“Os capítulos iniciais do romance, e especialmente o segundo, são uma cuidadosa descrição da ideologia senhorial. Morto o conselheiro Vale, personagem de família tradicional e pertencente ‘às primeiras classes da sociedade’, as ações e tensões convergem para as disposições testamentárias do finado. O episódio parece exemplar e concentra o significado social mais decisivo a um determinado ideário de dominação de classe: a vontade do chefe de família, do senhor-proprietário, é inviolável, e é essa vontade que organiza e dá sentido às relações sociais que a cir-
20: cundam. Um dos momentos mais cruciais e ritualísticos desse ideal de dominação/subordinação é o da morte seguida da abertura de testamento; de fato, o que fica expresso em tal contexto é que a vontade senhorial carrega tamanha inércia que continua a governar os vivos postumamente. Por um lado, o testamento é a manifestação máxima de uma vontade senhorial, sendo ao mesmo tempo o encaminhamento da continuidade de uma política de domínio que precisa sobreviver ao ato derradeiro daquela vontade específica. Por outro lado, a situação de testamento, e posterior inventário, apresenta sempre um potencial de tensão e conflito: os herdeiros defendem seus interesses, e frequentemente se desentendem, no processo de partilha dos bens; os agregados e dependentes em geral vivem a incerteza da permanência de arranjos passados; e os escravos, via de regra o elo mais frágil, enfrentam o risco de ver suas famílias e comunidades divididas entre os herdeiros ou bruscamente destruídas por transações de compra e venda.”
Sidney Chalhoub. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 19-20.