/The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte D

The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte D

The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte D

Marcos Alvito

 

 

Seleção da Holanda em 1938

.    (O futebol europeu durante a guerra)

Os alemães e os soviéticos haviam devorado a Polônia em outubro de 1939, depois havendo uma pequena pausa. Os franceses, belgas e britânicos, prepararam-se para a invasão iminente, abandonaram seus campeonatos de futebol e improvisaram amistosos e mini-torneios. Os holandeses e os dinamarqueses, bizarramente alheios ao destino que lhes esperava, concluíram suas temporadas. Então, em abril de 1940 os alemães atacaram. A Dinamarca caiu quase que instantaneamente. A Noruega, com algum apoio britânico, sobreviveu por mais dois meses. Então vieram as invasões da Bélgica, Holanda e França e ao final de junho todos estes países haviam se rendido, o que restava da Força Expedicionária Britânica tinha sido evacuado de Dunquerque e a batalha entre a RAF e a Lutwaffe pela supremacia aérea sobre o Canal da Mancha e o Mar do Norte estava em pleno andamento. Simultaneamente, os soviéticos aproveitavam para tomar a Finlândia, a Latvia, a Lituânia e a Estônia, extinguindo o futebol profissional e independente nos estados bálticos por meio século.

Não tendo conseguido a vitória nos ares, os alemães voltaram suas atenções para o leste e o sul onde seus aliados italianos estavam sendo destroçados pelos britânicos no Norte da África e pelos gregos na fronteira greco-albanesa. Para assegurar seu flanco sul, antes da invasão da União Soviética, os alemães invadiram a Iugoslávia e a Grécia enquanto os Afrika Korps faziam os britânicos e seus aliados recuarem bem para o interior do Egito. Em junho de 1941 começou o ato decisivo da ofensiva germânica, a invasão da União Soviética. Em dezembro os alemães haviam ocupado a Ucrânia, cercado Leningrado e estavam às portas de Moscou. O destino do futebol na nova ordem europeia em muitas das nações passava a depender da dureza ou leniência da sua ocupação; para os combatentes que restaram permanecia sendo uma ferramenta de política pública.

As nações neutras da Europa – Suécia, Suíça, Espanha, Portugal, Irlanda e Turquia – todas continuaram a jogar futebol durante toda a guerra. A única nação ocupada ou combatente a igualar isso foi a Dinamarca cuja ocupação pelos alemães foi talvez a menos terrível. Os dinamarqueses não somente conseguiram manter sua liga funcionando e evitaram a fome mas também mantiveram o controle de boa parte do seu governo e de suas forças de segurança, além de conseguirem que seus judeus atravessassem o Báltico na direção da Suécia. No outro extremo, a Grécia e a Iugoslávia, que ofereceram uma substancial resistência aos invasores alemães, não tiveram nenhum campeonato de futebol depois da derrota e viram seus principais estádios virarem campos de treinamento ou serem reduzidos a cinzas. Entre estes dois extremos estão as experiências da Holanda, França e Noruega.

futebol holandês, da mesma forma que o dinamarquês, pareceu suportar a guerra bastante bem; somente a temporada de 1945 foi interrompida por conta da retirada alemã e da subsequente libertação por parte dos Aliados. Na verdade o futebol floresceu na Holanda durante a guerra. Aumentou o número de sócios dos clubes, a participação no futebol cresceu, o número de ingressos vendido para todos os tipos de eventos esportivos teve uma explosão. O meio milhão ou quase isso de holandeses trabalhando em campos e fábricas alemãs jogavam suas próprias competições e torcedores de futebol da cidade, com fome, trocavam seus ingressos para os grandes jogos com os camponeses por queijo e legumes. Os alemães e seus aliados eram a favor do esporte, que viam como meio de evitar coisas piores.

Nestas condições de retidão forçada, houve não só um boom do futebol mas também do uso das bibliotecas, da leitura de livros e do comparecimento ao teatro, que atingiram níveis recordes. A intervenção alemã na cultura e no esporte foi limitada. As diversas associações de futebol, católicas, protestantes e sindicais, foram obrigadas a se fundir em uma só organização nacional controlada. Resíduos de Inglês na terminologia do futebol foram alterados, assim como toda e qualquer referência à casa real holandesa, agora exilada na Inglaterra. A partir de 1941 os alemães começaram a pressionar as autoridades do futebol holandês a excluir os judeus como sócios, jogadores e até árbitros de jogos de futebol. Os cinco clubes abertamente judeus de Amsterdam foram fechados. Os juízes judeus foram banidos em 1941, precipitando uma crise no futebol holandês já que havia muitos judeus nesse papel antes da guerra. Depois começaram as deportações e execuções. Entre os deportados estava Han Hollander, a voz do futebol no rádio holandês e o maior responsável pela popularização do jogo na década de 30 com suas narrativas semi-fictícias mas sempre emocionantes acerca da seleção holandesa. Neste ponto, assim como na sociedade como um todo, os holandeses foram silenciosamente mas sistematicamente complacentes com a Solução Final em seu próprio solo. Não houve, a nível das autoridades, no futebol, na polícia e nas próprias organizações judaicas, uma tentativa sistemática de impedir, atrasar ou mitigar as demandas alemãs. Os poucos judeus holandeses que sobreviveram o fizeram por conta da coragem e da humanidade de alguns indivíduos chave e de poucas instituições; uma delas foi o Ajax de Amsterdam onde os laços internos de solidariedade construídos antes da guerra mostraram-se fortes o suficiente para sócios não-judeus esconderem e ajudarem alguns torcedores, diretores e jogadores judeus do clube.

Depois da rendição, o território francês e o futebol foram divididos em duas zonas. O norte e a costa Atlântica até Paris foram diretamente ocupados pelos alemães. A região próxima ao Mediterrâneo e a França alpina foram controlados pelos colaboracionistas do regime de Vichy liderado pelo Marechal Pétain. Vichy levou o futebol a sério, declarando guerra ao profissionalismo, argumentando que o comercialismo e a competição haviam envenenado o esporte e a sociedade na decadente Terceira República. A Federação Francesa de Futebol foi posta de lado; Jules Rimet renunciou silenciosamente e desapareceu da administração do futebol durante toda a guerra. O profissionalismo era permitido, mas desde 1942, cada time tinha que por em campo pelo menos quatro sólidos amadores – um grau de comercialismo que ainda era considerado inaceitável pelo governo. Na temporada seguinte, passou a não existir mais o jogador de futebol profissional e todos os jogadores se tornaram funcionários públicos e os clubes instituições públicas. Na França, assim como na Holanda, nos longos dias cinzentos do início da década de 1940, o futebol era um entretenimento raro. Em 1942 a final da Copa da França bateu um recorde com 45 mil pessoas no Stade Colombes para ver o Red Star Olympique Audonien bater o FC Séte.

Se o futebol na Holanda e na França caminhou de forma similar e até mesmo ultrapassou a linha entre normalidade e colaboração, na Noruega ele tomou claramente o caminho da oposição e da resistência. Ao contrário da Dinamarca, que capitulou e depois reteve um grau significativo de autoridade política independente, a Noruega resistiu aos alemães e foi penalizada com a imposição de uma ditadura local tendo como testa de ferro o Partido Nazista Norueguês e seu líder Vidkun Quisling, apoiado por duas divisões alemãs. Em uma tentativa de imitar as estratégias de controle total de seus aliados alemães, os nazistas noruegueses apontaram um Sportsführer para dirigir cada um dos clubes do país. A resposta foi inequívoca. O país fez uma greve esportiva nacional. Os torcedores se afastaram, os jogadores não jogaram, os técnicos não treinaram e os administradores não organizaram. Em Oslo, o estádio Ullevaal, que tinha capacidade para 40 mil, teve jogos com menos de cem pessoas. Em Bergen, uma semifinal da Copa da Noruega teve um público de 27 pessoas. A esta altura tanto os times quanto o público eram somente meia-dúzia de fanáticos pelo regime e os bajuladores de plantão. Em contraste, os eventos esportivos ilegais floresceram no campo e estas ocasiões se tornaram cruciais para as redes da Resistência Norueguesa. O próprio Himmler estava tão preocupado com a situação da segurança na Noruega que ele fez uma visita em 1943, em um evento acompanhado por batidas policiais e prisões de muitos diretores dos clubes independentes e associações esportivas remanescentes.

Enquanto o futebol norueguês resistiu negando-se a jogar, o futebol britânico resistiu ao continuar incondicionalmente. De início as autoridades do futebol britânico, tão criticadas por terem mantido o calendário após o início da Primeira Guerra Mundial, suspenderam os campeonatos da Football League (isto é, das quatro primeiras divisões) assim que a guerra foi declarada, em 3 de setembro de 1939. Tanto o governo quanto a opinião pública foram contrários a esta decisão. E as autoridades do futebol voltaram atrás. Os jogos da Football League foram substituídos por competições regionais. O governo impôs um teto de público de 8 mil pessoas e diante da queda da arrecadação os clubes dispersaram seus elencos, romperam contratos com os jogadores, abandonaram bônus e reduziram os salários. O dinheiro arrecadado foi para ações de caridade. Os jogadores foram liberados para jogar onde quisessem. Este caos é relembrado com carinho, como a memória histórica da linha de combate na Grã-Bretanha, por sua alegre despreocupação em face da privação e por sua capacidade de improvisação. Os times muitas vezes apareciam para um jogo sem todos os jogadores ou sem uniformes para todos e pediam a voluntários para participar, como o Major Bryson, que marcou o gol da vitória do Blackburn Rovers sobre o Burnley em 1941.

Durante a Segunda Guerra Mundial a Inglaterra sofreu 270 mil baixas militares e 65 mil civis. Seu território, embora bombardeado pesadamente durante 1940 e 1941 e nunca totalmente seguro até 1945, nunca foi invadido ou ocupado. A União Soviética lutou um outro tipo de guerra. As baixas militares foram acima de 15 milhões e as civis superaram 7 milhões. Os centros agrícolas e industriais do país foram ocupados e devastados pelos alemães. O que sobrou do parque industrial foi realocado atrás dos Urais. Kiev, Estalingrado e Leningrado foram abaladas. Os que sobreviveram o fizeram por trabalhar por salários muito baixos e lutar com inacreditável estoicismo. Não sobrava muito tempo ou energia para o futebol, formal ou informal. A liga soviética esteve fechada durante toda a guerra.

Entre 1939 e o final de 1942, a seleção alemã jogou mais de 30 jogos internacionais em um circuito de aliados, estados satélites e neutros. Bulgária e Hungria, distantes do pior da luta, mantiveram um calendário completo de futebol até os últimos dias da retirada alemã. As ligas eslovaca e croata, bem mais frágeis, duraram apenas alguns anos antes que a atividade da resistência e a oposição pública impuseram a sua interrupção. Os italianos jogaram até 1942 e a despeito da invasão do país em 1943 continuaram a jogar futebol depois. Na própria Alemanha, o futebol continuou durante os quatro anos da guerra. De fato, as autoridades estavam determinadas a utilizar a continuidade do futebol como um sinal para o povo alemão de que a guerra, embora fosse um doloroso sacrifício, não iria aniquilar totalmente a vida normal.

O ano de 1942 foi um ano decisivo para o desenrolar da guerra. O Afrika Korps havia sido derrotado pelos britânicos em El Alamein; o 6º. Exército estava prestes a ser aniquilado diante das ruínas de Estalingrado. A seleção nacional alemã, exausta pela impossibilidade de viajar e treinar em uma economia de guerra, estava fragilizada. Depois de uma derrota de 3 a 2 para a Suécia em Berlim, diante de 100 mil pessoas, o Ministro das Relações Exteriores pediu a proibição deste tipo de evento. Mas a seleção se recuperou vencendo a Eslováquia por 5 a 2 em Bratislava, em novembro de 1942.

No início de 1943, em resposta à realidade da diminuição da capacidade militar e econômica alemã, Goebbels perguntou ao povo se eles estavam prontos para a guerra total. Que iria acontecer, eles querendo ou não. Os jornais anunciaram a vasta lista de medidas, privações, sacrifícios e regulamentos que a guerra total implicava. Entre outras coisas, havia o cancelamento do futebol internacional pois os soldados estavam no front e os operários não poderiam ser dispensados do trabalho. Entretanto, algum espaço seria permitido para o futebol em casa: ‘competições esportivas de caráter local serão mantidas de forma a sustentar a ética de trabalho’. A demanda do público por futebol foi tão violenta que se permitiu a continuação de um campeonato nacional.

Este último suspiro de militarização da sociedade alemã viu a competição cheia de novas equipes como o Club Putnitz da Força Aérea e o União Esportiva SS Strassburg. Na primavera de 1944 o campeonato nacional ainda estava sendo jogado. Em agosto de 1944, com os russos nos subúrbios de Varsóvia e os americanos e britânicos em Paris, todos os homens entre 16 e 60 anos foram convocados a lutar: fim do jogo. O Terceiro Reich estava se desintegrando, suas estruturas futebolísticas em colapso, e à medida em que os cadáveres se acumulavam em torno, não havia nem mesmo como enterrar os mortos.

  • Na próxima semana: The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte E

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