“Marc Bloch, de Les Rois thaumaturges a La Société féodale, convidava-nos a considerar a ‘atmosfera mental’. De maneira mais insistente, Febvre exortava-nos a escrever a história das ‘sensibilidades’, dos odores, dos temores, dos sistemas de valores, e seu Rabelais demonstrava magnificamente que cada época tem sua própria visão de mundo, que as maneiras de sentir e pensar variam com o tempo e que, em consequência, o historiador é solicitado a se precaver o quanto puder das suas, sob pena de nada compreender. Febvre propunha-nos um novo objeto de estudo, as ‘mentalidades’. Era o termo que utilizava. Pois nós o retomamos. (…)
“Eis a definição oferecida por Gaston Bouthoul em 1952: ‘Por trás de todas as diferenças e nuances individuais subsiste uma espécie de resíduo psicológico estável, feito de julgamentos, conceitos e crenças aos quais aderem, no fundo, todos os indivíduos de uma mesma sociedade.’ Assim era que o entendíamos. Mas tomávamos uma certa distância. Com efeito, nós começávamos convencidos de que no interior de ‘uma mesma sociedade’ não existe apenas ‘um resíduo’. Ou pelo menos que este resíduo não apresenta a mesma consistência nos diversos meios ou estratos de que se compõe uma formação social. E sobretudo, recusávamo-nos a aceitar como ‘estável’ esse resíduo, ou antes esses resíduos (fazíamos questão do plural). Eles se modificam ao longo das eras, e nos propúnhamos precisamente a acompanhar atentamente tais modificações.
Já não utilizo a palavra mentalidade. Ela não é satisfatória, e não demoramos a nos dar conta disso. Na época, no entanto, pelo fim dos anos cinquenta, convinha perfeitamente, em razão de suas fraquezas, de sua própria imprecisão, para designar a terra incógnita, que convidávamos os historiadores a explorar conosco e da qual ainda não conhecíamos os limites nem a topografia. De que se tratava, com efeito ? De atravessar o limiar em que esbarra o estudo das sociedades do passado quando se limita a considerar os fatores materiais, a produção, as técnicas, a população, as trocas. Sentíamos a urgência de ir mais além, para junto das forças que não se situam nas coisas, mas na idéia que delas se tem, e que comandam na realidade de forma imperativa a organização e o destino dos grupos humanos. (…) Enunciávamos entretanto dois princípios, fundamentais a nosso ver.
Afirmávamos em primeiro lugar que o estudo a longo prazo desse sistema não deve em hipótese alguma ser isolado do estudo da materialidade, e foi efetivamente para justificar esta proposição primordial que nos apegamos a esta palavra, ‘mentalidade’. (…)
Todavia – e vinha aqui nosso segundo princípio – não era pelos indivíduos que nos interessávamos. (…)
Com o termo mentalidades, designávamos o conjunto vago de imagens e certezas não conscientizadas ao qual se referem todos os membros de um mesmo grupo. Propúnhamos que as atenções se concentrassem nesse fundo comum, neste cerne, em um nível mais baixo do que cada pessoa pudesse imaginar e decidir. (…) nós procurávamos reconhecer não o que cada pessoa mantém acidentalmente recalcado fora de sua consciência, mas este magma confuso de presunções herdadas ao qual se refere a cada momento, sem prestar atenção nele mas sem tampouco expulsá-lo de seu espírito.
Em 1961, tive a oportunidade de me explicar um pouco sobre nosso projeto (…) um capítulo sobre a história das mentalidades num volume da Encyclopédie de la Pléiade dedicado à história e seus métodos. (…) tudo, até as resistências mais empedernidas, estava sendo arrastado pela poderosa corrente que ao longo de uma década, entre meus trinta e cinco e quarenta e cinco anos, mudou na França o curso da investigação histórica, por efeito conjugado dos desafios da antropologia estrutural e do degelo do pensamento marxista.”
DUBY,G.[1993] A história continua.Rio de Janeiro:Jorge Zahar:Ed.UFRJ. páginas. 87-92)