A procissão dos ourives no Rio de Janeiro (primeira metade s.XIX)
Natureza e data do texto:
Idem: Memórias de um sargento de milícias (cap.17).
Texto:
“Um dia de procissão foi sempre nessa cidade um dia de grande festa, de lufa-lufa, de movimento e de agitação; e se ainda é hoje o que os nossos leitores bem sabem, na época em que viveram os personagens desta história a coisa subia de ponto; enchiam-se as ruas de povo, especialmente de mulheres de mantilha; armavam-se as casas, penduravam-se às janelas magníficas colchas de seda, de damasco de todas as cores, e armavam-se coretos em quase todos os cantos. (…)
Nesse tempo as procissões eram multiplicadas, e cada qual buscava ser mais rica e ostentar maior luxo: as da quaresma eram de uma pompa extraordinária, especialmente quando el-rei se dignava acompanhá-las, obrigando toda a corte a fazer outro tanto: a que primava porém entre todas era a chamada procissão dos Ourives. Ninguém ficava em casa no dia em que ela saía, ou na rua ou nas casas dos conhecidos e amigos que tinham a ventura de morar em lugar por onde ela passasse, achavam todos meio de vê-la. Alguns havia tão devotos, que não se contentavam vendo-a uma só vez; andavam de casa deste para a casa daquele, desta rua para aquela, até conseguir vê-la desfilar de princípio a fim duas, quatro e seis vezes, sem o que não se davam por satisfeitos. A causa principal de tudo isto era, supomos nós, além de talvez outras, o levar esta procissão uma coisa que não tinha nenhuma das outras: o leitor há de achá-la sem dúvida extravagante e ridícula; outro tanto nos acontece, mas temos obrigação de referi-la. Queremos falar de um grande rancho chamado das – baianas -, que caminhava adiante na procissão, atraindo mais ou tanto como os santos, os andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos era formado este rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome, e que dançavam no intervalo do Deo gratias uma dança lá a seu capricho. Para falarmos a verdade, a coisa era curiosa: e se não a empregassem como primeira parte de uma procissão religiosa, certamente seria mais desculpável. Todos conhecem o modo por que se vestem as negras da Bahia; é um dos modos de trajar mais bonito que temos visto, não aconselhamos porém que ninguém o adote; um país em que todas as mulheres usassem desse traje, especialmente se fosse desses abençoados em que elas são alvas e formosas, seria uma terra de perdição e de pecados. Procuremos descrevê-lo.
As chamadas baianas não usavam de vestido; traziam somente umas poucas de saias presas à cintura, e que chegavam pouco abaixo do meio da perna, todas elas ornadas de magníficas rendas; da cintura para cima apenas traziam uma finíssima camisa, cuja gola e mangas eram também ornadas de rendas; ao pescoço punham um cordão de ouro ou um colar de corais, os mais pobres eram de miçangas; ornavam a cabeça com uma espécie de turbante a que davam o nome de trunfas, formado por um grande lenço branco muito teso e engomado; calçavam umas chinelinhas de salto alto, e tão pequenas, que apenas continham os dedos dos pés, ficando de fora todo o calcanhar; e além de tudo isso envolviam-se graciosamente em uma capa de pano preto, deixando de fora os braços ornados de argolas de metal simulando pulseiras.”
Fonte: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Klick Editora, 1997. pp.61-62.