/The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte A

The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte A

Marcos Alvito

The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte A

(da série Leituras para pensar o futebol)

“No dia 22 de junho de 1941, quando os alemães invadiram a União Soviética, o ato decisivo de todo o conflito, noventa mil espectadores viram a final do campeonato alemão em Berlim. Em que eles estavam pensando?”

Simon Kuper

I.

Em que eles estavam pensando? Na mesma coisa em que se pensava na Inglaterra: em futebol. Na final de Berlim, o Rapid de Viena, agora incorporado ao campeonato alemão, virou um jogo em que perdia de 3 a 0 para 4 a 3 em seis caóticos minutos. O público italiano lotou os estádios em 1940 e 1941, ano em que o Bolonha levou o título. Ao mesmo tempo, o exército italiano tentava invadir a Albânia e a Grécia e se desintegrava na névoa da sua própria incompetência; seu atraso logístico e tecnológico era cruelmente exposto por seus pequenos vizinhos. Esta simultaneidade de futebol e guerra contrastava agudamente com a experiência do jogo vinte e cinco anos antes. Afora as forças armadas e os campos de prisioneiros, a Primeira Guerra Mundial extinguiu o futebol em todas as nações combatentes. No caso da Segunda Guerra, o futebol continuou, formalmente e informalmente, nacionalmente e localmente. Mesmo tendo iniciado a guerra, o Ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Von Ribbentrop, escreveu no seu diário que dava o maior valor à ida de times alemães ao exterior e à vinda de times estrangeiros. No quarto de século depois da primeira guerra industrializada, o significado social do futebol e a natureza da guerra haviam mudado.

Nas décadas de 1920 e 1930, nas suas zonas principais, o futebol europeu se industrializou, seja na forma da comercialização e profissionalização, ou sendo capturado por um estado autoritário. Tanto nas democracias sobreviventes quanto nas novas ditaduras que emergiram do tumulto dos anos 20 e da recessão econômica global do início da década de 30, o futebol havia se tornado de certa maneira o principal esporte com público, uma instituição cultural nacional central e um potente índice da competência nacional no mundo. Na sombra da guerra verdadeira, o uso do futebol como um substituto do conflito era redundante, mas seu papel no front doméstico foi amplificado. Embora a Primeira Guerra Mundial tenha exigido um nível inédito de mobilização doméstica, dificuldades e exposição à violência, ela foi um mero prelúdio para a experiência da Segunda Guerra Mundial. Apenas na União Soviética 20 milhões foram mortos. Os estados europeus foram forçados a mobilizar, brutalizar e persuadir suas sociedades como jamais haviam feito. O futebol foi um elemento das estratégias que os governos utilizaram para conseguir isso.

O futebol funcionava como um sinal de normalidade. O apoio de Ribbentrop à manutenção de um circuito internacional de futebol visava evocar os ritmos esportivos da paz enquanto a Alemanha fazia a guerra. Como disse Fritz Walter, um jogador da seleção alemã, depois de ser cercado e saudado por tropas alemãs em um navio que ia para a Itália, ‘Para eles eu sou a corporificação de conceitos que parecem perdidos para sempre: paz, lar, esporte.’ Quando veio finalmente a paz e aqueles que ainda tinham uma casa por assim dizer para retornar, os homens europeus acorreram ao futebol. Os anos que se seguiram imediatamente ao fim da guerra assistiram a recordes de presença de público, tanto em jogos domésticos quanto internacionais. A final da Copa da Noruega jogada no verão de 1945 teve 158 mil pedidos de ingresso para apenas 35 mil disponíveis. Na Inglaterra, na Alemanha e na França, os públicos nos jogos domésticos e internacionais mais importantes eram regularmente acima de 100 mil pessoas. Afinal a década que se seguiu à guerra foi uma época de condições difíceis e pouco dinheiro, de austeridade, racionamento e fome. Somente na metade da década de 1950 é que o povo europeu e suas economias se recuperaram o suficiente para por em campo times que pudesse competir com os sul americanos que tinham liderado o futebol mundial desde o início dos anos 1940. Este processo foi consagrado pela Copa do Mundo de 1954 na Suíça, a primeira copa em solo europeu depois de 16 anos.

Mas não era o mesmo continente que havia ido à Copa de 1938 na França. A Europa agora estava dividida entre capitalismo e comunismo, entre Leste e Oeste, OTAN e Pacto de Varsóvia, zonas americanas e soviéticas de influência. O processo foi completado em 1955 com a divisão da Alemanha e de Berlim em dois campos. A trajetória do futebol europeu fornece um acurado marcador dos processos gêmeos da reconstrução econômica e da divisão política.

No Ocidente, o futebol permanecia em mãos privadas e voluntárias. No Leste Europeu era propriedade do Estado e de organizações paraestatais. Os alemães tinham ambas as versões. Em toda a Europa, à medida que as placas tectônicas da guerra iam se estabelecendo permitindo a formação de novos estados, novas fronteiras e novas hierarquias de poder, o futebol continuava a oferecer uma narrativa  de unidade e desunião, triunfo e desastre, colapso e recuperação. Para os ingleses, o jogo serviu mais precisamente como um índice de declínio relativo. Na Hungria, seu principal competidor pela hegemonia futebolística, o jogo evocava tanto o passado escondido da burguesia antes da guerra quanto as esperanças exageradas da nova tecnocracia comunista. Na Alemanha Ocidental, de forma mais potente, o futebol oferecia uma oportunidade de imaginar novamente a nação como vencedora de jogos ao invés de guerras. O futebol, durante muito tempo não somente uma metáfora ou um substituto da guerra, mas um verdadeiro instrumento da violenta disputa entre as nações europeias, foi por um raro e breve momento a encarnação simbólica e esportiva do estabelecimento da paz.

II.

O prelúdio para a conflagração foi a Espanha. Depois da Queda da Bolsa pôr fim ao cambaleante autoritarismo militar do regime de Primo de Rivera em 1930, houve eleições restabelecendo decisivamente a república. Mas as disputas continuaram entre nacionalistas e regionalistas, esquerda e direita, seculares e religiosos. O significado político do futebol, já estabelecido na Catalunha e no País Basco, alcançou proporções nacionais na última Copa do Rei antes da guerra civil que se aproximava. A partida foi disputada em Valência, um baluarte republicano entre o Madrid FC e o Barcelona. A multidão de valencianos vaiou e assoviou sem parar o time da capital que terminou o primeiro tempo vencendo de dois a um. Eles ficaram furiosos quando Ricardo Zamora, o goleiro do Madrid, salvou um chute do Barça no último minuto.

As eleições gerais de 1936 viram as forças unidas da Frente Popular (socialistas, comunistas, republicanos e regionalistas) derrotar a Frente Nacional (composta de Democratas cristãos, monarquistas reacionários e de um partido fascista local, os falangistas). A Frente Popular adotava um programa de mudança política, libertando prisioneiros de esquerda, retirando do comando oficiais suspeitos e permitindo autonomia à Catalunha. Enquanto isso o Exército começou a planejar um golpe, em meio à fuga de capitais, aceleração da inflação, onda de greves e sub-reptícia entrega de armas na mão da esquerda por parte do novo governo. Em julho de 1936 o Exército atacou e a Guerra Civil Espanhola durou quase três anos. O campeonato nacional de futebol, assim como todas as outras instituições nacionais, foi profundamente dividido pela violência.

Como Madri estava sob o controle dos republicanos, isto é, da Frente Popular, o Madri FC foi bastante afetado. Seu presidente foi deposto e substituído por um coronel comunista do exército republicano. A piscina do clube e outras dependências, foram abertas ao público, a taxa para os associados caiu e algumas práticas de esporte inspiradas nos soviéticos – como a ginástica em massa – começaram a predominar sobre as cada vez mais esporádicas e desorganizadas tentativas de jogar futebol no estádio Chamartín. Por outro lado, Josep Sunyol, presidente do Barcelona, foi interceptado por uma milícia falangista e sumariamente executado durante uma viagem através de uma zona em disputa.

Franco e a Direita foram fortemente apoiados pelos regimes fascistas europeus: os italianos enviaram 50 mil homens dentre fortes unidades militares e uma milícia fascista composta de voluntários; os alemães enviaram uma brigada aérea com grande força de destruição e uma tecnologia que os republicanos não conseguiram igualar. Franceses e ingleses nada fizeram além de condenar o regime republicano. A União Soviética deu apoio à Esquerda mas de forma modesta.

Em 1937, começava a ficar claro quem seria o vencedor do conflito. Sendo assim a FIFA aceitou a franquista RFEF ao invés da federação de futebol dos republicanos como a delegada oficial mesmo durante a guerra. Em 1938, confiantes em vencer a guerra, os falangistas aliados de Franco fundaram o primeiro e até hoje o maior jornal esportivo diário: o Marca, que apareceu pela primeira vez antes do Natal. Na sua capa, uma loura fazia a saudação fascista e a manchete dizia: ‘Para todos os esportistas espanhóis, homens e mulheres’. Um dos seus primeiros artigos era sobre Santiago Bernabéu, o ex-jogador e diretor do Madrid que havia fugido da Madri republicana em 1936 para a França e retornado à Espanha em 1937 para se juntar ao exército de Franco. Bernabéu, ao que parece, já estava se preparando para um futuro diferente. Disse a um jornal: ‘O espetáculo de um punhado de rapazes suados deve desaparecer e dar lugar a uma juventude que seja saudável em corpo e espírito sob a direção de treinadores especializados.’

Tudo terminou em março de 1939 quando o exército de Franco entrou em Madri. À época, o estádio do Real Madri, Chamartín, era uma visão triste. Assim como boa parte do cenário urbano, era uma ruína, suas arquibancadas de madeira saqueadas para serem usadas como lenha em uma cidade sitiada. O presidente do clube, o Coronel Ortega, foi um dos cem mil republicanos detidos e executados no banho de sangue que se seguiu; somam-se a isso 35 mil mortos em campos prisionais. A Espanha tornara-se um país sob ocupação militar e o futebol estava sujeito à lei marcial de Franco. A Copa do Rei foi rebatizada de Copa do Generalíssimo. Em 1941 o regime controlou todas as formas de esporte no país criando a DND (Delegación Nacional de Deportes), dirigida por um herói falangista. Os públicos e jogadores foram encorajados a começar todos os jogos com os gritos de guerra usados no conflito: ‘Arriba España’ e ‘Viva Franco!’. Cantar o hino falangista, ‘Cara del Sol’, embora não fosse compulsório, era bastante estimulado. Até a camisa da seleção, vermelha, foi substituída por uma cor politicamente mais apropriada: azul. O jornal do regime, o Arriba, argumentava que o futebol tinha um lugar especial na nova Espanha. O jornal estabelecia uma relação entre a redescoberta do estilo de jogar autenticamente espanhol ao triunfo da Direita na guerra civil.

“A furia española está presente em todos os aspectos da vida espanhola, sobretudo depois da ‘guerra de libertação’. No esporte, a furia se manifesta da melhor forma no futebol, um jogo no qual a virilidade da raça espanhola pode encontrar uma perfeita expressão, geralmente se impondo em jogos internacionais sobre times estrangeiros mais técnicos mas menos agressivos.”

Neste tipo de atmosfera os parcos resíduos linguísticos dos britânicos estavam fadados a desaparecer. Athletic Bilbao foi renomeado Atlético de Bilbao, FC Barcelona foi obrigado a se chamar Castilian of Barcelona Club de Fútbol. Mudança mais substancial foi a substituição de quase todos os diretores e presidentes dos clubes, trocados por homens de confiança do regime sobretudo em clubes de sentimento regionalista muito forte como o Atlético de Bilbao, agora dirigido por um falangista basco. O Atlético de Madri, que terminou a guerra sem praticamente jogadores, foi fundido durante alguns anos com o time da força aérea sob o nome de Atlético Aviación, tendo voltado a seu nome alguns anos depois. Com o apoio do regime, venceu dois títulos em 1941 e 1942.

O tratamento dispensado ao Barcelona foi talvez o mais duro e mais humilhante. No final de 1939, por ordem do General Moscardó, Les Corts, o estádio do clube, foi submetido a uma forma de exorcismo fascista em uma tentativa de suprimir e expelir os espíritos da autonomia e da identidade catalã que habitavam o local. Em 1942, Franco em pessoa fez questão de reforçar a submissão do clube e da nação que ele representava. Fez uma parada triunfal no estádio do Barcelona iniciada pela soltura de mil pombos e prosseguiu com o desfile de 24 mil falangistas. Apesar de todas as restrições e humilhações, o Barcelona reagiu e ganhou a Copa do Generalíssimo em 1942. O regime estava feliz em encorajar o futebol no coração da terra inimiga como parte de uma política calculada de despolitização e evasão.

Todavia, havia limites. O Barça podia ganhar a copa, mas não podia expressar seu triunfo politicamente. Em 1943, uma das semifinais da Copa do Generalíssimo foi entre Barcelona e Real Madri. No primeiro jogo, disputado no estádio do Barcelona, o Real perdeu de três a zero diante de um público em delírio, buzinando, vaiando e assoviando. Um jornalista de um jornal diário católico conservador escreveu que o público havia desonrado e desrespeitado a nação. Em Madri, foram distribuídos apitos ao público do jogo de volta. O massagista do Barcelona, lembrando do dia que antecedeu ao jogo, diz que ninguém da delegação saiu do hotel porque tinham certeza de que seriam linchados. Durante o jogo, o goleiro ficou o mais longe possível do gol por medo de ser atingido por objetos lançados contra ele. No vestiário, os jogadores do Barcelona foram visitados tão simplesmente pelo sinistro Diretor de Segurança do Estado, José Escrivá de Romani. Diz-se que Escrivá expressou muito claramente o que ele esperava do jogo. O Barcelona perdeu de 11 a 1.

A brutal injustiça do jogo ficou tão clara em toda a Espanha, a despeito dos afagos de uma imprensa castrada e da papagaiada dos jornais esportivos de Madri. Uma política tão voltada para forjar a unidade nacional não podia tolerar níveis tão abertos e incontroláveis de desordem pública e de conflito regional tornados públicos. Os presidentes de ambos os clubes foram retirados do cargo, ambos os clubes foram multados e uma série de falsos jogos de boa-vontade durante o inverno. O Barcelona ganhou mais um presidente nomeado pelo regime. Já o Real Madri ganhou Santiago Bernabéu. Com isso, a ascensão do Real Madri ao cume do futebol mundial começou.

A primeira tarefa de Bernabéu foi construir um estádio para o time, já que o velho Chamartín não estava em condições de ser utilizado. Em 1944 as condições econômicas eram desesperadoras, com boa parte do país desnutrido, não havendo nenhuma chance de investimento por parte do governo. O novo estádio foi financiado por ações compradas pelos 45 mil sócios do Real. O dinheiro foi investido com cuidado. Bernabéu mobilizou a classe média da capital e valeu-se de competência técnica e retidão financeira. Diz-se que o concreto das arquibancadas foi doado pelo governo. Assim que o novo estádio foi construído, no que antes era uma área periférica no norte da capital, esta zona começou a se desenvolver. Local, clube e classe estavam em ascensão. Mas antes que as histórias futebolísticas de Madri e da Espanha pudessem se reconectar com o resto da Europa, o continente teria que enfrentar sua própria guerra civil.

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