“Compreender o passado pelo presente” [método regressivo]
“É tal a força de solidariedade das épocas que os laços de inteligibilidade entre elas se tecem verdadeiramente nos dois sentidos. A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja mais útil esforçarmo-nos por compreender o passado se nada sabemos do presente. Já contei algures esta anedota: acompanhava eu Henri Pirenne a Estocolmo; mal chegáramos, diz-me ele: ‘Que vamos nós ver primeiro ? Parece-me que há uma Câmara nova. Comecemos por lá.’ Depois, como se me quisesse evitar um movimento de surpresa, acrescentou: ‘Se eu fosse um antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou um historiador. É por isso que amo a vida.’ Nesta faculdade de apreensão do que é vivo é que reside, efetivamente, a qualidade fundamental do historiador.” (pp.42-43) (…)
“Porque o frêmito de vida humana, necessitando de um esforço penoso de imaginação que a restitua aos velhos textos, é daquela maneira diretamente perceptível pelos nossos sentidos. Já tenho lido muitas vezes, já muitas vezes tenho contado, descrições de guerra e de batalhas. Mas conhecia eu verdadeiramente, no pleno sentido do verbo conhecer, conhecia eu por dentro, antes de por mim mesmo ter experimentado o gosto da sua náusea atroz, o que representam para um exército o cerco, para um povo a derrota ? (…) Em boa verdade, conscientemente ou não, é sempre às nossas experiências cotidianas que, em última análise, vamos buscar, dando-lhes, onde for necessário, os matizes de novas tintas, os elementos que nos servem para a reconstituição do passado: as próprias palavras de que nos servimos para caracterizar os estados de alma desaparecidos, as formas sociais estioladas, que sentido teriam para nós se não tivéssemos visto primeiro viver os homens ? (…) o erudito que não tenha o gosto de olhar à volta de si mesmo, nem para os homens, nem para as coisas, nem para os acontecimentos, merece talvez, como dizia Pirenne, que lhe chamem um prestimoso antiquário. Mas deveria ter o bom senso de renunciar ao nome de historiador.” (pp. 43-44) “Além do mais, não é apenas a educação da sensibilidade histórica que está em causa. Acontece que, numa determinada linha, o conhecimento do presente interessa mais diretamente ainda à inteligência do passado. (…) Porque o caminho natural de qualquer investigação se faz do mais bem ou do menos mal conhecido para o mais obscuro. (…) procedendo mecanicamente de trás para a frente corremos sempre o risco de perder o tempo à caça dos primórdios ou das causas dos fenômenos que depois, à luz da experiência, se revelarão talvez imaginários. Por não terem praticado, quando e onde se impunha, um método prudentemente regressivo é que ilustres historiadores cometeram, por vezes, erros estranhos. Acontece, e com mais freqüência do que se pensa, que se tenha exatamente de vir até o presente para que a luz se faça. Por alguns de seus caracteres fundamentais a nossa paisagem rural (…) data de épocas extremamente remotas. Mas houve uma condição primordial a respeitar, a fim de interpretarmos os raros documentos que permitem penetrar nessa gênese brumosa, de pormos os problemas corretamente, de formarmos sequer uma idéia deles: tal condição foi observar, analisar a paisagem de hoje. (…) porque só ela podia propiciar as perspectivas de conjunto de que era necessário partir.” (pp. 44-45)