/The ball is round, Capítulo 6: Paguem e joguem o jogo: a comercialização do futebol global, 1914-1934 – Parte A

The ball is round, Capítulo 6: Paguem e joguem o jogo: a comercialização do futebol global, 1914-1934 – Parte A

 

The ball is round, Capítulo 6: Paguem e joguem o jogo: a comercialização do futebol global, 1914-1934 – Parte A

Marcos Alvito

I.

O capítulo começa com a questão da superação do amadorismo a despeito do mal estar das elites com o profissionalismo, do Rio a Paris, de Madri a Berlim. A resistência foi esmagada pela lógica impiedosa da mudança política e econômica.

O futebol profissional britânico (1888), como sua revolução industrial, tinha trinta anos de vantagem sobre o resto do mundo. No furacão de transformações sociais e culturais que marcou a década de 1920, o futebol na Europa e na América do Sul passou pelo mesmo processo de comercialização e popularização massiva que formou o futebol britânico, só que em uma velocidade acelerada. A antes inatacável e inigualável superioridade e britânica no futebol, da mesma forma que na indústria, foi desafiada pela primeira onda de culturas futebolísticas de massa onde o processo de profissionalização acabara de ocorrer. Claro que a geografia do futebol não era a mesma da indústria. Enquanto o capital britânico encontra rivais sérios entre alemães e norte-americanos, o futebol inglês era ameaçado pela Europa Central, América do Sul e Mediterrâneo Ocidental. O que transformou o futebol amador destas regiões e tornou-as culturas futebolísticas de massa foi a derrocada, ou ao menos o recuo, das antigas elites que controlavam o jogo, com a rápida colonização do esporte por suas respectivas classes populares. Isto requeria uma profunda reorientação na estrutura de poder e política; o tipo de mudança que uma guerra cataclísmica pode proporcionar.

À primeira vista a Primeira Guerra Mundial não parece um ambiente propício para o futebol. Na Inglaterra o último jogo profissional foi a final da Copa da Inglaterra em 1915 e o Ministério da Guerra requisitou o escritório da FA (Football Association), mostrando qual era a prioridade. Na Alemanha os campos de futebol foram utilizados como hortas no esforço para mitigar os efeitos do bloqueio naval e da carência de alimentos. Em todo o continente, por conta da sua faixa etária, jogadores de futebol foram recrutados e muitos morreram ou voltaram mutilados, incapacitados ou perderam a sanidade mental.

De início, havia quem comparasse a guerra a um jogo de futebol, mas depois de dois anos e dez milhões de mortos, ninguém mais o fazia. Mas a imagem que relaciona o futebol à guerra tem a ver com a paz, com a trégua negociada e acordada para o Natal de 1914 e que permitiu a realização de jogos de futebol entre ingleses e alemães. Mas a trégua de 1914 foi a última. Não havia mais como jogar futebol. Mesmo assim, houve quem lesse notícias de futebol para acalmar as tropas antes de iniciar um ataque.

Se não estava presente na linha de combate, o futebol comparecia nos centros de embarque, nos campos de treinamento e nos campos para prisioneiros, onde a elasticidade e simplicidade do jogo eram suas grandes virtudes. Como um oficial britânico comentou: “Por mais cansados que estes desgraçados estejam para marchar, sempre têm energia para jogar futebol”. Tanto no exército russo quanto no exército alemão o futebol era amplamente jogado e utilizado no treinamento. Os exércitos que tomaram parte na Primeira Guerra Mundial nunca haviam sido vistos antes. Os estados empregaram a burocracia e a força de maneira a literalmente mobilizar toda a população. E isso acabou divulgando o futebol junto a jovens camponeses que antes nunca haviam visto uma bola, mas jogaram futebol nos campos de treinamento. Isso ajudou a quebrar as últimas barreiras que faziam do futebol um jogo de elite. Assim que termina a guerra há um enorme entusiasmo e energia em torno do futebol, um prazer que havia sido negado pela guerra. É aí que ocorre a transição que se dera na Inglaterra trinta anos antes: a passagem para um futebol profissional, agora uma instituição cultural nacional. Mas primeiramente a velha ordem que sustentava o futebol amador tinha que ser desmantelada. A guerra também fez isso.

Quando os canhões silenciam em novembro de 1918, quatro anos de guerra haviam fraturado o panorama social e político da Velha Europa. Quatro impérios europeus haviam se rompido. A Rússia tzarista tinha sido decapitada pela derrota e pela revolução e depois envolvida em uma guerra civil. Os impérios Otomano e Habsburgo (Austro-Húngaro) conseguiram manter o centro mas foram irremediavelmente fragmentados em um conjunto de novas nações reconhecidas pela Liga das Nações. O Kaiser abdicou, a Alemanha encolheu e perdeu seus territórios de além-mar. Quando estas dinastias imperiais foram depostas as aristocracias fundiárias que tinham sido sua base também estavam diminuídas econômica, política e socialmente. Na Rússia elas foram simplesmente erradicadas. Mesmo na Inglaterra, França e Itália, as virtuais vencedoras da guerra, as velhas aristocracias foram dizimadas. Velhas formas de governar, lealdade e autoridade, foram feridas de morte. Na América do Sul, onde as classes proprietárias de terras foram superadas social e economicamente pelo extraordinário crescimento das principais cidades industrializadas, e de qualquer forma os envolvidos no futebol amador eram muito poucos. Mesmo na Europa, onde eram muito mais, eles também foram superados. Os atores sociais mais energizados na Europa do pós-guerra eram as novas nações e, internamente aos países, a classe operária.

Os imensos e bem difundidos sacrifícios demandados pela guerra tornavam impossível a exclusão da classe operária da  política na maior parte da Europa. A criação do sufrágio universal masculino, o incremento do sufrágio feminino também, transformava a balança política de forças de todas as sociedades. A Revolução Russa vitoriosa e a emergência por todo o mundo de partidos comunistas revolucionários, embora não efetivos, fez com que reformas trabalhistas básicas e reformas sociais se tornassem uma pré-condição para a sobrevivência dos governos e das elites em toda a parte. Uma das primeiras reformas era fixar na lei a jornada semanal de trabalho, introduzindo a meia jornada aos sábados ou até mesmo abolindo o trabalho aos sábados. Com a classe operária britânica trinta anos antes, os jovens da Europa e da América do Sul agora eram dispensados mais cedo e tinham à sua disposição o fim de semana  e tempo de lazer. Das muitas coisas que eles escolheram fazer com sua nova liberdade uma foi jogar e assistir futebol.

Os números do público neste período podem não parecer grande coisa aos olhos de hoje, mas o crescimento foi de uma ordem de magnitude que mostra bem o que estava acontecendo. Por exemplo, antes da guerra menos de 10 mil pessoas assistiam ao mais popular jogo do ano na Europa Central, Áustria versus Hungria. No final de 1918 já eram 15 mil, no ano seguinte 25 mil, que se tornaram 45 mil em 1921 e no ano seguinte 65 mil. Uma curva similar de crescimento ocorria em jogos internacionais e domésticos nas zonas mais avançadas da Europa e da América do Sul. O tamanho e o modelo dos estádios na Europa não eram mais compatíveis com esses números, havendo relatos de multidões quebrando grades e pulando muros. Mas havia gente suficiente pagando para transformar a economia do futebol. Sem procurar ativamente um público, sem campanhas publicitárias ou qualquer esforço para criar uma marca, os clubes e federações de futebol da Europa Ocidental e Central e da América Latina tinham adquirido uma massa de público que jogava e pagava.

No início do anos 1920, quando havia baixado temporariamente a poeira dos cataclismas da guerra, revolução, hiper-inflação e austeridade, havia em todas essas sociedades uma profunda necessidade e desejo de hedonismo e de escapismo, de prazer e de jogo, tanto para os absurdamente ricos quanto para os terrivelmente pobres. O futebol era um desses prazeres, seu significado amplificado e transformado pelas indústrias da nova cultura. A Inglaterra foi pioneira na imprensa futebolística fofoqueira, a Argentina adicionou o épico e a feitura de sagas históricas, os cafés vienenses ofereciam a poesia encomiástica, isto é, de elogio. Compositores de músicas e líderes de conjuntos escreveram as primeiras músicas de futebol, de foxtrots a sambas. As primeiras transmissões de rádio as tocaram e começaram a experimentar fazer comentários ao vivo sobre os jogos. Os jogadores de futebol começaram a tornar-se celebridades, embora não ganhassem muito ainda, aproximando-se dos mitos hollywoodianos. Alguns até figuraram em filmes à medida em que a presença de um jogador de futebol ou até uma frágil trama futebolística se tornaram comuns no cinema britânico e europeu. Jogadores e times cada vez mais recomendavam produtos de todo tipo, de sabão, açúcar e caldo Knorr até cigarros e álcool.

Na Inglaterra, o jogo estava sendo transmitido pela nova tecnologia, o rádio, desde os subúrbios proletários até a alta burguesia. Era aclamado em toda a escala social, do homem de classe média até as romancistas feministas. A questão que permanece é a seguinte: por que tantas pessoas iam assistir ao futebol? Por que tantos achavam tão irresistível ver ou ouvir o jogo? O texto da novelista Winifre Holtby para a revista Radio Times descrevendo como ela escutou sua primeira transmissão de uma partida de futebol captura algo da potência do futebol como espetáculo e narrativa mesmo para os não-iniciados:

“Eu estava excitada. Eu não tinha, até este dia, a noção mais remota do que eles estavam fazendo. Mas eu sabia que estava excitada. Ninguém poderia ouvir com sangue frio ou pulso tranquilo ao acelerado crescendo do rugir que precedia o grito final de gol. Eu queria mais gols. Não me importava quem os marcasse. Eu não sabia quem estava jogando ou o que estavam jogando, ou aonde ou porque. Mas eu queria sentir minha espinha formigar e meu coração bate, meus cabelos se arrepiarem gentilmente desde a raiz com o suspense quando aquela voz gritava de algum lugar”

Era certo que o mundo industrial iria abraçar um jogo de equipe. Numa sociedade tornando-se cada vez mais complexa em cada esfera de existência, quando as ameaças colocadas pelo anonimato, alienação e atomização eram a realidade da vida urbana, um esporte que oferecia aos espectadores uma persistente identidade coletiva tinha uma vantagem psíquica sobre os esportes individuais, fossem quais fossem seus outros atrativos. Isto dito, rugby, hóquei, críquete e os esportes de equipe norte-americanos também ofereciam um foco alternativo para essas necessidades e foram abraçados em Gales, no sudoeste da França, nos Estados Unidos, na Oceania e na República da Irlanda. Em todos os outros lugares o futebol superou em muito os esportes que com ele competiam.

Mas parece inconcebível que o sucesso do jogo seja explicado somente em termos sociológicos. Há algo no jogo que para mais pessoas em mais lugares trazia mais prazeres. O relato de Holtby sobre a transmissão de rádio sugere ao menos uma razão pela qual o futebol mostrou-se um espetáculo mais bem sucedido do que os seus competidores: gols. Marcar, como Holtby percebeu, está no coração da magia despertada pelo jogo. Todo mundo quer gols, e seu significado é mais ampliado por sua simplicidade e sua raridade. O futebol só tem uma forma de marcar. Dois dos seus competidores principais, o basquete – que tem jogadas de um ponto, dois pontos e três pontos, e o rugby que tem várias formas de marcar, tornam o fluxo da contagem complexo e desajeitado. O gol no futebol cria mais intensidade e antecipação acerca da sua chegada oferecendo uma narrativa do jogo mais simples, mais atraente e instantaneamente compreensível.

Holtby também comenta acerca dos prazeres da fluência e do ritmo na narrativa acerca do futebol. Ao contrário de muitos esportes, o futebol não tem alternância de turnos, paradas pré-estabelecidas, pedidos de tempo ou outras interrupções oficiais. Ele é, conforme diz o clichê, um jogo de dois tempos e pronto. Mas no interior desta estrutura simples estabelecida por um rígido sistema de marcação de gols e de cronometragem, ele oferece muitos prazeres e possibilidades. A fluência do jogo era e é ainda sua maior vantagem. A bola pode, afinal, se mover rapidamente, imprevisivelmente, em todas as direções possíveis, com grande variação na sua velocidade e distância, no chão, no ar, com ou sem efeito. Enquanto o futebol também oferece um espetáculo de lances de bola parada – pênaltis, faltas etc – eles são significativos em meio a um ambiente de jogo predominantemente móvel e seu movimento de livre fluxo.

O futebol – e neste caso o basquete é talvez seu único competidor sério – oferece um jogo em que o brilhantismo individual e a organização coletiva são igualmente destacados. O papel do goleiro no futebol, uma posição que ele compartilha com o hóquei e o handebol mas com poucos outros esportes, também reserva um lugar em um jogo de equipe para o solitário, o idiossincrático e o esquisito.

Portanto o futebol sempre teve a capacidade de atrair as multidões mas agora, no pós-guerra, a multidão era massivamente e incontestavelmente masculina, de classe trabalhadora e cada vez mais jovem. O medo de uma classe trabalhadora selvagem e imprevisível rondava as elites da Europa e do Rio da Prata no entreguerras e o futebol oferecia ao mesmo tempo uma metáfora e um exemplo prático do desafio social e político de lidar com esse novo elemento da sociedade. Comercialização e profissionalização não foram o único modelo para lidar com o problema. Na Alemanha e Escandinávia, apesar de todas as precondições para o surgimento do futebol profissional, o amadorismo perdurou. No caso da Suécia, isso aconteceu porque a classe operária só foi bem sucedida politicamente; no caso da Alemanha porque ela foi claramente derrotada. Mas antes que as forças do conservadorismo no futebol conseguissem se acomodar à classe trabalhadora, havia um grupo social e um desafio social que eles não iriam aceitar: as mulheres.

II.

Embora a documentação  seja escassa, parece claro que as mulheres jogavam algumas das muitas variantes do folk football ou seja, do futebol antes de se tornar um esporte regrado. Temos relatos da América do Norte indígena, da corte medieval japonesa e dos jogos de Terça-Feira Gorda na Inglaterra que sugerem mulheres jogando em partidas mistas ou entre elas. O mesmo não pode ser dito acerca dos primórdios do desenvolvimento do association football, do futebol regrado. Como ele foi cultivado nas public schools, que eram instituições exclusivamente masculinas, bem como eram a universidade, os clubes de old boys (ex-alunos de universidades e public schools) e as forças armadas, as mulheres não tiveram acesso imediato ao esporte. Desde o seu começo, o futebol moderno esteve amarrado a uma vasta concepção ideológica de masculinidade vitoriana que presumia que o esporte, assim como o restante da vida pública, era exclusividade do homem. Nos mais altos escalões da sociedade vitoriana, havia uma concepção mais inclusiva em termos da participação feminina em exercícios e recreação entre os progressistas e liberais: eram a favor de permitir às mulheres participar de certos tipos de esportes mais gentis como o tênis e o croquet. Mas não dos esportes que eram vistos como masculinos: o críquete, o rugby e o futebol estavam fora de cogitação. Mesmo quando algum tipo de acesso era possível, era necessário escalar um grande muro ideológico: a idéia de que o esporte fosse uma ameaça à feminilidade, fazendo mal à delicada constituição feminina, e uma aberração em relação à ordem natural das coisas. As mulheres de uma classe social mais baixa, quase todas presas à esfera doméstica na nova e rígida divisão sexual do trabalho que as sociedades industriais criaram, não tinham acesso a nenhuma forma de esporte ou exercício físico.

Mesmo diante de pressões estruturais e ideológicas, as mulheres de classe alta da Inglaterra entraram em campo. No início da década de 1880 os clubes femininos de críquete se tornaram populares e temos os primeiros relatos de jogos de futebol femininos em Inverness, na Escócia, em 1888 e depois de um jogo oficial patrocinado pela federação escocesa em 1902. Ao sul da fronteira, o primeiro jogo feminino na Inglaterra foi jogado em 1895 com um confronto entre South of England 7 a 1 contra North London.

Mas o jogo feminino mal havia começado quando veio a repressão. A federação holandesa, composta exclusivamente de homens, proibiu um jogo feminino entre o Sparta Roterdã e um time inglês em 1896 e em seguida proibiu todo e qualquer jogo de futebol feminino nos estádios de clubes afiliados à federação. Políticas de exclusão similares foram adotadas na Alemanha, enquanto por toda a Europa comentaristas sociais, médicos e esportivos afirmavam que o futebol era prejudicial à saúde da mulher. Na Inglaterra a FA decretou em 1902 que os times masculinos não podiam jogar contra os femininos. Na década anterior à Primeira Guerra Mundial, há algumas referências espalhadas ao futebol feminino na Inglaterra. Mas da mesma forma que a Primeira Guerra finalmente quebrou a resistência do establishment à questão do voto feminino, os abalos econômicos e sociais da guerra também abririam espaço para uma nova experiência com o futebol feminino.

Enquanto mais e mais da força de trabalho masculina era consumida no matadouro do front ocidental, ocorria um enorme aumento correspondente no emprego de mão de obra feminina durante a Primeira Guerra Mundial. Na Inglaterra as fábricas de munições eram uma destinação favorita para as jovens de classe trabalhadora procurando trabalho e foi lá que nasceu a primeira onda de futebol feminino. Na fábrica Dick Kerr em Preston, o time masculino estava mal e sofria a gozação das mulheres que lá trabalhavam. Dessa brincadeira veio o desafio para um jogo entre homens e mulheres na fábrica. Nascia o Dick Kerr’s Ladies. Elas começaram participando de jogos beneficentes com o objetivo de levantar recursos para os feridos na guerra e outros fundos de guerra. Logo se tornaram um sucesso, atraindo um público considerável. Por imitação, outros times de operárias se formaram, sobretudo no norte da Inglaterra. Em 1921 havia cerca de 150 times femininos quando foi criada a Ladie’s Football Association em Blackburn, com 25 equipes associadas. Os jogos eram bastante populares atingindo o pico no final da década de 1920 quando 53 mil pessoas foram ao Goodison Park ver as Dick Kerr’s Ladies derrotarem as St Helens Ladies.

O futebol feminino também chegou à França quando a guerra estava no final, combinando times de trabalhadoras como os da Inglaterra com times com mulheres de classe média de clubes esportivos. Por volta de 1918 havia cerca de uma dúzia de times femininos em atividade na região de Paris. Organizaram-se partidas entre as Dick Kerr’s Ladies e uma seleção francesa com jogos em Preston, Manchester e Londres. Mas da mesma forma que a elite masculina temia as consequência da entrada da mulher no mercado de trabalho e se assegurava de que elas voltassem para o trabalho doméstico no pós-guerra, também a FA temia a intrusão representada pelo jogo feminino.

Em 1921 a FA baniu as Dick Kerr’s Ladies e todos os outros clubes femininos dos estádios de clubes associados à FA, fazendo o jogo feminino regredir setenta anos. O futebol feminino foi relegado a um público específico em espaços privados, parques e campos municipais. Afastado de sistemas formais de treinamento ou finanças, o jogo foi reduzido a uma sub-cultura periférica e vista como estranha. Tendo concedido o voto, a sociedade europeia masculina não pretendia conceder nada mais. O futebol feminino, proibido pelo regulamento, foi então diminuído pela ideologia – a crença altamente difundida em uma cultura médica e científica que ainda na década de  1920 afirmava, em um periódico tão respeitável quanto a revista média The Lancet, que o futebol era muito rude e muito peridoso para o corpo feminino. O renascimento do jogo feminino teria que esperar estes argumentos caírem em descrédito e uma era em que a igualdade formal do sufrágio feminino fosse vista apenas como o começo e não como o fim do processo de conquistas de direitos por parte das mulheres.

III.

Em 28 de abril de 1923 o depois mítico estádio de Wembley foi inaugurado com a final da Copa da Inglaterra em que o Bolton Wanderers bateu o West Ham United por dois a zero. Por pouco não houve uma tragédia, porque o estádio foi literalmente invadido por uma multidão, sem falar em multidão igual que ficou do lado de fora e a partida só pode ocorrer por conta de uma intervenção policial que conseguiu afastar os espectadores ao menos o suficiente para que o gramado ficasse livre para os jogadores e pela boa vontade da massa. Para Goldblatt isso reflete uma era em que o futebol profissional, que já era o maior esporte do país, se tornou ainda maior. Em 1919, a Primeira e a Segunda divisão foram expandidas de 20 para 22 clubes cada uma. Depois, em 1920 e 1921 foi criada a Terceira divisão, ainda dividida em Sul e Norte. Nenhuma outra cultura futebolística, então ou agora, podia sustentar quatro divisões profissionais. Depois a Football League (Liga de Futebol) com seus 92 clubes em quatro divisões, alcançou toda a Inglaterra afora a periferia rural muito pobre de Cornwall e Cumberland. O público de cada uma das divisões cresceu sistematicamente durante as décadas de 1920 e 1930, afora alguns colapsos locais devido ao impacto da depressão do início da década de 1930 em algumas cidades. Mas não foi o tamanho da multidão e sim o seu comportamento o que foi celebrado. Era uma massa mas não uma multidão, demonstrando coletivamente humor diante da adversidade, controle sob pressão e respeito pela autoridade. O futebol era o jogo do povo e não havia nada a temer.

Pelo menos era assim que a Federação Inglesa e a Liga de Futebol queriam apresentar o futebol ao mundo. A Federação Inglesa havia feito a paz, embora com certo arrependimento, com as forças da comercialização e da profissionalização, mas nada mais naquela direção seria tolerado. A Liga de Futebol e os diretores dos principais clubes também estavam satisfeitos com o status quo. Eles tinham conseguido um público pagante sem esforço, o qual não parecia demandar nada mais em termos de serviço, investimento ou estímulo do que as arquibancadas de madeira e os terraços com uma barreira de proteção que lhes eram oferecidos. O teto salarial e o sistema de transferência davam aos clubes um imenso poder sobre seu plantel e colocava uma tampa efetiva na exploração comercial do jogo, um limite tornado ainda mais efetivo pelas rígidas restrições da FA em termos dos dividendos que poderiam ser obtidos pelos acionistas dos clubes. O futebol era um negócio, mas um negócio muito conservador e pouco usual. Os clubes não competiam uns com os outros por consumidores, não prestavam atenção aos desejos de seus torcedores nem davam muito lucro a seus donos. Era, em termos estritamente econômicos, um jogo de baixo risco, baixo investimento e baixo retorno que desconfiava da inovação e ignorava a competição. Era assim que as elites controladoras do futebol preferiam que ele fosse. Da mesma forma que o capital industrial britânico, elas seriam no devido tempo substituídas pelos métodos e pelas pessoas que elas tanto desprezavam.

A atitude conservadora e retrógrada da FA em relação ao crescimento do futebol feminino no pós-guerra era indicativa da sua política mais ampla. Vários incidentes demonstram isso: uma caça aos bruxas contra a existência de profissionalismo nos escalões mais altos do futebol amador levou à suspensão de 341 jogadores. Além disso, como se não tivesse mais o que fazer, a FA se opôs à realização de jogos aos domingos, ao uso de iluminação noturna e a uma maior participação da imprensa e do público nas decisões.

O entrelaçamento de futebol e apostas foi ferozmente combatido pela FA. O uso de estádios de futebol para corrida de cães foi proibido bem como o uso de loterias por parte dos clubes de torcedores como forma de arrecadar dinheiro. Em 1920 a FA conseguiu inclusive que o governo fizesse aprovar uma lei que proibia as apostas em jogos de futebol. Mas uma espécie de loteria muito inteligente, chamada pools, driblou a legislação e se transformou em uma instituição nacional, com mais de 6 milhões de pessoas participando por semana em meados da década de 1930. A Football League, que nada recebia, tentou quebrar essa indústria anunciando os jogos com somente dois dias de antecedência, o que inviabilizava a feitura dos cupons. A Football League passa a receber sua parte e tudo volta ao normal.

A Football League também não era amiga da ideia de transmitir jogos pelo rádio. Só depois de muita discussão com a BBC é que esta pode transmitir ao vivo um jogo de futebol pela primeira vez: Arsenal x Sheffield United. Nos quatro anos seguintes, cerca de 100 jogos foram transmitidos. O sucesso foi aumentado por um locutor bem popular, George Allison. Os ouvintes acompanhavam a movimentação dos jogadores de acordo com uma grade numerada (posição 1 etc) que vinha impressa no Radio Times. Mas havia uma oposição crescente a esta mídia na Football League, principalmente por parte dos clubes das divisões inferiores que temiam perder público para a cobertura radiofônica dos clubes mais importantes. Resultado: em 1931 a Football League proíbe totalmente as transmissões.

Ao mesmo tempo, a FA começa a transmitir a Copa da Inglaterra desde 1930. A FA procura vender a ideia da Copa da Inglaterra como um dos principais eventos da nação juntamente com o Natal do Rei, por exemplo. Como era comum a vinda de multidões de torcedores provenientes do norte, avaliados como impróprios para a propaganda da FA, ela começa a distribuir ingressos para outros clubes, instituições, para os amigos e amigos dos amigos. Em 1927 a FA embeleza o ritual da final ao introduzir o canto do hino religioso “Abide with me” (Fique comigo).

As estruturas internas dos clubes de futebol eram anacrônicas. A forma como o jogo era jogado era deixada inteiramente às decisões informais dos jogadores dentro de campo. Eles eram uma casta à parte, separada da diretoria de classe média dos clubes que dominava todos os outros detalhes do negócio, incluindo a escalação do time. As instruções aos jogadores praticamente se limitavam a “Entrem lá e façam o que vocês sabem”. No interior da equipe, hierarquias de idade e experiência predominavam e o que havia era uma aprendizagem obtida através da observação e da repetição do que era feito pelos mais velhos e mais experientes. O treino físico era leve e pouco sistemático: um pouquinho de corrida e um pouquinho de levantamento de peso. Trabalhos com bola e coletivos eram altamente restritos devido à bizarra convicção de isso faria o time ter fome de bola quando chegasse o dia do jogo (sábado). Antes da mudança na tática do impedimento em 1925, esta cultura fundamentalmente conservadora gerava pouca inovação tática ou técnica. Podem-se citar duas dentre poucas inovações: o uso pioneiro do arremesso lateral longo no início da década de 1920 e a perfeição com que o Newcastle de Bill McCracken utilizava a armadilha do impedimento. Contrastando com isso, o futebol profissional na Inglaterra era pródigo em produzir excelentes exemplares de jogadores duros, que eram chamados informal e carinhosamente de o “matador” do time. Frank Barson do Aston Villa era o arquétipo perfeito dessa ferocidade: conseguiu ser expulso no seu próprio jogo de despedida.

O preço deste conservadorismo era uma escassez de inovação, o prêmio era estabilidade. A dinâmica da competição e do dinheiro era controlada. Os clubes principais tentavam selecionar, atrair e reter os melhores jogadores encontrando formas engenhosas de driblar a política do teto salarial; mas isto não dava muito resultado. O sindicato dos jogadores era dócil diante desta política, só começando a pensar em uma greve geral no final da década de 1930.

As multidões podiam fugir ao controle. Carlisle United, Millwall e Queens Park Rangers foram clubes cujos estádios foram fechados na década de 1930 depois de incidentes relativos a desordem, arremesso de pedras e invasões de campo. Estes incidentes, todavia, eram muito raros. As únicas explosões de desordem pública e violência mais sérias ocorreram na Escócia, onde a divisão sectária de Glasgow permanecia.

O futebol escocês em geral, mas o futebol de Glasgow em particular, experimentou com regularidade explosões de desordem na multidão de baixa e alta escala na primeira década depois da Primeira Guerra. A própria cidade de Glasgow parecia sempre à beira de uma crise. A economia da cidade esteve em crise em boa parte do período entreguerras, as condições sociais eram excepcionalmente duras nos distritos mais pobres e o legado da industrialização precoce veio assolar as companhias em declínio, deixando muitos imóveis abandonados. Além disso, as divisões sociais entre protestantes e católicos criadas por uma imigração irlandesa de larga escala dos cinquenta anos anteriores eram inflamadas por movimentos políticos e pela difusão de um sectarianismo vingativo que caracterizou o surgimento do Estado Livre Irlandês em 1921.

Neste contexto, não surpreende que o futebol tenha se tornado uma arena na qual diferenças sectárias eram expressadas, aprofundadas e ocasionalmente transformadas em violência. Em Glasgow havia o fator adicional da existência, de longa data, de gangues da navalha que ocupavam a zona cinzenta entre crime organizado, valentões locais e proto-hooligans. Estas gangues eram muito presentes e importantes na cultura de rua da época. Isso piorou com o desenvolvimento dos “brake clubs”. Criados na década de 1880, foram os primeiros torcedores visitantes organizados da história do futebol. Inicialmente, grupos e torcedores podiam alugar, eventualmente comprar, algum meio de transporte puxado por cavalos para leva-los e trazê-los aos jogos “fora de casa”. Mas aquilo virava um pub ambulante. Na década de 1890 o Celtic podia se orgulhar de ter uma federação de “brake clubs”. No entreguerras eles cresceram em popularidade e se tornaram motorizados, massivamente aumentando seu raio de ação. O Rangers e outros clubes logo fizeram o mesmo, o que faz com que a presença de um bom número torcedores visitantes fosse uma característica do futebol escocês, aumentando a possibilidade de encontros violentos.

Na verdade o mais poderoso ataque ao status quo do futebol veio de Herbert Chapman, a figura central na invenção do moderno técnico de futebol. Embora tenha ganho três títulos na década de 1920 com o Huddersfield, é só quando ele se transfere para o Arsenal em 1925 que ele transforma a função de técnico. Chapman representava a introdução da racionalização fordista. A autonomia de Chapman significava controle absoluto sobre a seleção dos jogadores, das jogadas e das táticas. Afora os jogadores e um ou dois funcionários, ninguém mais podia permanecer no vestiário na meia hora que antecedia a partida. Jogadores que não conseguiam ou não queriam executar as suas ordens eram mandados embora. Além da sua personalidade forte, Chapman conseguiu se estabelecer desta forma no Arsenal por ter assumido um clube em grave crise. Uma vez bem estabelecido, Chapman pode dispor de meios financeiros e de um grupo de jogadores que lhe permitiu empregar uma série de táticas inovadoras e que foram muito copiadas.

A inovação tática de Chapman foi uma resposta à transformação da regra do impedimento em 1925. No pós-guerra houve um declínio cada vez maior do número de gols marcados no futebol inglês profissional. Pois havia a necessidade de existirem três defensores entre o atacante e o gol no momento do lançamento. Isso tornava fácil deixar os atacantes impedidos havendo defensores hábeis e atentos para se adiantarem no momento certo. Os clubes pressionaram e a International Association Football Board (que no Brasil conhecemos simplesmente como International Board) mudou a regra para apenas dois defensores. Com isso houve uma avalanche de gols, que aumentaram quase 50% nas temporadas seguintes, o que por sua vez levou à procura de novas táticas defensivas. Vários tentaram, mas Chapman foi o primeiro a idealizar uma resposta sistemática ao desafio com um time capaz de por em prática suas ideias. Seu sistema veio a ser conhecido como WM. Para começar o center-half (centro médio) passou a ser parte do sistema defensivo, sendo inserido entre os dois zagueiros e muitas vezes começou a ser chamado de “stopper”. Os outros dois jogadores de meio-campo (wing-halves ou alas) passaram a ter também tarefas defensivas além de fazerem a ligação entre a defesa e o ataque.

Na tática anterior, o 2-3-5, a linha de ataque tendia a avançar em bloco e não havia especialização de funções, nem em termos de participação no meio de campo nem em termos defensivos. Chapman diferencia os atacantes em termos de papéis a desempenhar, físico, talentos e treinamentos. Agora os dois pontas ficam colados na linha lateral e têm como função alçar a bola na área. O centro-avante agora tinha que ser maior, pesado e forte. Os dois outros atacantes eram os dois pontos no alto do M e além de fazer a ligação com a defesa, eram os cérebros do time, os homens de criação. O Arsenal de Chapman, portanto, exibia muitas das características da produção fordista: um alto grau de especialização das tarefas; sequencias sistemáticas e repetidas de tarefas; planejamento das tarefas; observação minuciosa e controle dos jogadores pelo treinador.

Apesar ou além de tudo isso, quando a bola estava em jogo o time de Chapman devia mostrar um certo grau de espontaneidade, reatividade e invenção que nenhuma linha de produção solicitava de seus operários. O Arsenal era, sobretudo, mestre no contra-ataque. Primeiro concedia espaço ao adversário, que se via preso em uma defesa altamente organizada, e com um excesso de jogadores no ataque. Quando retomava a posse de bola, o Arsenal usava bolas longas para explorar o espaço vazio e tinha jogadores velozes para fazer isso. A capacidade que o Arsenal tinha de aguentar a pressão, marcar no contra-ataque e novamente se defender fez com que ele fosse chamado de “O sortudo Arsenal”, mas não era sorte, eles estavam jogando exatamente como haviam planejado. As multidões pelo país afora odiavam essa equipe do sul, da capital, moderna e metropolitana.

Além dessa inovação tática e do desenvolvimento da autonomia do técnico, o incansável Chapman contribuiu de outras maneiras para o desenvolvimento do futebol moderno. Ele escrevia uma coluna regular e com opiniões bem marcadas para o Sunday Express. Deste púlpito, Chapman pregava a introdução de inúmeras inovações práticas e tecnológicas: jogos com luzes noturnas, o uso de bolas brancas, o desenvolvimento de gramados artificiais, camisas numeradas e relógios públicos nos estádios marcando quanto faltava de tempo para terminar cada tempo de partida. Todas eram pensadas como maneiras de aumentar o apelo do futebol e melhorar a qualidade do espetáculo que era oferecido. A FA, que não se interessava por nenhum dos dois objetivos, se opôs a quase todas as ideias de uma forma ou de outra. Chapman também entendeu o potencial da publicidade e da imprensa. Foi ele que conseguiu que a estação de metrô mais perto do estádio do clube fosse renomeada Arsenal. Conseguiu que uma atriz (Anna Neagle) e um diretor (Herbert Wilcox) famosos fossem a um jogo em Highbury e divulgou isso na imprensa amplamente.

Nenhuma figura importante do futebol inglês antes da Segunda Guerra Mundial foi capaz de alcançar o grau de domínio político de um clube, de controle tático, de modernidade no treinamento e na direção do time que Chapman alcançara. Somente em 1938, quase oitenta anos depois da fundação da FA é que Stanley Rous publica o primeiro livro da FA sobre treinamento. No Newcastle United os diretores ainda escalavam o time na década de 1950 e a seleção inglesa só consegue um técnico nos moldes de Chapman com Alf Ramsey no início da década de 1960. A centelha de inovação que o futebol inglês era capaz de gerar era extinta pelo conservadorismo sufocante, pela inércia e complacência de seus gestores. O futebol europeu, sem estas limitações, da convenção e da auto-confiança proveniente de uma dominação passada, estava faminto por ideias e Chapman era parte de uma rede cosmopolita de treinadores de futebol entusiastas que adotaram e absorveram as suas ideias, bem como geraram novos modelos táticos e de treinamento. Dentre as figuras mais importantes desta rede tínhamos Jimmy Hogan em Budapeste, Vittorio Pozzo em Turim e Hugo Meisl em Viena.

Mas não havia uma simples convergência de estilos entre eles. Na verdade, sob condições de profissionalismo e alta competição, havia uma grande diversificação de estilos de jogo já que os times e jogadores tentavam inovar e se diferenciar de oponentes mais estáveis e previsíveis.

O futebol inglês, normalmente visto como mais monocromático do que era na realidade, mostrou ser um ponto de referência para o restante do mundo. O estilo inglês era visto como sendo predominantemente físico, quase bruto. Ele se baseava em muita corrida e dedicação e fazia amplo uso de cruzamentos, cabeçadas e bolas longas. Na Europa Central, a densa rede de interconexões pessoais e esportivas entre Viena, Budapeste e Praga produziu um estilo de jogo diferente que se baseava conscientemente no “jogo de passes escocês”. Os técnicos claramente enfatizavam a técnica e o controle de bola mais do que na Inglaterra e se pedia aos jogadores, nas palavras de Jimmy Hogan, para “manter a pelota no tapete”. Era chamado pelos contemporâneos de Sistema vienense ou Escola do Danúbio.

Na América do Sul, a mesma herança escocesa transformou-se em um elemento chave do emergente futebol platino: passes curtos, bom controle de bola e lances envolvendo tabelinhas e vários jogadores, o que era objeto de elogios por parte dos analistas da época. Mas além disso os futebolistas sul americanos adicionaram uma maior ênfase na habilidade individual, com os jogadores desta região alegando ter criado a bicicleta e as cobranças de falta com efeito, além de concederem um lugar de honra para o drible.

Ambos os modelos têm um impacto significativo no jogo italiano, onde um quarto modelo de jogo se desenvolve. Na década de 1920, o futebol italiano importou até 60 jogadores por temporada da Europa Central, bem como técnicos. Simultaneamente, a Itália também bebeu na fonte sul americana, importando argentinos, uruguaios e brasileiros até meados da década de 1930. Com esta mistura de influências e sob a égide do influente Vittorio Pozzo, nasceu um método italiano diferenciado – il Methodo– depois chamado de la Sistema. A contribuição italiana foi dupla. Em primeiro lugar a nomenclatura das posições tinha uma complexidade e uma precisão inigualáveis. Por exemplo: à época e ainda hoje, há vários tipos de laterais: o terzino marcatore(lateral marcador) e  terzino fluidificante (lateral ofensivo) que tem licença para atacar. Em segundo lugar, o futebol italiano era mais sistemático na sua análise das táticas a nível micro do que em outras culturas futebolísticas: a marcação cerrada era premiada, a negação de espaço aos jogadores era buscada.

Ao lado destas primeiras escolas do futebol, encontramos inovação, emulação e desenvolvimento em outros pontos da Europa. Na Suiça, Karl Rappan foi um dos primeiros técnicos a experimentar o uso do líbero – um jogador ultra-defensivo posicionado atrás da linha de defesa convencional. Na Alemanha Sepp Herberger era uma espécie de versão internacional de Herbert Chapman. Suas equipes jogavam uma versão muscular do WM de Chapman. Além disso, Herberger conquista a autonomia tática e  o controle da equipe que Chapman havia conseguido no Arsenal.

 

IV.

Em 1924, Viena torna-se o primeiro lugar fora da Grã-Bretanha a ter uma liga profissional de futebol. Logo os húngaros e os tchecos seguem o exemplo da vizinha, com medo de perder jogadores para a capital austríaca. Com o desmembramento do Império Austro-Húngaro após a Primeira Guerra Mundial, Viena, então com 1,8 milhões de habitantes, torna-se a capital de um país de 6,4 milhões de habitantes, governada por um partido social-democrata que fez da capital o laboratório, a peça de propaganda e o orgulho da nação. Criaram-se programas massivos de habitação popular e políticas culturais. Viena, moderna e cosmopolita, era o centro do futebol austríaco.

A ecologia social e demográfica de Viena criou uma geração de meninos e rapazes para os quais o futebol era o centro da sua vida social. O intenso desenvolvimento industrial de Viena no final do século XIX e início do XX ocorreu nos subúrbios proletários com muito espaço livre para peladas e para jogos de equipes não oficializadas. Em dezembro de 1918 o governo decreta a jornada de oito horas de trabalho, o que proporciona tempo para assistir e jogar. A federação austríaca de futebol vê o número de jogadores registrados quase triplicar em apenas sete anos, passando de 14 mil em 1914 para 37 mil em 1921. Agora os operários também podem formar clubes oficializados para jogar na liga austríaca. Croatas, húngaros e poloneses foram embora. Mas ficaram os eslovacos, representados pelo SK Slovan e os judeus do Hakoah. O público dos jogos internacionais quadruplicou antes de 1925. As multidões eram cada vez maiores nos jogos da liga e a presença do proletariado preocupava a imprensa burguesa, que criticava o comportamento violento dos torcedores, que segundo ela arremessavam pedras, arrancavam postes de madeira e brigavam de faca na mão.

Os social-democratas criaram uma liga alternativa voltada para a classe trabalhador, tentando desviá-la do nacionalismo e da comercialização, voltando-a para um ethos socialista e amador, mas ela não deu certo. Mas na liga havia clubes que simbolizavam a classe trabalhadora como o Rapid Viena, que tinha origens operárias, torcida operária e um estilo operário de jogar, marcado pelo espírito de luta incansável. Havia também clubes da burguesia liberal, da intelligentsia judaica e dos profissionais liberais como o FK Austria.

Foi neste meio futebolístico tão forte que surgiu o primeiro burocrata e pensador do futebol significativo, criador da liga profissional austríaca: Hugo Meisl. Ele foi a inteligência organizadora por trás do crescimento do futebol vienense. Filho de uma família judia de classe alta, Meisl jogou no Wiener Amateure quando adolescente enquanto estudava na academia comercial, treinando para uma carreira de negócios. Trabalhando como bancário, esta ocupação nunca tomou mais do que uma fração do seu tempo e da sua energia. Foi secretário da federação austríaca e depois técnico da seleção de 1912 até a sua morte em 1937. Meisl também foi o criador do Wunderteam austríaco que maravilhou o mundo do futebol internacional no início da década de 1930.

Meisl via a introdução do profissionalismo de forma franca e simples: em termos práticos ele estava apenas formalizando o que já estava em operação. Apesar disso, não havia certeza quanto ao sucesso comercial. A ampla e sofisticada cultura futebolística de Viena tinha conexões íntimas com a intelligentsia da cidade e com as culturas populares do cinema e da música, o que possibilitou uma bem sucedida comercialização do jogo e a criação de um estilo para o futebol do Danúbio. O espaço onde se deu esta fusão cultural foi o mesmo onde tudo acontecia em Viena: o Café. O romancista Arthur Schnitzler, o músico experimental Schoenberg, Sigmund Freud e o filósofo Wittgenstein, todos frequentavam e desenvolviam suas ideias nos cafés vienenses.

No caso do futebol, o Ring Café, originalmente o refúgio dos jogadores de críquete vienenses, torna-se o centro do futebol local, sendo frequentado por torcedores de todos os clubes, sendo descrito por um contemporâneo como “Uma espécie de parlamento revolucionário de amigos e fanáticos pelo futebol”.

O primeiro campeão não foi o Rapid do portentoso centroavante Josep Uridil, cujo codinome era “Tanque”. Foi o Hakoah Viena, a principal equipe judaica. Havia muito debate na comunidade judaica acerca da prática de esportes. Para as gerações mais antigas de judeus de classe alta e ortodoxos, o esporte era visto como coisa de malandros e que devia ser evitada a todo custo. Max Nordau, um intelectual sionista, defende a prática dos esportes com uma concepção que ele chama, sem dúvida inspirado no Cristianismo Muscular, de Judaísmo Muscular.

O Hakoah era mais do que um clube de futebol, mas a sua face mais conhecida era do time que disputava o campeonato austríaco. Sendo hostilizado e perseguido pelos torcedores adversários, que arremessavam pedras, ameaçavam o goleiro e por aí vai. No verão de 1925 o Hakoah faz uma excursão à América, onde atrai grandes públicos. A maior parte dos jogadores assina contratos nos Estados Unidos e não retorna a Viena. O Hakoah sobreviveu, mas nunca mais foi o mesmo.

Na Viena do entreguerras, o novo ídolo vai ser Matthias Sindelar, que era tão franzino que era chamado de “Papel”. A força bruta de Uridil é substituída pela inteligência. De Viena virá o futebol etéreo e cerebral de Sindelar e o Wunderteam, o time maravilhoso.

http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/ball-round-capitulo-6-paguem-e-joguem-o-jogo-comercializacao-futebol-global-1914-1934-parte/

http://www.ludopedio.com.br/arquibancada/the-ball-is-round-capitulo-7-as-regras-do-jogo-o-futebol-internacional-e-a-politica-internacional-1900-1934-parte-b/