sobretudo os que eram escolhidos para a seleção nacional. Os maiores conflitos acerca da profissionalização ainda estavam por vir. Enquanto isso, os cartolas suecos buscavam contrabalançar a divisão existente no futebol doméstico, com seu conflito de classes, com um foco no jogo internacional e na seleção nacional como instrumento de unidade. Os administradores do esporte sueco estavam entre os grupos mais nacionalistas e conservadores do país.
O jogo anual entre Suécia e Dinamarca, iniciado em 1908, tornou-se a peça central desta estratégia na qual as energias da classe trabalhadora desregrada na arquibancada, podiam ser acesas como um gás inflamável que posto para queimar pelo nacionalismo aberto ao invés de ser consumido pelo conflito de classe doméstico. As arquibancadas, energizadas por muita bebida no trem e no barco para a Dinamarca, ficavam de bom humor. A classe trabalhadora sueca gostava de beber e de derrotar os dinamarqueses, mas tanto no futebol quanto na política ela estava longe de ser silenciada; de fato, no entreguerras se veria que esta partida estava apenas começando.
III.
O futebol, como qualquer outra coisa que veio do Velho Mundo – invasões e epidemias incluídas – chegou na América Latina pelos portos. Há tantas histórias de marinheiros ingleses jogando no litoral do continente que devemos acreditar nelas. Logo os locais também entravam no jogo e são criados termos para estas partidas não oficiais: peladas no Brasil, picados na Argentina e Uruguai, pinchadas nos países da costa do Pacífico.
Os ingleses, todavia, não eram apenas visitantes ocasionais, já que a América Latina tinha uma enorme riqueza mineral e agrícola, ótima para abastecer a revolução industrial do norte. Mas não tinha capital, tecnologia ou mão de obra especializada. O capital e a tecnologia vieram da Inglaterra. Seus investimentos e empreendimentos estavam em toda parte: cobre no Chile, guano no Peru e empréstimos a todos os governos. Dirigiam bancos na Argentina e controlavam a exportação de carne e lã no Rio da Prata bem como boa parte do café no Brasil e na Colômbia. A partir de 1863, quando a ferrovia central da Argentina começou, os britânicos desenharam, fundaram, construíram e operaram a maioria das ferrovias que ligavam as riquezas do interior aos portos de onde eram exportadas.
Em 1880 havia 40 mil britânicos em Buenos Aires, bem como comunidades menores mas poderosas em São Paulo, Rio, Montevidéu, Lima e Santiago. Além dos negócios, elas fundavam jornais, construíam escolas, dirigiam hospitais, consagravam igrejas e, com talvez mais gosto do que qualquer coisa, criavam clubes esportivos. A partir de 1860 os clubes sociais britânicos em Buenos Aires já estavam organizando competições atléticas e jogos de críquete, tênis e pólo. Em 1867 um desses clubes, de críquete, organizou o primeiro jogo de futebol da Argentina no bairro de Palermo: blancos x colorados, ambos compostos por ingleses. Só debateram um pouco se era apropriado usar calções diante das senhoras.
Nas décadas de 1860 e 1870, o futebol era apenas mais um jogo praticado pelos ingleses na cidade. Muitos jogos eram uma mistura das novas regras da FA e as regras do rugby, que ainda estavam em desenvolvimento. Duas décadas depois, afora os altos escalões da elite da cidade, o futebol conquistara a hegemonia absoluta. Seu crescimento se deveu a três fatores: a fortíssima ética de jogos estabelecida nas muitas escolas estabelecidas pela comunidade britânica na Argentina, o número crescente de expatriados britânicos trabalhando nas ferrovias e, como em muitas outras sociedades, a chegada de um evangelista do futebol. No caso, o professor escocês Alexander Watson Hutton, que chegou à Inglaterra em 1882 e em 1884 criou sua própria escola, porque a anterior não tinha espaço suficiente para a prática de esportes. O número cada vez maior de ingleses que vinham trabalhar nas ferrovias levou a um núcleo concentrado de jogadores que logo começaram a formar times. Na década de 1890, Rosário já tinha dois clubes de futebol: o Rosario Athletic para a diretoria e o Rosario Central para os trabalhadores. Em 1891 o incansável Hutton consegue organizar uma competição de uma mini-liga em Buenos Aires. Em 1893 a competição é aumentada, agora organizada pela Argentine Association Football League. É considerada o campeonato nacional argentino e vem sido disputada ininterruptamente até hoje.
O desenvolvimento no Uruguai foi semelhante. Em 1874 foi fundada a English High School para servir à comunidade crescente de britânicos em Montevidéu. Parece que o jogo pegou e na década seguinte já era jogado não só na escola mas também nas ruas. Mas foi novamente um indivíduo carismático que providenciou o ímpeto para transformar as peladas em uma competição regular. Novamente um escocês: William Leslie Poole, um professor de educação física da escola já referida. Ele fundou o Albion Cricket Club em 1891 dois anos depois criou uma seção futebolística do clube, logo enfrentando clubes argentinos. As ferrovias traziam cada vez mais jogadores e competição. Mas os clubes de Montevidéu só organizaram sua primeira liga em 1901, uma década depois de Buenos Aires. O futebol uruguai foi prejudicado por várias guerras civis que se estenderam até o início do século XX.
O futebol brasileiro começou com a volta de Charles Miller em 1894. Filho de pai inglês e mãe brasileira e parte da elite comercial cafeeira de São Paulo, Charles foi enviado à Inglaterra para a sua educação. Acabou jogando futebol pela sua escola, pelo seu condado e até por um clube profissional recém-formado, o Southampton. Voltou a São Paulo com duas bolas de couro, uniforme de jogo e com a febre do jogo. De início jogava críquete no exclusivo São Paulo Athletic Club mas convenceu os outros sócios a experimentarem o futebol. Na primavera de 1895 jogaram num descampado onde pastavam as mulas do bonde. Afastaram as mulas e o São Paulo Railways enfrentou o The Gas Team. Em 1897, Hans Nobiling, um imigrante alemão, chega a São Paulo com as regras do jogo em alemão debaixo do braço, bem como algumas temporadas jogadas em Hamburgo. O São Paulo Athletic Club recusa o convite de Nobiling para jogar mas ele se junta a outros imigrantes britânicos excluídos e forma o SC Internacional. Logo são criados mais três clubes, uma dissidência formada somente de alemães vira o SC Germania. Estudantes americanos formam a equipe do Mackenzie College. E por fim o CA Paulistano, um clube esportivo e time de futebol para as elites brasileiras da cidade. Em 1902 o futebol estava tão bem estabelecido que já se faziam campeonatos municipais bem organizados por uma liga. A primeira final, entre São Paulo AC de Charles Miller e CA Paulistano, vencida pelo primeiro por dois a um, teve a cobertura do jornal O Estado de São Paulo e um público excepcional de quatro mil pessoas, sua maioria da alta sociedade. Os vencedores foram banhados em champagne.
Banhado em champagne, o futebol era irresistível para as elites anglófilas da América Latina da passagem do século XIX para o XX. Apenas dois anos após a sua primeira competição, em 1895 Buenos Aires já tinha primeira e segunda divisões. Em 1899, três divisões. E em 1902, quatro. De início os campeões eram todos clubes ingleses, mas depois de uma década o futebol se nacionalizava. A maioria dos clubes importantes do país foram criados no início do século XX: River Plate (1901) e Boca Juniors (1905) foram fundados por imigrantes nas docas de Buenos Aires. No subúrbio industrial de Avellaneda, o Racing Club foi fundado por imigrantes franceses em 1903 enquanto os seus vizinhos do Independiente eram uma dissidência de falantes de castelhano do clube britânico City of London Stores sports club (1905). Nos jogos mais importantes já havia público acima de mil pessoas e em 1903 o jornal La Nación já começou a fazer uma cobertura regular e de qualidade.
O Uruguai esteve atrasado em relação à Argentina por causa da convulsão causada por duas tentativas de golpes conservadores em 1897 e 1904. O presidente Battle y Ordóñez iniciou uma série de políticas progressistas: o fortalecimento da democracia eleitoral, a criação de um Estado secular, uma expansão massiva da educação pública e das pensões e grandes investimentos públicos em infra-estrutura econômica. O Uruguai começou a prosperar. E Montevidéu a crescer, adquirindo uma nova classe média e uma nova classe trabalhadora. As divisões de classe, étnicas e nacionais encontraram expressão na oposição entre dois clubes. O Nacional, criado por estudantes hispânicos na Universidade de Montevidéu em 1899, era conscientemente nacionalista, desafiando a hegemonia dos britânicos no seu jogo. Seu eterno rival nasceu quando o CURCC (Central Uruguayan Railway’s Cricket club) foi transformado no Peñarol, processo completado em 1913, quando houve a mudança oficial do nome e o abandono da língua inglesa.
Enquanto isso, em São Paulo, o domínio britânico no futebol estava começando a desaparecer na primeira década do século XX. No Rio, foi solapado pela criação de uma onda de clubes de elite verdadeiramente brasileiros. Em 1897 retorna à cidade o suíço-brasileiro Oscar Cox, filho de uma das mais ricas famílias, que tinha estudado e jogado futebol em Lausanne. Primeiro persuade o Rio Cricket and Athletic Association (em Niterói) a jogar futebol mas diante da falta de maior interesse, cria o Fluminense Football Club, que Goldblatt chama de o mais importante clube social e esportivo dos super-ricos.
Os clubes esportivos eram locais chave para a sociabilidade da elite: chás pré-jogo e jantares depois da partida foram adicionados ao calendário social de casamentos, recepções, soirées e danças realizados nas novas e esplêndidas sedes dos clubes. O Fluminense tornou-se o cânone da sofisticação e das boas relações. Suas arquibancadas de madeira e seus pavilhões estavam lotados com as famílias mais ricas nas suas melhores roupas. Os cavalheiros expressavam sua paixão clubística discretamente, colocando fitas com cores do clube nos seus chapéus de palhinha, um eco direto das public schools. O time se inclinava diante do público que gritava “Hip-hip Hurrah”. Inspirados e competindo com o Fluminense, Botafogo e América são criados em 1904.
A criação do Flamengo é recontada por Goldblatt sem novidades, afora o erro de dizer que foi criado um novo clube chamado Flamengo Football Club, o que nunca ocorreu. Como todos sabem, já havia o Clube de Regatas do Flamengo desde 1895, que em 1911 acolhe jogadores dissidentes do Fluminense Footbal Club. Em seguida acrescenta que os clubes começaram a recrutar jovens estudantes universitários de Medicina, Direito e Engenharia, que eram parte da mistura de elite rural, burguesia urbana, solteiros disponíveis e atacantes razoáveis. Em São Paulo os principais jogadores antes da Primeira Guerra Mundial eram empreiteiros, grandes comerciantes, engenheiros, oficiais do exército, médicos, banqueiros, contadores e professores.
A Primeira Guerra Mundial acabou com o domínio britânico na América Latina. O custo da guerra e os débitos acumulados fizeram com que fossem liquidados os investimentos no exterior em sua maior parte. Mas o capital cultural e esportivo da Inglaterra foi absorvido e apropriado ainda mais rapidamente. Na Argentina e no Uruguai, o castelhano foi adotado como língua oficial (abandonando o inglês) em 1905. Mas na Argentina football só foi substituído por fútbol em 1934. Os clubes britânicos que restavam na Argentina abandonaram o futebol, cujo exclusivismo e status social não funcionavam mais, adotando esportes que permitissem maior diferenciação em relação aos porteños como polo, críquete e rugby. Mas ainda existe o resíduo linguístico e de vocabulário: offside ainda é offside.
Foram também os britânicos que iniciaram o futebol internacional na região. Em 1888 já organizaram jogos entre uma equipe Buenos Aires e de Montevidéu para celebrar o aniversário da Rainha Vitória. A Argentina enviou uma seleção ao Brasil em 1907 e antes da Primeira Guerra equipes viajavam para jogar contra seleções das ligas de Rio e de São Paulo. Em 1910, para celebrar seu centenário de governo autônomo, a Argentina organizou um torneio internacional que é considerado o primeiro Sul Americano de seleções. A Argentina bateu o Uruguai por 4×1 diante de 10 mil pessoas. Os maiores públicos ocorriam durante a visita de times ingleses. Os jogos ofereciam aos futebolistas locais a chance de um duro teste e de um padrão a partir do qual poderiam medir seu rápido progresso – tendo aprendido sobretudo em termos de trabalho de equipe e de cabecear com coragem. Os jogos eram considerados tão importantes que a elite econômica, social e política comparecia, eventualmente até o presidente da República.
A proximidade de Chile, Paraguai e Bolívia do sul do continente e de sua febre futebolística, criou uma segunda onda de futebol na América do Sul, apenas um pouco atrás da vanguarda representada pelos países platinos. O Chile, onde havia a maior presença britânica, foi o que se desenvolveu mais rapidamente dos três. Já existia uma federação chilena de futebol em 1895. No Paraguai, um professor de educação física holandês chamado William Paats chegou com a primeira bola debaixo do braço em Assunção no final da década de 1890. Em 1902 ele e outros entusiastas fundaram o Olímpia, tendo o rival Guarani sido fundado um ano depois. O primeiro jogo, disputado em uma fazenda fora da cidade, foi em 1903. Uma federação nacional e uma liga baseada em Assunção se seguiram em 1906, quando os times principais do futebol paraguaio já estavam formados: Nacional, Libertad e Cerro Porteño. A Bolívia, ao menos no que diz respeito ao futebol, não ficou para trás: a partir de 1896 já havia clubes se formando e a partir daí se multiplicaram, fazendo com que as competições de futebol se tornassem parte regular da cena de La Paz.
Na Colômbia, na Venezuela, no Peru e no Equador, onde as conexões com os britânicos eram mais fracas do que no sul do continente, o futebol chegou depois, desenvolveu-se mais devagar e permaneceu fechado nos enclaves costeiros por mais tempo. Na Venezuela e na Colômbia, onde a influência econômica e política dos Estados Unidos era maior, o beisebol se tornou um rival de peso diante do futebol. No Equador o futebol foi introduzido em 1899 no porto de Guayaquil por um grupo de estudantes de uma escola estilo europeu. Na Colômbia o futebol ficou muito tempo restrito às áreas caribenhas sem maior desenvolvimento de uma competição nacional devido à difícil geografia do país e ao desprezo votado ao futebol pelas elites de Bogotá, Cali e Medellin por ser uma moda que vinha da região costeira. Uma federação e uma competição nacional só vieram em 1924. No Peru a história foi diferente, porque o porto de entrada do futebol era também a capital e porque havia ali uma comunidade significativa de expatriados britânicos. Isso redundou na cultura futebolística mais forte da região. Além da elite, que começa a jogar na década de 1890, os pobres urbanos também aderem rapidamente – o que é uma exceção nos países andinos – formando o Alianza Lima em 1901 a partir do barrio La Victoria. A cultura futebolística vibrante e ativa existente em Lima antes da Primeira Guerra não se expandiu por conta de problemas de comunicação interna com a bacia amazônica e as terras altas do país.
Em todas estas sociedades o futebol passou de jogo dos britânicos a jogo da elite local. Mas o que distinguiu a América do Sul do resto do mundo é que o jogo deixou de ser um mero passatempo de alguns eleitos para se transformar na obsessão das massas urbanas de forma mais rápida e mais compreensível do que em qualquer lugar do mundo. Essa difusão social extra-rápida do futebol se deve a uma combinação de uma urbanização extremamente veloz somada a uma forte onda imigratória experimentada pelas metrópoles chave da região na década que antecede a Primeira Guerra Mundial. A população de Buenos Aires triplicou em 26 anos e às vésperas da guerra já tinha 1,5 milhão de pessoas. O Rio chegou a um milhão e a população de São Paulo cresceu vinte vezes neste período. Na Argentina boa parte dessa nova população urbana era constituída por imigrantes, especialmente italianos e judeus do leste da Europa. Italianos também vieram para o Brasil, juntando-se a alemães, portugueses e japoneses. Esses caldeirões demográficos urbanos foram superaquecidos com a chegada de novas tecnologias para se viver na cidade na América do Sul: fábricas mecanizadas, metrô, bondes, fornecimento municipal de gás e eletricidade, parques e locais recreativos.
Nessa época havia mais de 300 clubes em Buenos Aires jogando em numerosas ligas proletárias não oficiais operando ao largo da federação argentina a AFA. Nos barrios, o amadorismo dos cavalheiros e o ethos do fair play foram rapidamente abandonados pelo futebol da nova classe trabalhadora e dos imigrantes. Agora ele era um instrumento de poder e vingança. Time que chegasse atrasado perdia não importava o motivo. Nem sempre os juízes eram neutros e a integridade física do time visitante não era garantida. O público vaiava, assoviava e fazia coisas piores.
Em São Paulo, escrevendo para a revista de sua antiga escola, Charles Miller fala que em 1904 já existiam sessenta ou setenta clubes e que naquele ano haviam sido vendidas duas mil bolas de futebol.
No Brasil, a democratização social do futebol foi acelerada pela emergência e multiplicação de times de fábrica. Gerentes e técnicos das companhias britânicas nos subúrbios e na área do Grande Rio estavam isolados da grande concentração de jogadores de classe alta no centro da cidade. O jeito foi convidar os operários a jogar com eles. Em 1904 a Companhia Progresso Industrial, localizada em Bangu formalizou a prática, estabelecendo seu próprio time composto por ingleses, brasileiros e italianos, com o qual disputou o Campeonato Carioca. Embora dirigido de forma paternalista, não havia separação de classes e raças no clube social ou em campo. O Bangu se mostrou razoavelmente bem sucedido no campo e um poderoso instrumento de controle trabalhista fora dele. Em 1908 a América Fabril em Pau Grande também criou seu clube e muitas outras fábricas o fizeram. Na verdade eram equipes semi-profissionais porque os operários atletas recebiam tarefas mais leves permitindo que treinassem e jogassem. Bangu, Pau Grande e outros quebraram o exclusivismo branco no futebol organizado, trazendo a primeira onda de jogadores negros e mulatos. Em 1914, quando o Exeter City veio excursionar no Brasil, um dos jogadores ficou pasmo diante das peladas de rua, compostas quase que exclusivamente por jovens negros, a maioria descalços.
Quando vem a Primeira Grande Guerra, enquanto a Europa experimenta a carnificina, a América do Sul organizava seu futebol. Em 1916 é criada a CONMEBOL (Confederación Sudamericana de Fútbol) durante um torneio internacional organizado pela AFA, a federação argentina de futebol. Novamente a final foi entre Argentina e Uruguai. Mas o jogo não foi realizado pois se venderam mais ingressos do que a lotação do estádio do Gimnasia y Esgrima. Quando o público percebeu que não haveria jogo, a multidão arrancou os lampiões de querosene e tocou fogo nas arquibancadas. Como se nada houvesse acontecido, num dia de semana o jogo foi realizado diante de dez mil pessoas.
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