O exemplo da média de chibatadas – uma tentativa de banir a subjetividade
“A impossibilidade de passar do individual ao social tornaria inutilizáveis para fins científicos as fontes orais e as memórias, na medida em que a subjetividade constitui o seu próprio argumento.
A aproximação mais usual consiste, pois, em tentar excluir a subjetividade, tanto das fontes como do observador, do campo dos fenômenos estudados, para concentrar-se em fenômenos aparentemente mais concretos e controláveis. Assim, historiadores quantitativos como Robert Fogel ou Stanley D.Engerman não levantaram o problema dos impalpáveis estados de ânimo do que açoita e do que é açoitado, mas a contagem do número exato de chibatadas. Utilizando todas as fontes documentais disponíveis e sofisticados métodos de análise estatística, chegaram á conclusão de que os escravos eram açoitados uma média de 0,7 vezes por ano. Trata-se de uma modalidade de pesquisa indubitavelmente legítima e necessária, ainda que possua uma grande dose de abstração quanto à realidade e, portanto, em última instância, um risco sério de falsificação: pois, apesar de tudo, é literalmente impossível açoitar uma pessoa 0,7 vezes.
Em realidade, é impossível até mesmo comparar os açoites entre si, ou medir precisamente o vigor com que os açoites foram administrados; este dado, de fato, depende em parte inclusive do prazer ou do desprazer de quem tem em mãos a chibata. Por isso, por muito controlável ou conhecida que seja, a subjetividade existe, e constitui, além disso, uma característica indestrutível dos seres humanos.”
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PORTELLI, Alessandro. “A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais”. Tempo 2, Revista do Departamento de História, Rio de Janeiro, dez. 1996.