A NEOFAVELA (CIDADE DE DEUS)
Natureza e data do texto:
Passagem do romance Cidade de Deus, de Paulo Lins, publicado em 1997 (Companhia das Letras). Neste trecho ele está remontando à formação inicial do conjunto residencial Cidade de Deus a partir de 1966 (desabrigados da enchente daquele ano). Pp.17-19;35-36.
“Aqui agora uma favela, a neofavela de cimento, armada de becos-bocas, sinistros silêncios, com gritos-desesperos no correr das vielas e na indecisão das encruzilhadas.
Os novos moradores levaram lixo, latas, cães, vira-latas, exus e pomba-giras em guias intocáveis, dias para se ir à luta, soco antigo para ser descontado, restos de raiva de tiros, noites para velar cadáveres, resquícios de enchentes, biroscas, feiras de quartas-feiras e as de domingos, vermes velhos em barrigas infantis, revólveres, orixás enroscados em pescoços, frango de despacho, samba de enredo e sincopado, jogo do bicho, fome, traição, mortes, jesus cristos em cordões arrebentados, forró quente para ser dançado, lamparina de azeite para iluminar o santo, fogareiros, pobreza para querer enriquecer, olhos para nunca ver, nunca dizer, nunca, olhos e peito para encarar a vida, despistar a morte, rejuvenescer a raiva, ensangüentar destinos, fazer a guerra e para ser tatuado. Foram atiradeiras, revistas Sétimo Céu, panos de chão ultrapassados, ventres abertos, dentes cariados, catacumbas incrustadas nos cérebros, cemitérios clandestinos, peixeiros, padeiros, missa de sétimo dia, pau para matar a cobra e ser mostrado, a percepção do fato antes do ato, gonorréias malcuradas, as pernas para esperar ônibus, as mãos para o trabalho pesado, lápis para as escolas públicas, coragem para virar a esquina e sorte para o jogo de azar. Levaram também as pipas, lombo para a polícia bater, moedas para jogar porrinha e força para tentar viver. Transportaram também o amor para dignificar a morte e fazer calar as horas mudas.
Por dia, durante uma semana, chegavam de trinta a cinqüenta mudanças, do pessoal que trazia no rosto e nos móveis marcas das enchentes. Estiveram alojados no estádio de futebol Mário Filho e vinham em caminhões estaduais cantando:
Cidade Maravilhosa
Cheia de encantos mil
Em seguida, moradores de várias favelas e da Baixada Fluminense chegavam para habitar o novo bairro, formado por casinhas enfileiradas brancas, rosas e azuis. Do outro lado do braço esquerdo do rio, construíram os Apês, conjunto de prédios de apartamentos de um e dois quartos, alguns com vinte e outros com quarenta apartamentos, mas todos com cinco andares.”
(…)
Através de brigas, jogos de futebol, viagens diárias de ônibus, da freqüência aos cultos religiosos e às escolas, uma nova comunidade surgiu efusivamente. Os grupos vindos de cada favela integraram-se em uma nova rede social forçosamente estabelecida. A princípio, alguns grupos remanescentes tentaram o isolamento, porém em pouco tempo a força dos fatos deu novo rumo ao dia-a-dia: nasceram os times de futebol, a escola de samba do conjunto, os blocos carnavalescos… tudo concorria para a integração dos habitantes de Cidade de Deus, o que possibilitou a formação de amizades, rixas e romances entre essas pessoas reunidas pelo destino. Os adolescentes utilizavam-se da fama negativa da favela onde haviam morado para intimidar os outros em caso de briga ou mesmo nos jogos, na pipa voada, na disputa por uma namorada. Quanto maior a periculosidade da favela de origem melhor era para impor respeito, mas logo, logo, sabia-se quem eram os otários, malandros, vagabundos, trabalhadores, bandidos, viciados e considerados. (…)
Nenhuma das favelas teve sua população totalmente transferida para as casas do conjunto. A distribuição aleatória da população entre Cidade de Deus, Vila Kennedy e Santa Aliança, os outros dois conjuntos criados na Zona Oeste para atender os flagelados das enchentes, acabou mutilando famílias e antigos laços de amizade. Muitas delas recusaram a mudança para Cidade de Deus, por acharem o lugar muito distante. Mas os favelados da Ilha das Dragas [na Lagoa R.Freitas] e do Parque Proletário da Gávea vieram em massa povoar Os Apês, onde o entrosamento foi mais facilmente alcançado.”