Não dispomos de fatos mas dispomos de textos onde há uma representatividade qualitativa
“Vamos, porém, retomar a primeira pergunta: é óbvio que não podemos estar seguros se o sr. Hopkins açoitava os escravos sem prazer. Douglass poderia haver interpretado mal seus gestos, poderia haver confundido suas lembranças, inclusive poderia haver inventado tudo. No entanto, há uma coisa da qual estamos absolutamente seguros, e esta coisa é a existência da narração de Douglass. Não temos, pois, a certeza do fato, mas apenas a certeza do texto: o que nossas fontes dizem pode não haver sucedido verdadeiramente, mas está contado de modo verdadeiro. Não dispomos de fatos, mas dispomos de textos; e estes, a seu modo, são também fatos, ou o que é o mesmo: dados de algum modo objetivos, que podem ser analisados e estudados com técnicas e procedimentos em alguma medida controláveis, elaborados por disciplinas precisas como a lingüística, a narrativa ou a teoria da literatura.
Todas estas disciplinas também nos permitem lançar uma ponte entre a subjetividade individual e aquela que vai mais além dos indivíduos. De fato, os textos – tanto os relatos orais como os diálogos de uma entrevista – são expressões altamente subjetivas e pessoais, como manifestações de estruturas do discurso socialmente definidas e aceitas (motivo, fórmula, gênero, estilo). Por isso é possível, através dos textos, trabalhar com a fusão do individual e do social, com expressões subjetivas e práxis objetivas articuladas de maneira diferente e que possuem mobilidade em toda narração ou entrevista, ainda que, dependendo das gramáticas, possam ser reconstruídas apenas parcialmente. Neste sentido, a construção do que comumente se chama ‘cânon’ literário constitui uma probabilidade de se instituir, inclusive, um conceito de representatividade qualitativa, mais do que quantitativa ou estatística, o que é precisamente o problema que estudamos quando nos pedem que definamos a representatividade de nossas fontes.”
(páginas 64-65)
PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais”. Tempo 2, Revista do Departamento de História, Rio de Janeiro, dez. 1996.