/The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte E

The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte E

The ball is round – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – Parte E

Marcos Alvito

Torino 1949

VI. (O futebol europeu depois da Segunda Guerra Mundial: Guerra Fria)

Na década depois da Segunda Guerra Mundial, a Europa se dividiu entre Leste e Oeste. A balança do poder e o centro da política internacional estavam na Alemanha dividida. Há um paralelo óbvio com o desenvolvimento da história do futebol. O futebol na Europa Oriental e Ocidental foi reconstruído de acordo com linhas econômicas e políticas profundamente diferentes, o que fica patentemente demonstrado no contraste entre o modelo estalinista da Alemanha Oriental e sua emergente economia controlada e o comercialismo seguro do mercado na Alemanha Ocidental sob Konrad Adenauer. Mais do que isso, cada uma dessas regiões disputava a hegemonia do futebol europeu e até mundial. A Inglaterra, agora retornando ao futebol mundial, permanecia convencida de que o seu status pré-guerra continuava o mesmo e que era inalcançável. No Leste, o Esquadrão Dourado da Hungria apareceu para desafiar e por fim destruir estas ilusões. Mas a confirmação do seu desejo de supremacia global requeria a vitória na Copa de 1954 e isso foi impedido pela nova seleção da Alemanha Ocidental; como a nação que ela representava, havia sido apenas recentemente que ela tinha sido liberada da quarentena internacional e retornado à educada sociedade da nova ordem internacional.

O futebol italiano também participava da disputa, na forma do Il Grande Torino, a fantástica equipe italiana que ganhara cinco campeonatos entre 1943 e 1949 e forneceu a espinha dorsal da seleção italiana. O time inteiro morreu em um acidente aéreo em 1949. Na véspera do seu sexto título o Torino voltava para casa de um jogo amistoso com o Benfica em Lisboa. Em meio a uma densa neblina o avião colidiu com a montanha que existe abaixo do mosteiro Superga que está acima de Turim. Duzentas e cinquenta mil pessoas vieram para as ruas e se reuniram na catedral para enterrar os jogadores. O futebol italiano certamente iria se recuperar, mas o Torino foi destruído neste momento crucial de reconstrução pós-guerra. Eles nunca mais voltaram a retomar seu lugar na hierarquia do futebol. De forma semelhante, o futebol espanhol, recuperando-se da guerra civil, parecia estar produzindo jogadores de elite e times internacionalmente competitivos como o Barcelona e o Espanyol. O Barça não somente ganhou a liga espanhola três vezes em cinco temporadas mas também a nova Copa Latina, uma competição internacional entre clubes franceses, italianos e ibéricos. Quando a Copa Européia foi criada e a Espanha foi autorizada a voltar, o Barcelona havia sido substituído pelo novo Real Madri.

A supremacia britânica no imediato pós-guerra parecia intacta. A Grã-Bretanha enfrentou o resto da Europa em Hampden Park e ganhou de 6 a 1. O jogo foi organizado para marcar o retorno das Home Nations à FIFA, assinalando o fim de conflitos passados e a reencarnação do futebol internacional em tempos de paz. Também serviu para levantar um dinheirinho para a FIFA, que estava quebrada. A Grã-Bretanha, com pelo menos um jogador de cada nação, era quase totalmente um time formado por jogadores do pré-guerra. Os europeus não tinham nenhum jogador do Eixo, das ditaduras ibéricas ou dos estados comunistas emergentes do Leste. Havia um tcheco, mas naquele momento a Tchecoslováquia ainda possuía um governo de coalizão no qual os comunistas não estavam no controle. Os melhores jogadores vieram da Dinamarca, Holanda e Suécia, cuja neutralidade ou ocupação relativamente moderada permitiu que seus jogadores estivessem melhor alimentados e seu futebol mais robusto.

A imprensa e o público viram o jogo sob vários ângulos. O principal contraste presente na imprensa britânica era feito entre o caráter inato e instinto dos britânicos versus a dependência europeia do treinamento e do técnico. Assim como na cultura britânica em geral, o futebol britânico suspeitava de intelectuais, não gostava de teoria e desdenhava o conhecimento especializado certificado. A vitória da Grã-Bretanha foi compreensível, sua escala e facilidade contribuindo para fortalecer o consenso futebolístico britânico: ‘Uma partida que pareceu, quando foi jogada, confirmar o poder do futebol britânico de fato marcou seu crepúsculo’. O sol já estava se pondo sobre o Império Britânico. O Egito havia ido, a Índia também e a Inglaterra estava indo embora da Palestina o mais rapidamente possível.

Era difícil compreender a real posição do futebol britânico no mundo, pois em casa ele estava experimentando seu boom do pós-guerra. Em agosto de 1945 o eleitorado britânico e majoritariamente sua classe trabalhadora elegeu o primeiro governo Trabalhista com maioria na história do país, em um mandato que transformaria profundamente as estruturas econômicas e sociais da nação. Quase cem anos depois do colapso do Cartismo as classes trabalhadoras britânicas estavam organizadas e no poder. Simultaneamente, o futebol, indelevelmente escolhido como seu jogo, atingiu uma popularidade até então sem paralelo. Mesmo antes da guerra ele já era o principal evento esportivo do país, atraindo mais de 20 milhões durante a temporada 1938-1939. No pós-guerra o público dobra, atingindo o pico em 1949 com mais de 41 milhões e permanecendo acima de 30 milhões até o início de 1960. Uma medida do entusiasmo pelo futebol ao vivo era a FA Cup amadora, agora praticamente invisível, mas que em 1949, quando foi jogada pela primeira vez atraiu 95 mil pessoas a Wembley para a final. O futebol era o jogo da era da austeridade. Liberado das taxas que o governo cobrava do entretenimento durante a guerra, o ingresso era barato e diferentemente de outros prazeres, não era racionado nem disponível somente no mercado negro.

A classe operária se sentia no poder. O governo Attle implementou uma bem sucedida política de welfare state. Não houve, todavia, uma transformação em termos de investimentos em educação e na economia. Ou seja, a Inglaterra não se modernizou. De qualquer maneira, a balança de poder na indústria mudou a ponto de alcançar até mesmo setores tranquilos e desorganizados da economia, os jogadores de futebol. Com a ameaça de greve em novembro de 1945, a teto salarial subiu para 9 libras por semana e voltaram os bônus existentes antes da guerra. A luta contínua do cada vez mais importante sindicato dos jogadores (Professional Footballers’ Association – PFA) levou a uma vitória nos tribunais em 1947. O tribunal aumentou o teto para 12 libras e estabeleceu um piso decente para jogadores iniciantes, que ganhavam realmente muito pouco. Fora isso, nenhuma ruptura profunda com o passado era possível. A PFA certamente não tinha poder para desafiar a existência de um teto salarial nem tampouco o sistema feudal de contratos e transferências. Como os sindicatos de trabalhadores na economia mais ampla, eles registraram ganhos materiais sem alterar fundamentalmente as regras da organização industrial e do conflito. Nestas circunstâncias, os melhores e mais corajosos arriscaram sair da Inglaterra em um pequeno êxodo de jogadores britânicos tentando sua sorte na Itália, França e Colômbia na década de 1950.

A cultura futebolística e a indústria que eles deixaram para trás estava prosperando. O futebol profissional havia sido restabelecido em todo o país e os públicos recordes assistiram a um esporte ineditamente aberto e competitivo. Na década após a guerra oito times diferentes ganharam a liga nacional, incluindo quatro que nunca haviam ganho: Portsmouth, Chelsea, Tottenham e Wolverhampton Wanderers. Havia transmissões de rádio dos jogos imensamente populares. Mas a Football League, desconfiada e temerosa do impacto das transmissões, mantinha em segredo qual o jogo que seria transmitido. E agora passava a existir também a televisão, ainda na sua infância tecnológica e com preço proibitivo para a maioria. Apesar disso, conseguiu uma audiência de mais de um milhão de telespectadores para a final da FA Cup em 1950. Em 1953, com mais televisões disponíveis, mais de 10 milhões viram Stanley Matthews finalmente ganhar um título.

Para além das multidões ordeiras e alegres e do retorno à normalidade, havia outras coisas ocorrendo para quem soubesse ver. Em março de 1946, um jogo de desempate da FA Cup no Burnden Park, estádio do Bolton Wanderers, atraiu pelo menos 80 mil pessoas. De acordo com uma testemunha ocular, o estádio, especialmente suas arquibancadas de madeira atrás dos gols, não estava preparado para tal influxo de gente. Algumas pessoas da multidão, uma vez lá dentro, abriram um portão para permitir que amigos entrassem. E depois os outros portões que estavam fechados foram forçados até abrir. Quando a multidão percebeu que valia tudo, centenas começaram a escalar as paredes. A imensa pressão desta onda sobre aqueles que estavam no meio da arquibancada acabou levando à quebra das barreiras e paredes e à explosão da multidão para dentro do campo feito uma garrafa de champanhe sendo estourada. Trinta e três pessoas morreram e mais de 400 ficaram feridas. O relatório oficial sugere que as autoridades locais deveriam ter o poder de licenciar e inspecionar os estádios para prevenir a ocorrência de novas tragédias. As autoridades do futebol não estavam contentes. Fortemente conservadoras, temiam a intrusão do governo local, especialmente nas mãos do Partido Trabalhista. Os donos do futebol estavam convencidos de que os padrões de segurança seriam tal altos e os custos tão exorbitantes que eles seriam forçados a abandonar o negócio. No contexto da política do pós-guerra e diante da escala das mortes causadas pela guerra, este assunto parecia menor.

Mas os sinais mais claros vinham da própria seleção inglesa. A invencibilidade da equipe depois da guerra, as glórias ilusórias do jogo contra o Resto do Mundo e a popularidade do futebol doméstico conspiraram para esconder o declínio do futebol britânico. A FA chegou a apontar um técnico de tempo integral para a seleção, Walter Winterbottom, mas a convocação ainda continuava com o moroso, oculto e geralmente incompetente comitê de seleção. Winterbottom juntamente com Stanley Rous formava o lado moderno da FA. Ambos fizeram esforços consideráveis para melhorar o terrível estado da educação e do treinamento futebolísticos, argumentando que a sabedoria artesanal convencional do futebol britânico precisava ser substituída por um enfoque mais sistemático de treinamento, preparação física e tática. Mas permaneceram vozes minoritárias.

Este atraso do futebol britânico ficou patente depois da primeira e desastrosa participação da Inglaterra em uma Copa do Mundo, em 1950. A seleção conseguiu bater o Chile mas perdeu para os Estados Unidos – um time formado por ex-jogadores de divisões inferiores e por amadores – e depois para a Espanha, ambas as partidas por um a zero. A Inglaterra fora humilhada e estava fora da competição. Mas ainda queria manter a ilusão, atribuindo as derrotas a problemas de viagem, pouca familiaridade com as circunstâncias, contusões inesperadas e tão simplesmente ao acaso. Havia o mito de que em solo britânico a Inglaterra permaneceria invencível.

Este mito também seria finalmente dissolvido e esta dissolução viria do leste.

– Essa coluna voltará a ser publicada em setembro (2017): THE BALL IS ROUND – Capítulo 9: Jogos de vida, jogos de morte: o futebol europeu na guerra e na paz, 1934-1954 – PARTE F

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