/The ball is round, Capítulo 6: Paguem e joguem o jogo: a comercialização do futebol global, 1914-1934 – Parte B

The ball is round, Capítulo 6: Paguem e joguem o jogo: a comercialização do futebol global, 1914-1934 – Parte B

 

The ball is round, Capítulo 6: Paguem e joguem o jogo: a comercialização do futebol global, 1914-1934 – Parte B

Marcos Alvito

V.

O futebol profissional na América do Sul nasceu de um tumultuado processo de desenvolvimento econômico emergente e mudança social. A ponta do processo esteve na Argentina e no Brasil. Ao final da Primeira Guerra a Argentina era uma sociedade transformada. Nos cinquenta anos depois de 1870 a sociedade predominantemente rural e agrária tinha se tornado urbana e industrial. Nas cidades, quase metade dos habitantes eram imigrantes. Politicamente, a nação havia sido transformada pela introdução do sufrágio universal (masculino) em 1912, o que pôs fim à longa dominação por parte das elites fundiárias e conservadoras da Argentina. Estas elites tinham esperança de conquistar muitos dos novos eleitores para a sua causa, mas o peso eleitoral das classes médias e da classe trabalhadora nas cidades levou a Unión Cívica Radical (UCR) ao poder e fez do seu líder Hipólito Yrigoyen presidente em 1916. Entretanto, a exclusão de mulheres e imigrantes do voto e as perturbações econômicas do pós-guerra viram muitos aderirem às cores do anarquismo, sindicalismo e unionismo radicais, uma onda que apoio uma greve geral nacional em 1918. Os antes populistas da UCR mandaram o exército e a polícia para acabar com o movimento. Eles o fizeram impiedosamente. Assim foi reprimido o crescimento do poder da classe trabalhadora argentina mas só temporariamente. À medida em que a estrutura social e econômica da Argentina consistentemente desenvolveu um caráter mais industrial e de classe trabalhadoras, os sucessivos presidentes da UCR foram desafiados pelo crescimento do socialismo e do comunismo e por uma cultura de classe operária cada vez mais confiante e vibrante nas grandes cidades.

O futebol estava no coração desta cultura. O imenso crescimento na prática, nos que assistiam e seguiam o jogo, experimentado antes da Primeira Guerra, se manteve no pós-guerra. Além de quatro divisões oficiais e inúmeras competições locais independentes e também de juniores, Buenos Aires tinha também uma liga dos marinheiros mercantes, uma liga comunista e uma liga socialista. Os clubes mais importante continuavam a angariar sócios pagantes e a construir amplas dependências sociais e esportivas. O público regularmente passava dos 10 mil e os velhos estádios e campos não davam mais conta. A combinação de uma competição feroz, um conjunto de jogadores predominantemente de classe operária e o fato dos clubes terem dinheiro e poder, tornou inevitável o uso de pagamentos por debaixo do pano, despesas reembolsáveis inflacionadas e falsos trabalhos, maneiras de driblar o amadorismo.

Havia interesses políticos envolvidos também. Os políticos argentinos compareciam a jogos internacionais e buscavam se associar às vitórias da seleção desde a virada do XIX para o XX. Na década de 1920 eles começaram a voltar a sua atenção para os clubes, que ficavam felizes em ter presidentes e diretores influentes, participantes de altos cargos políticos. Em 1926 o próprio presidente da República serviu de mediador diante do conflito entre duas ligas de futebol em Buenos Aires, divididas sete anos antes após uma série de conflitos administrativos e financeiros. Que o futebol havia capturado a imaginação popular isso estava fora de questão, mas como, se é que era possível, poder-se-ia utilizá-lo a favor do projeto político populista da época? O dilema ideológico central do movimento radical (UCR) da década de 1920 era como unir sua base eleitoral formada de muitas classes sociais diferentes. Onde eles poderiam encontrar e como poderiam formas novas identidades coletivas para responder às ameaças da Esquerda? A solução óbvia foi um senso de identidade nacional compartilhado. Mas o que era a Argentina? O que era ser argentino? O legado cultural herdado pelos nacionalistas do final do século XIX localizava a alma argentina nos pampas, um território domado e controlado pelos solitários vaqueiros-gauchos como Martín Fierro, cujo machismo austero era o arquétipo de uma vida rural heroica; isto talvez ainda funcionasse no campo, mas nos barriosdensamente povoados de imigrantes das cidades, nas casas de tango do Parque Patricios, nos cinemas de Flores e nas fábricas de Avellaneda era risível. Ao fim da década de 1920 a Argentina substituiu Martín Fierro pelo jogador de futebol Guillermo Stábile, à medida em que o segundo se tornou o ícone do estilo argentino de jogar futebol, da nova masculinidade e da nova nação.

Os intelectuais orgânicos do futebol, que transformaram o material bruto do futebol porteño em toda uma mitologia nacional, foram primordialmente os jornalistas da revista El GráficoEl Gráfico foi fundada em 1919 como uma revista semanal ilustrada cobrindo política, esportes, notícias e fotos de dançarinos e cantores. Em 1921 só tinha esporte. Em 1930, El Gráficovendia 100 mil exemplares somente em Buenos Aires e havia se tornado a Bíblia dos esportes na América Latina, sendo vendida em capitais de outros países. Seu tom era normalmente moralista, geralmente educativo e conscientemente moderno. Sobretudo, desenvolveu um modelo de jornalismo esportivo que era histórico e comparativo. Grandes equipes e grandes jogadores de todas as eras eram caracterizados e avaliados, linhagens e idades de ouro estavam constantemente sendo construídas e reconstruídas. A partir daí começou a haver uma valorização das virtudes próprias do futebol platino – argentino e uruguaio, cada vez mais afastado do modelo britânico, com mais espaço para o individualismo, mais ágil, criativo e atraente.

Portanto, o futebol criollo e a masculinidade passaram a ser definidos em oposição à Inglaterra e à “Englishness” (qualidade daquilo que é inglês). Os ingleses eram focados, combinando a organização coletiva com a força física – os pré-requisitos de uma força trabalhadora industrial lidando com um produto industrial. No Rio da Prata, onde a industrialização ainda não se fizera totalmente presente na economia, paisagem ou ritmo de vida, a masculinidade era mais inquieta, impetuosa e individualista, deixando de lado a força bruta em favor da agilidade virtuosa. Foi durante esta época que as metáforas musicais – times como orquestras, craques como maestros, pontas como solistas – foram primeiramente utilizadas e houve o reconhecimento, na verdade a demanda, pelo futebol como arte.

Lorenzo Borocotó, o editor uruguaio do El Gráfico, argumentou que este novo estilo de jogo era proveniente da experiência peculiar do futebol em Buenos Aires. Ali, o pibe – o menino ou malandro – era o jogador arquetípico. Vindo das famílias mais pobres dos barrios, jogando com uma bola de meia. Os terrenos baldios das grandes cidades eram a tela física em que a imaginação e a energia do pibe podiam se expressar. Normalmente se vendo em espaços apertados dentre um grande número de jogadores em peladas, sem a proteção das regras ou de um juiz, o pibe foi forçado a inventar novas jogadas e maneiras de jogar. Acima de tudo, ele tinha que usar a astúcia e a inventividade aprendidas na vida das ruas.

Sendo assim, no começo da década de 1930, o futebol argentino havia assumido um lugar na cultura nacional que equivalia ao lugar por ele ocupado na Inglaterra e na Escócia. Pode-se até dizer que o futebol na Argentina era até mais proeminente, pois na Inglaterra ele sofria a competição do cricket e na Escócia do rugby. Na Argentina o jogo dava lucro e só não era oficialmenteprofissional, mas logo vai haver esta formalização quando os principais jogadores forem perdidos para o futebol italiano.

Em 1925 a sangria começa com a ida do atacante Julio Libonatti para o Torino. Raimondo Orsi parte para o Juventus em 1928, no ano seguinte o atacante Renato Casarini e por aí vai… Uma liga sem estrelas logo perde sua audiência, mas como mantê-las em casa? A ideia do profissionalismo ganhava força.

A greve dos jogadores de 1931 foi a gota d’água. Eles reivindicavam liberdade de contrato e marcharam até o palácio presidencial. O Presidente Uriburu mandou eles conversarem com o prefeito de Buenos Aires. Sua excelência mostrou a eles o seguinte: a questão toda mostrava que eles não podiam continuar a ser amadores, porque amador não tinha contrato. Doze clubes se declararam profissionais um mês depois. River Plate e Independiente, defensores do ethos amador e aristocrático resistiram mais algumas semanas. A primeira liga totalmente profissional começou em maio. O futebol argentino havia atingido um ponto de modernidade futebolística sem paralelo fora da Europa. Os jogadores eram pagos abertamente e não por debaixo da mesa, mas não ganharam a liberdade contratual. O Uruguai e o Chile, que tinham experimentado os mesmos debates e pressões numa escala menor, não tiveram escolha senão seguir o exemplo argentino sob pena de ver seus jogadores debandarem.

No Brasil, o profissionalismo foi introduzido, da mesma forma que no Uruguai ou na Argentina, como uma forma de mini luta de classes em que os jogadores, predominantemente de origem pobre, lutaram contra as elites que controlavam o jogo e os clubes, demandando melhor pagamento e condições melhores. Entretanto, no Brasil, está luta foi sobreposta e de certa maneira englobada por uma clivagem social adicional – a raça. O Brasil possuía a maior população afro-descendente das Américas e havia abolido a escravidão somente em 1889. Desigualdade e racismo eram endêmicos. Os ex-escravos do campo, recém-emancipados, não possuíam terras e aqueles que vinham para as cidades se descobriam no lugar mais baixo da escala econômica e social. A aristocracia branca vivia com medo da revolta dos sem terra no campo e da contaminação de suas linhagens no quarto de dormir. Jogar futebol com os negros era considerado uma humilhação. Quando o América contrata um talentoso jogador negro, o estivador Manteiga, nove jogadores do time se recusam a entrar em campo. Mesmo quando jogadores negros e mulatos estava agora regularmente participando dos campeonatos carioca e paulista, em 1921 o presidente da República proibiu jogadores negros de representar o Brasil na Copa América de Buenos Aires.

Tudo mudou quando o Vasco ganhou o campeonato carioca em 1923. Antes disso, todos os times que haviam ganho o campeonato eram brancos. O Vasco ganhou com quatro jogadores negros. O clube foi fundado por imigrantes portugueses em 1898 como um clube de remo e incorporou o futebol em 1915. Em contraste com Flamengo e Fluminense, seus membros eram predominantemente homens de negócios gerindo pequenas firmas familiares. Eles e seus filhos, embora desejosos de praticar esportes, não tinham o tempo livre dos aristocratas, levando o clube desde os primórdios a recrutar e contratar jogadores fora do seu círculo social. Além disso, no trabalho, na rua e no jogo, o Vasco vivia mais próximo dos pobres do Rio. Para os ambiciosos sócios do clube, não havia barreiras sociais ou raciais que impedissem a escalação de jogadores negros. O Vasco vence a Segunda divisão em 1922 e o Campeonato Carioca no ano seguinte.

Chocados, ameaçados e humilhados, os grandes clubes se retiraram da liga reclamando do veneno do profissionalismo e criando a sua própria liga, enquanto o Vasco e os pequenos clubes jogavam separadamente. Destemido, o Vasco iniciou a construção do maior estádio do Rio; o Estádio de São Januário, inaugurado em 1927 o maior no país até a construção do Pacaembu em 1940. As multidões queriam ver o Vasco, que tinha uma equipe fantástica à época. Flamengo, Fluminense e Botafogo foram obrigados a capitular e uma liga unificada foi criada em 1926. Mas a elite não fez por menos. Exigiu que todos os jogadores preenchessem um complexo formulário antes dos jogos, que incluía detalhes do local de nascimento, do local de nascimento dos pais, emprego, educação e nacionalidade. Era uma tentativa flagrante de excluir os pobres e iletrados do campo, mas o Vasco respondeu enviando seus jogadores para cursos relâmpago de escrita. A liga também criou uma comissão permanente de inquérito acerca das finanças dos jogadores, emprego e meios para tentar conter o profissionalismo escondido e os pagamentos por debaixo do pano. Os diretores do Vasco simplesmente providenciaram empregos fantasmas para os seus craques em seus negócios.

Em São Paulo a questão do profissionalismo foi bem menos problemática. As elites da cidade eram esportistas mercantis e não os aristocratas arrogantes e olímpicos do Rio; as relações de mercado e o trabalho assalariado não lhes causavam nenhuma preocupação. Mas São Paulo era uma sociedade bem mais branca do que o Rio. Seus novos clubes emergentes, como o Corinthians e o Santos, eram certamente proletários. Palestra Itália (depois renomeado Palmeiras) refletia a grande comunidade italiana na cidade e o Corinthians atraía os sírios, mas os jogadores negros estavam quase completamente ausentes. As elites de São Paulo podiam conceder o campo de futebol aos pobres sem ter que enfrentar questões de raça.

Da mesma forma que na Argentina, foi a ida de jogadores para o exterior que fez a balança pender para o profissionalismo. Os primeiros jogadores a irem para a Itália foram os irmãos Fantoni no início da década de 1930. Iam também para a Argentina, onde o vitorioso time do San Lorenzo chegou a ter cinco brasileiros. Jogadores negros, todos originalmente provenientes do Rio, começaram a ir para o exterior no mesmo período: Fausto e Jaguaré vão para o Barcelona. Domingos da Guia vai para o Uruguai em 1932.

Estava na hora, disse Oscar Costa, presidente do América, de admitir que os jogadores eram pagos e de assumir o profissionalismo. Em 1993 tanto o campeonato carioca quanto o paulista eram profissionais, o que depois também acontece em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná. Por todo o país, agora havia uma possibilidade para o jovem mulato ou negro, ao menos eles poderiam tentar. No primeiro jogo profissional do campeonato paulista, em 1933, o São Paulo ganhou de 5×1 do Santos com um gol de Friedenreich, então com 38 anos. Friedenreich, filho de pai alemão e mãe negra, tinha sido o principal atacante brasileiro da década de 1920. Sua pele branca o havia mantido na seleção brasileira mesmo quando os políticos clamavam pela exclusão de negros; ele marcou o gol da vitória na final da Copa América de 1919 (então Campeonato Sul-Americano) e foi o primeiro brasileiro a marcar mil gols. Todavia ele passou toda a sua carreira envergonhado por seu cabelo crespo que ele sempre tentou alisar e controlar antes de jogar. É bom pensar que desta vez ele não se sentiu mais embaraçado.

VI.

O futebol, seja na Europa Central ou na América do Sul, era o jogo das grandes cidades. O que distingue o Mediterrâneo ocidental, o terceiro polo de crescimento do futebol profissional – é que o jogo se desenvolveu como um fenômeno econômico e social ao mesmo tempo em que se tornou uma instituição nacional; mas ele fez isso em países em que as instituições nacionais e identidades nacionais eram fracas ou eram contestadas de alguma forma. Na Espanha, onde o nacionalismo regional estava em plena força e o futebol bem alinhado a ele, o time nacional e o campeonato nacional geraram o conflito maior. Ocasionalmente, o futebol podia funcionar como instrumento de unidade, mas geralmente servia como uma arena para o conflito e a dissidência. Na Itália fascista o futebol não era considerado um mero reflexo de correntes sociais, mas como um instrumento ativo de construção nacional. Mussolini pode não ter sido capaz de fazer os trens funcionar no horário mas os fascistas souberam muito bem fazer a tabela do campeonato. O caos administrativo do futebol italiano no pós-guerra foi transformado em uma década numa das ligas de futebol mais fortes; boa o bastante para alimentar a maior força do futebol na década de 1930. A separação do Sul empobrecido da vida nacional foi ao menos parcialmente remediada pela criação de um campeonato nacional de verdade. Na França o futebol cresceu paralelamente à lenta de difusa industrialização da economia da França rural profunda e suas cidades pequenas foram trazidos para o século XX duas ou três décadas depois.

Embora a relação do futebol com a questão nacional variasse, todos os três países criaram uma cultura futebolística de massa e uma liga profissional com uma década de distância entre eles. Apesar do seu relativo atraso econômico, a Espanha foi o primeiro dos três a criar uma liga nacional em 1928, tendo reconhecido e depois legalizado o profissionalismo desde 1926. A ausência de qualquer grupo significativo de amadores aristocratas no futebol espanhol removeu o obstáculo mais importante ao profissionalismo. Ao contrário, as elites de negócios das provinciais e os profissionais liberais que representavam o núcleo fundamental dos sócios pagantes nos clubes mais importantes eram a força dinâmica da comercialização do futebol espanhol. Uma classe que muito dificilmente teria grandes problemas morais com o princípio do trabalho livre assalariado. Na verdade, na Europa quase somente a Espanha possuía uma política sem teto salarial para seus jogadores. Os italianos vieram em seguida em 1929, quando sua primeira temporada nacional foi disputada. Isto exigiu a mão forte de Mussolini e de sua autoritária burocracia esportiva, embora tivesse sido feito com alguma dúvida acerca das consequências práticas e morais da profissionalização que ele calmamente introduziu depois do primeiro campeonato nacional. Em 1932 a França, a despeito de ter uma economia mais avançada e raízes futebolísticas mais antigas e profundas, foi a última a legalizar o profissionalismo e criar uma liga nacional. Este atraso pode ser explicado pelo padrão francês de industrialização, que deixou partes significativas do país intocadas; ela também possuía um grupo de aristocratas maior e mais influente socialmente do que a Espanha ou a Itália. A despeito das aparências, a realidade do futebol francês era a do “amadorismo marrom”. A persistente hipocrisia da elite francesa, em questões de sexualidade, por exemplo, tornada estável pela rígida separação entre costumes públicos e privados, maneiras e obrigações, foi reproduzida no futebol onde uma tardia, lenta e difícil introdução do profissionalismo foi acompanhada por um período longo e escancarado de predomínio de um sistema de pagamentos encobertos, por debaixo do pano.

O relacionamento bifronte do futebol espanhol com a nação espanhola foi exemplificado por dois incidentes: o torneio olímpico de Antuérpia em 1920 e o fechamento de Les Corts – o novo estádio do Barcelona – em 1925. A guerra pode tornar o futebol popular mas não faz bem ao futebol. Morte, ferimentos e desnutrição são inimigos do jogo. A Espanha, neutra em ambas as guerras, atingiu dois dos seus momentos futebolísticos internacionais mais importantes no pós-guerra: na Olimpíada de 1920 e na Copa de 1950. O time que foi enviado para a Olimpíada de Antuérpia foi a primeira seleção espanhola a jogar em algum lugar, incluindo a Espanha, que conseguiu um surpreendente segundo lugar. Sobretudo porque os dois primeiros jogos foram marcados pela disputa interna acerca da participação de bascos e outros e em que proporção. Dentro de campo, todavia, o time espanhol foi coeso e aguerrido, justificando a alcunha de La Furia Española.

O pós-guerra, embora tenha sido bom para o futebol espanhol, não serviu para acalmar as disputas sociais e políticas do país. Um golpe de Estado orquestrado pelo General Primo de Rivera com o apoio da casa real, dos militares e de grupos conservadores deu fim a governos fracos e pouco efetivos. Ele dissolveu o parlamento, baniu os comunistas e os sindicatos, anulou medidas que caminhavam na direção da autonomia regional e impôs um governo autoritário e um planejamento econômico similar ao de Mussolini na Itália.

Nacionalista e centralista, o governo logo se viu em meio às disputas futebolísticas na Catalunha. Em Barcelona, os dois times principais, o FC Barcelona e o Real Espanyol, já representavam fortemente o nacionalismo catalão e espanhol, respectivamente. Os sócios e diretores do Barcelona estava dentre os muitos que assinavam petições dirigidas ao governo central demandando a independência catalã no início da década de 1920. Os torcedores do Espanyol ajudaram a fazer uma contra-petição na liga com militantes nacionalistas. A pujante economia da Catalunha gerava públicos e capital suficientes para o Barcelona construir o novo estádio Les Corts em 1922, rivalizado pelo Espanyol com a construção do Sarria com a doação dos magnatas têxteis La Riva em 1923. A competição acabou em conflito no derby de 1924, quando o meia-campista do Barça Pepi Samitier foi expulso, debaixo de uma chuva de moedas no campo. O jogo foi interrompido e o novo governo militar da cidade ordenou que fosse jogado novamente a portas fechadas, um ato que somente transferiu a briga dos torcedores para fora do estádio. A intervenção do governo de Primo de Rivera na vida catalã não se restringiu ao futebol. A administração centralista de Castela também atingiu outras formas de independência cultural e de diferenciação, aprovando leis que baniam o uso da língua catalã na vida pública e no sistema educacional.

A identificação de Barça e Espanyol com seus respectivos aliados políticos só se completou em 14 de junho de 1925. Naquela noite, o Barcelona havia providenciado um jogo beneficente em apoio a uma sociedade coral catalã, Orfeó Català, que havia sido um núcleo importante do renascimento da alta cultura catalã desde meados do século XIX. O governo estava pronto a permitir o jogo desde que não fosse feita nenhuma declaração pública ou prestada qualquer homenagem. Os irmãos Witty, co-fundadores do Barcelona, convidaram uma banda dos Royal Marines, que sem saber de nada tocam o hino espanhol antes do jogo, debaixo de vaias e ofensas. O governo de Madri achou o episódio um ato de traição e humilhação. Multaram o clube e seus diretores; fecharam o estádio e o clube por seis meses; sugeriram que o presidente do clube, Hans Kamper, abandonasse o país, o que ele fez. Agora o vínculo do Barcelona com a causa do nacionalismo catalão, que sempre foi grande, tornava-se inseparável.

O admirável crescimento e popularidade do futebol espanhol baseava-se em sua capacidade de combinar identidades e conflitos ferozes a nível nacional, regional e urbano com uma única cultura futebolística. Mas o sucesso também derivava de uma geração precoce de jogadores habilidosos que ofereciam uma potente mistura de habilidade e glamour, associados a uma pequena elite de diretores altamente comerciais e ambiciosos. O Real Madri, que adquiriu a patronagem real em 1920, era um dos mais comerciais e ambiciosos. Em 1924 eles inauguraram seu novo estádio Chamartín na área que logo viria a ser a mais exclusiva da capital e bateram o Newcastle United por 3 a2. O atacante principal do Real e da Espanha em meados da década de 1920, o basco José María Peña, foi comprado do Arenas Club de Getcho e os dois jogadores mais celebrados do Real vieram do Barcelona: Ricardo Zamora e Pepe Samitier.

Zamora e Samitier tipificavam muito do que diferenciava esta época do futebol espanhol. Zamora, em particular, era uma instituição nacional, um exemplo vivo do estilo e do machismo espanhóis. Talvez o maior goleiro da época, era também um verdadeiro profissional. Foi do Barcelona para o Espanyol, voltou ao Barcelona e se transferiu para o Real Madrid sempre em busca de um salário melhor. El Divino, como era conhecido, era descrito como ‘mais famoso do que Garbo e mais bonito’. Fora do campo exibia um excesso boêmio, abusando de cigarros, vida noturna e conhaques finos. Pepe Samitier, que levava uma vida parecida, não tinha a aparência e o carisma do colega, mas cativava a Espanha com o seu jogo. Considera-se que ele foi um dos primeiros jogadores que viam todo o campo e cada jogador nele presente, orquestrando as jogadas do seu time a partir do meio de campo.

Na Itália, o futebol sofreu um golpe maior com a guerra e o período imediatamente posterior. Embora a Itália estivesse no lado vencedor em 1918, a guerra exauriu seus recursos econômicos, a confiança e o espaço de manobra das suas elites liberais, bem como muita da paciência do país. A introdução do sufrágio universal e as eleições realizadas entre 1918 e 1922 viram a política italiana baixar ao nível de um conflito amargo e violento entre o recém-formado Partido Comunista, os socialistas, a Igreja Católica e seus aliados, e o novo Partido Fascista do até então idiossincrático socialista Benito Mussolini. A organização do futebol era igualmente divisiva e caótica. A estrutura do campeonato nacional, assim chamado, tornou-se um ponto de conflito permanente e irreconciliável entre os clubes grandes e pequenos, o norte e o sul. A federação nacional de futebol (FIGC) quase se dividiu em 1921 entre grupos rivais. No ano seguinte ela se dividiu de fato em duas ligas e embora elas tenham se reagrupado, logo o nível da organização nacional atingiu novamente o poço quando ela passou a cobrar uma sobretaxa dos clubes para cobrir um grande e inexplicável déficit e ainda por cima elaborou novos estatutos sem consultar as regiões do país.

O destino do futebol foi decidido em 1922 quando Mussolini e seu Partido Fascista tomaram o poder depois de sua Marcha sobre Roma. Tendo efetivamente recebido o poder das velhas elites, os fascistas rapidamente passaram a dissolver, prender, banir ou matar a oposição e a tomar o controle de toda e qualquer instituição secular de importância existente no país. De início a atitude do partido diante do esporte não era positiva, pois a maioria dos sues quadros havia sido treinada na ideologia socialista, na qual o esporte era mal visto. Mas, por outro lado, o partido chegou ao poder com a intenção expressa de intervir ativamente na vida cultural e espiritual da nação, armados com o aparato das teorias biológicas, raciais, marciais e darwinistas amadas pelos ultra-nacionalistas. A confluência destas duas correntes do pensamento fascista requeria que o regime desenvolvesse uma posição sobre o esporte e sobre a educação física em geral e sobre o futebol em particular, claramente a recreação e o espetáculo mais populares da nação.

O espetáculo, assim como muitos naquele regime, não era particularmente edificante. A final do campeonato do norte em 1925, entre Bolonha e Genoa, foi emblemática do problema. Depois de dois jogos empatados, o terceiro foi jogado em Bolonha estava dois a um para os visitantes. Eis que um chute de Muzioli, do Bolonha, parece para muitos ter cruzado a linha, mas em seguida o goleiro do Genoa espalma a bola por cima do travessão. O juiz dá um corner. Leandro Arpinati, líder local do Partido Fascista, lidera uma invasão de campo em protesto, apoiada por seus belicosos squadristi. O juiz volta atrás na sua decisão para persuadir o Bolonha a continuar, mas dá a entender aos do Genoa que o jogo seria declarado 2 a 1 para eles e que ele estava continuando apenas para evitar mais desordem. Quando soa o apito o Genoa pensou que havia sido 2 a 1, o Bolonha pensou que havia sido 2 a 2 e o juiz apoia os últimos, dando uma prorrogação. O Genoa abandona o campo em protesto. Bolonha se diz campeão e celebra. A federação força os dois times a jogar um quarto jogo em Turim que termina em empate e num confronto armado entre torcedores na estação de trem. Foram dados tiros vindos dos vagões da torcida do Bolonha. O Bolonha ganhou a quinta e última partida, jogada com os portões fechados, exceto para a elite do partido fascista em Bolonha, devidamente sentada nas arquibancadas.

O regime finalmente decidiu agir. Tendo já tomado o controle de todas as burocracias esportivas do país, colocadas sob o domínio do comitê olímpico italiano (CONI), Lando Feretti, o presidente fascista da organização, estabeleceu uma comissão de três especialistas para elaborar novos estatutos para o futebol italiano. Em um mês o documento estava pronto, sustentando o controle do CONI – e portanto do Partido Fascista – sobre o futebol italiano acima da federação italiana, cujos diretores passavam a ser todos indicados pelo partido. Uma nova liga nacional foi criada com os clubes mais fortes de todo o país – embora ainda concentrados no norte. Inicialmente, a liga ainda era jogada em grupos regionais mas em 1929 isso acaba, decisivamente (embora desigualmente) incorporando o sul ao futebol nacional. Este ponto sempre foi reforçado pela insistência do regime de que a seleção nacional jogasse em Roma (no centro do país) e de que os escritórios da federação fossem transferidos do norte para a capital. Uma copa nacional foi criada para dar aos clubes pequenos uma chance de brilhar no palco nacional. Embora o amadorismo fosse a ideologia oficialmente sancionada do jogo, a categoria pragmática de jogadores não-amadores foi permitida. Como sempre, a lei italiana criou uma área cinzenta na qual as operações do já bem estabelecido mercado de jogadores podiam ser eficientemente realizadas por detrás de uma cortina de fumaça da ideologia amadorística do fascismo. Ao que parece, pelos relatos dos contemporâneos, o futebol italiano adquiriu um grau de coesão organizacional e de objetivo que antes nunca havia alcançado.

Questões de nomenclatura e estilo também eram importantes para o regime. Os nomes ingleses de certos clubes eram mal vistos e enquanto Mussolini esteve no poder, Genoa e Milan voltaram a sua forma italiana (Genova e Milano), enquanto Internazionale foi julgado muito cosmopolita, passando a ter o nome de uma santa milanesa: Ambrósia. Os clubes italianos certamente haviam sido cosmopolitas no seu recrutamento durante a década de 1920, recrutando amplamente técnicos e jogadores talentosos da Áustria, Hungria, Tchecoslováquia e Iugoslávia. Isto não caía bem com a política econômica crescentemente autocrática do regime e com a missão nacionalista atribuída ao futebol. Seria muito difícil produzir um herói italiano com uma liga cheia de estrangeiros. Mas novamente as pretensões ideológicas do fascismo italiano foram enfraquecidas: os estrangeiros foram banidos da liga nacional no final da década de 1920 mas em compensação os clubes passaram a recrutar na América do Sul, onde havia vários craques com ascendência italiana e para os quais era possível obter cidadania. O rimpatriato como era conhecido veio a fornecer uma nova energia e habilidade para os clubes bem sucedidos da época e para a própria seleção italiana.

Como já dissemos, a Primeira Guerra foi boa para o futebol francês. A vasta mobilização de recursos humanos viu o futebol se espalhar por cada canto do país. Ele também mostrou ser o mais popular esporte de massa durante a guerra, o que transparece pela criação de uma série de novas copas, mantidas por diversas organizações, incluindo do ciclismo, da Igreja Católica e até do Exército Inglês. Finalmente, as diferentes federações se uniram e foi criada a federação francesa de futebol (FFF) em 1919, bem como uma única Copa da França e um campeonato nacional. A ginástica e o rugby não se provaram competidores à altura. Regiões e cidades antes sem um time de futebol, como Toulouse e Bordeaux, passaram a ter um. A popularidade do futebol foi confirmada em 1924, quando o torneio de futebol das Olimpíadas deu à França seu estádio nacional – Stade de Colombes – e forneceu a competição mais falada e com maior público.

Todavia, a despeito desses sinais exteriores de modernidade e façanhas, a estrutura da liga francesa permanecia barroca, o pagamento de jogadores era estritamente proibido e as forças da comercialização tinham que enfrentar a hierarquia futebolística, facilitada pelas pobres precondições estruturais para o investimento na França. Afora um punhado de clubes, os públicos continuavam pequenos, os estádios minúsculos e o sucesso muitas vezes sorria para times provincianos como Nîmes, Sète e Cannes. A semana de trabalho de cinco dias e meio, que foi tão crucial para o desenvolvimento do futebol junto à classe trabalhadora na Europa Central e na Escandinávia, chegou excepcionalmente tarde na França – somente no final da década de 1930. O profissionalismo encoberto – ou amadorismo marrom – era de conhecimento público.

A federação francesa investigou oficialmente o problema do profissionalismo pela primeira vez em 1929. A pressão dos times pequenos e das ligas regionais, todavia, temerosos de não conseguir competir por jogadores com os grandes clubes em um mercado livre, forçou a federação a não adotar o profissionalismo. O que rompeu este nó formado pelo tradicionalismo de cavalheiros amadores e pelos clubes pequenos foi a força emergente do futebol e da economia franceses – a dos empresários industriais. Jean-Pierre Peugeot, fundador e proprietário da companhia automobilística, criou o FC Sochaux a partir de dois clubes menores na região de origem de Peugeot e perto dos seus complexos fabris.

Peugeot não estava sozinho no seu apoio ao futebol. Por todo o país, os industriais vinham investindo no futebol: no FC Roubaix um magnata têxtil era o presidente; em Lille, um rico dono de fábrica de cerveja; o Saint-Étienne era apoiado pela família Guichard, dona de uma rede de mercearias e por aí vai. A pressão funcionou. A federação, agora com o apoio da imprensa esportiva, criou uma nova categoria de futebolista registrado que podia jogar em troca de salário fixo estabelecido em contrato. Por volta de 1933, a elite do futebol francês era profissional mas os clubes e o público permaneciam pequenos. Fenômeno único na Europa, exceto talvez pelos clubes das cidades-metalúrgicas da Suécia, os clubes de cidades pequenas e médias bancados por firmas familiares tinham uma vantagem econômica e esportiva sobre as agremiações de classe média das grandes cidades, onde o potencial de público era maior. A final da Copa da França, embora prestigiada pela presença do presidente da República, atraía públicos que eram apenas um quarto do da Copa da Inglaterra.

VII.

A marcha do profissionalismo nas nações futebolísticas mais avançadas parou no norte dos Alpes. Nos Países Baixos, na Dinamarca, Suécia e Alemanha, a despeito da existência das pré-condições para a profissionalização similares às do Mediterrâneo Ocidental, o jogo continuou amador. Imediatamente após a Primeira Guerra, todas estas sociedades experimentaram um massivo crescimento da popularidade do seu futebol doméstico e internacional. Jogadores da classe trabalhadora e multidões afluíam para o jogo, mas a balança mais ampla de forças sociais conspirou para limitar a comercialização que estas mudanças tornavam possível.

Na Dinamarca, as principais barreiras eram o tamanho e a ideologia. O país, apesar do seu nível de desenvolvimento econômico, tinha uma classe operária industrial relativamente pequena e um grupo de camponeses independentes demográfica e socialmente poderosos. Mais importante do que isso, a cultura do amadorismo era muito forte entre a elite futebolística dinamarquesa. A federação dinamarquesa havia sido estabelecida mais de vinte anos antes da francesa ou espanhola, imitando e absorvendo a cultura do futebol britânico, à época amador. A seleção sueca foi duramente condenada pela imprensa dinamarquesa pelo luxo da sua hospedagem e das suas condições de treinamento, que para os dinamarqueses estavam na fronteira com o profissionalismo. Qualquer jogador dinamarquês que ousasse ser pago era, até bem depois da Segunda Guerra Mundial, banido da seleção nacional. O profissionalismo não foi vencido ou rejeitado: ele nem sequer veio à superfície.

Na Suécia e na Alemanha havia o desafio e a oportunidade oferecidos por uma industrialização e uma urbanização bem mais concentradas e rápidas. A isso correspondia uma classe operária maior e mais poderosa, o que trouxe ambas culturas futebolísticas ao limiar da profissionalização no início da década de 1930. Mas em ambos os casos o processo foi travado. No caso da Suécia, isso ocorreu por conta do amplo triunfo político da classe trabalhadora – representada pelo luteranismo rigoroso e abstêmio do Partido Social Democrata e seus aliados. No caso alemão, o problema foi a derrota da classe trabalhadora e de seus aliados pelos nazistas.

O futebol prosperou na Suécia na década de 1920. Em 1924 a federação sueca pode estabelecer uma liga nacional pela primeira vez, embora nos vinte anos seguintes o título tenha ficado somente em mãos de times da costa oeste, mais industrializada. Antes da Primeira Guerra, a imprensa sueca era bastante conservadora e distante na cobertura do futebol, mas com a emergência de um grupo considerável de leitores de classe trabalhadora, desenvolvem-se novas formas de jornalismo esportivo. Os jornais desempenharam um papel chave na promoção do futebol, usando a mesma mistura da Inglaterra entre fofoca e rivalidade local para tornar o futebol parte da cultura popular das cidades grandes e pequenas. Em algumas cidades-metalúrgicas foram criados times, financiados por industriais, que logo representaram a classe operária local. O que sem dúvida era uma estratégia patronal em uma época de grande mobilização da classe trabalhadora. Nas grandes cidades, o futebol se dividia em termos classistas: tanto em Gotemburgo quanto em Malmö, a rivalidade era entre clubes que representavam as classes alta e baixa.

Foram duas as consequências deste enorme crescimento do futebol sueco. Em primeiro lugar, o esquema do amadorismo racional da década de 1910 não funcionou mais. Antes havia pequenos pagamentos em dinheiro e compensações pela perda de tempo de trabalho para jogadores na seleção nacional. Agora, à medida em que a receita da bilheteria aumentava, o futebol sueco se viu às voltas com esquemas de trabalho arranjado para jogadores, escapadas para bebedeira, banquetes, jantares e outras formas de remuneração clandestina. Em segundo lugar, as multidões cada vez maiores se tornaram frequentemente mais volúveis, embriagadas e desordeiras. Em 1925 ocorre a primeira invasão massiva do campo em um jogo entre os Airdrieonians da Escócia e um time de Estocolmo. Os jornais registram que um jogador sueco havia sido atacado pelos escoceses, o que não foi visto pelo árbitro. Em seguida os escoceses marcam um gol e a multidão, já nervosa, invade o campo. No ano seguinte, no mesmo estádio, ocorre algo semelhante em um jogo entre Suécia e Itália e o campo é novamente invadido. Ambos os incidentes apontam para as raízes do problema: uma mudança na demografia do público, cada vez mais jovem, pobre e fora do controle imediato dos membros mais velhos da família e dos colegas de trabalho; a mistura explosiva de intenso patriotismo local e nacional; o problema generalizado da má arbitragem que era reconhecido inclusive pela federação e que enraivecia o público; o catalisador essencial do uso pesado do álcool.

Em resposta a estes problemas, alguns clubes burgueses haviam tentado elevar o preço dos ingressos para manter a plebe do lado de fora, mas isto levou a uma ampla greve dos torcedores que forçou os clubes a recuar. A federação não fez nada além de colocar placas implorando ao público que se comportasse.

Em 1933, o auge dos incidentes futebolísticos na Suécia do entreguerras, a federação decide finalmente fechar os campos onde tinham ocorrido os piores problemas. Mas o que realmente transformou o futebol sueco foi a grande mudança política e social começada com a eleição, pela primeira vez, de um governo social-democrata em 1932. A velha burguesia liberal continuava à frente da federação, mas era cada vez mais difícil para ela gerir o futebol para além do seu escritório em Estocolmo. O declínio da autoridade política e social desta classe era tornado palpável pelo futebol. Eles estavam associados aos tradicionais esteios da ordem social – a polícia e a igreja – e as novas forças da política popular. O movimento da temperança, que numa Suécia assolada pelo alcoolismo tinha alcançado uma proeminência política e social bastante excepcional, era um ferrenho  inimigo da atmosfera de bebedeira dos jogos de futebol. O movimento sindicalista e o Partido Social-Democrata também tinham suas dúvidas e imitaram seus correspondentes alemães e da Europa Central que haviam atacado o esporte de elite e buscado criar esportes alternativos para trabalhadores e uma cultura futebolística alternativa.

O gênio dos sociais democratas suecos – o partido de centro-esquerda eleitoralmente mais bem sucedido do século XX – foi a política de conciliação. Enquanto outros partidos, como os social-democratas alemães e a maioria dos comunistas europeus, insistiam no controle total e eram punidos por isso, os social-democratas atingiram o poder na Suécia formando uma aliança reformista duradoura com os pequenos camponeses. Tendo alcançado o poder, foram capazes de permanecer efetuando uma série de barganhas com os trabalhadores organizados e o capital industrial e financeiro, permitindo-lhes conduzir a economia para longe da recessão global e iniciar um período de quarenta anos de crescimento econômico e de investimentos no bem estar social. Em 1934, legalizam a loteria, antes um grande operação ilegal. Com estes recursos em mãos, o governo exerce considerável influência no futebol. A federação sueca finalmente decide atuar contra o profissionalismo às escondidas dos clubes principais no mesmo ano. Aliados às polícias locais e ao movimento da temperança, o governo e a federação controlaram a desordem do público à moda sueca, com uma mistura: a vergonha pública a que eram submetidos os transgressores; com reformas racionais no policiamento e no transporte; com o rígido controle do consumo de álcool; com um treinamento melhorado dos árbitros e com a escalação bem pensada de árbitros para os jogos mais problemáticos.

Na Alemanha, embora o futebol tenha continuado popular entre as tropas do exército durante a guerra, o futebol civil nos últimos anos da guerra tornava-se caótico. Não havia condições de uma competição a nível nacional. Os times estavam tão esvaziados com o recrutamento que em Stuttgart, dois times rivais, Offenbach e Kickers, fundiram-se temporariamente na esperança de conseguir formar uma equipe. Depois, à medida em que o bloqueio surtia efeito, as áreas gramadas foram requisitadas para plantar batata e repolho. O futebol só reaparece com a República de Weimar, em 1919, que representou a primeira experiência germânica com uma democracia parlamentar de fato. Como na Áustria, o eleitorado de classe trabalhadora, consciente do seu peso, conseguiu a introdução das oito horas de trabalho diárias e do fim de semana livre. Foi abandonada a vasta legislação imperial que restringia a vida associativa. Em velocidade alucinante clubes operários foram formados em todo o país, geralmente com o apoio ativo do governo local, finalmente nas mãos da esquerda. O registro de jogadores na federação cresceu cinco vezes e os públicos transbordavam nos campos e pequenos estádios pelo país. Cerca de 6 mil haviam assistido ao último campeonato nacional antes da guerra. Na primeira final de campeonato nacional do pós-guerra, 36 mil viram o FC Nürnberg bater o Sp Vgg Fürth por dois a zero.

O futebol industrial, o futebol de massa, tinha chegado na Alemanha. O Hertha, em particular, oferecia o tipo de saga que capturava a atenção popular. Eles eram uma equipe técnica e bem financiada que chega quatro vezes à final, perdendo cada uma delas, magneticamente atraindo a má sorte ou sofrendo um ataque de nervos e de falta de confiança. Melhor ainda, para os contadores de histórias, é que em 1930 eles vencem a quinta final que disputam, 5 a 4 contra o Holstein Kiel e diante de 45 mil torcedores hostis do Kiel, que passam a partida lhes arremessando frutas.

Na organização e supervisão desta nova e exuberante cultura futebolística estava a velha federação alemã. Suas figuras mais importantes e sua cultura continuavam profundamente conservadoras e nutriam desconfiança dos políticos da República de Weimar. Isto fica claro na questão da bandeira. A federação continuou a usar em seu emblema as cores do império: vermelho, branco e preto, sem adotar as novas cores da república: vermelho, ouro e preto. Para a federação, o futebol era uma contribuição saudável e íntegra ao treinamento físico e ao desenvolvimento moral da juventude da nação – embora o quanto este ideal chegava a todas as escalas sociais fosse outro problema. A federação e as lideranças de classe média do futebol alemão estavam claramente infelizes com a onda de novos sócios de classe trabalhadora e com os vários clubes de trabalhadores que surgiam por toda a parte. As divisões sociais e ideológicas entre os torcedores de classe média e de classe trabalhadora eram tão grandes que em Dortmund a abertura do novo estádio municipal foi celebrada duas vezes: primeiro pelos clubes do movimento esportivo burguês e no dia seguinte pelos clubes esportivos dos trabalhadores.

A estrela ascendente do futebol de classe trabalhadora alemão era o Schalke 04, um clube da pequena cidade mineira de Gelsenkirchen no norte do Ruhr. Poucos lugares eram mais representativos da velocidade e escala da industrialização alemã e das novas comunidades de trabalhadores que pareciam surgir da noite para o dia, pois Gelsenkirchen, assim como boa parte da região, antes não tinha proletariado. Os trabalhadores foram recrutados do leste, até da Polônia de fala alemã. Foi por esta classe de mineiros e operários de primeira e segunda gerações que foi fundado o Westfalia Schalke em 1904, à época pouco mais do que um time de rua dos adolescentes da Hauergasse Strasse. As condições eram primitivas: os garotos compravam as bolas danificadas dos clubes de classe média e as consertavam, improvisando também seus calçados. De início o time jogava em um campo pedregoso à beira de um barranco perto das ruínas de uma casa de campo abandonada. Em 1914 o clube foi capaz de alugar um lote de terra em Gelsenkirchen, que eles tiveram que limpar, secar e preparar. Apesar disso, com pouco mais para proporcionar distração e entretenimento diante dos ritmos pesados do trabalho, o Schalke se tornou popular e bem sucedido.

No imediato pós-guerra, o crescimento incessante do Schalke e de times como ele ascendendo na pirâmide a partir das divisões locais alarmou a burguesia das federações regionais de futebol. Ostensivamente procurando abafar uma preocupante competitividade que estava se transformando em multidões desordeiras e em brigas dentro de campo, a associação introduziu a sua nova política. Na verdade, era mais uma forma de manter a velha ordem, suspendendo ascenso e descenso por dois anos e mantendo Schalke e outros clubes desta natureza fora da divisão principal. Mas a classe operária alemã não podia ser contida para sempre e em 1926 o Schalke subiu para a primeira divisão no oeste da Alemanha. Nesta época o clube havia ajudado a criação uma cultura futebolística de classe operária intensa e fervorosa ao longo do Ruhr. O Schalke conseguiu construir seu primeiro estádio próprio em 1928, com capacidade para 40 mil; o clube pagava um aluguel insignificante a uma mina local pelo uso da terra.

Quando a caótica inflação do início da década de 1920 foi domada e as piores implicações do Tratado de Versalhes foram atenuadas, a economia alemã experimentou um breve período de crescimento. Combinado com o crescimento do público futebolístico e com a presença crescente de jogadores de classe trabalhadora sem nenhum outro meio de subsistência ou auxílio, a dinâmica comercial do profissionalismo foi reativada. Mas isso tinha que ser feito no maior segredo, porque a federação alemã continuava a ser ferrenha defensora de um modelo bastante ortodoxo de amadorismo.

A posição da federação era tão rígida que em 1924, em resposta à legalização do profissionalismo na Áustria e na Hungria, eles declararam que a seleção nacional não iria jogar contra adversários que escalassem profissionais. Este rigor era excessivo dado que Áustria e Hungria estavam entre as poucas seleções que aceitariam jogar contra os alemães. Com mais e mais histórias sobre o profissionalismo clandestino vindo à tona, a federação iniciou uma investigação particular sobre o Schalke em 1930. A conclusão foi inevitável: ‘Jogadores do primeiro time têm sido reembolsados por despesas para além do aceitável’. Em seguida a federação puniu de forma draconiana. Quatorze jogadores foram banidos; o clube recebeu uma pesada multa e foi proibido de competir por um ano. O tesoureiro do clube, Wilhelm Nier, se sentiu tão humilhado pelo caso que cometeu suicídio e tudo isso por nada. O Schalke voltou ao campeonato em 1931 e 70 mil pagaram para assistir a um amistoso com o Fortuna Düsseldorf.

A lógica do amadorismo estava tão fora dos eixos com realidade do jogo que multas e banimentos não seriam suficientes para evitar a comercialização do futebol. O abismo de qualidade entre profissionais e amadores foi cruelmente exposto em 1931, quando o Wunderteam austríaco aniquilou a Alemanha por 5 a 0 e 6 a 0. Mas agora havia um movimento. Nas regiões onde os públicos eram maiores e o futebol mais popular – o Ruhr, o sul, Berlim – a pressão pela legalização dos pagamentos estava crescendo. A federação alemã topou organizar uma reunião em 25 de maio de 1933. Mas alguns meses antes, em 30 de janeiro de 1933, o presidente Hindenburg apontou Hitler como chefe de governo. Moral da história: a reunião da federação para tratar do profissionalismo nunca aconteceu. Pois agora um poder bem maior do que a federação poderia imaginar iria controlar o futebol alemão.