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Ei, Juiz…

 

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Ei, Juiz…

Marcos Alvito

Ele faz parte do jogo, querendo ou não. É o árbitro de futebol que autoriza ou não o início da partida, avaliando as condições do campo e do estádio. É ele que trila o famoso “apito final”, a partir do qual o placar torna-se sentença definitiva. Além disso, a forma pela qual o jogo é disputado, dependendo do grau de violência autorizado, depende novamente do juiz. Bem como o ritmo e a fluência do jogo, de acordo com o número maior ou menor de interrupções. Isso para não falar nas decisões polêmicas, nas diferentes possibilidades de interpretação ou do erro grosseiro que muitas vezes decidem as partidas.

Muito se fala e escreve sobre os juízes, mas raramente ouvimos os próprios. Talvez existam, mas desconheço pesquisas sobre a formação de árbitros no Brasil ou uma etnografia acerca da sua atuação. Por isso achei interessante ler e resenhar para vocês o livro escrito por Teodoro Castro Lino: O outro lado do futebol (Goiânia: Sermograf, 2013). O autor foi jogador de futebol, tendo inclusive jogado no Botafogo em 1970, encerrando a carreira em 1974. Cerca de uma década depois, em 1985, torna-se árbitro da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro, tendo chegado a ser árbitro FIFA. Dos agradecimentos, depreendo que a redação do livro teve a ajuda de dois jornalistas, que tornaram o texto bastante fluente e agradável.

Por um lado, o livro parece um manual para os candidatos à profissão. A primeira parte chama-se “Árbitro de futebol” e trata das qualidades necessárias a árbitros e árbitros-assistentes (os populares bandeirinhas). Aqui, além de conselhos, Teodoro faz algumas observações importantes. Propõe, diante da realidade milionária do futebol, que seja criado um fundo para “formação, aprimoramento e suporte à arbitragem”. Arnaldo César Coelho, entrevistado pelo autor, considera que o nível da arbitragem tem caído nos últimos anos.

Teodoro propõe uma regra semelhante à dos clubes: o rebaixamento dos cinco piores árbitros da Série A, substituídos pelos cinco melhores da Série B. Reclama, com razão, do fato dos árbitros ainda não serem profissionais reconhecidos: a quase totalidade deles tem outro emprego, o que obviamente prejudica seu desempenho. Aliás, para os interessados: o curso tem duração de nove meses e está aberto aos maiores de 16 anos.

Quando das observações acerca da feitura da famosa “súmula”, que ele chama de relatório, fico surpreso com orientações acerca de como proceder quando de uma “tentativa de suborno”, o que indica, sem dúvida, que episódios desta natureza tem uma certa frequência.

JUIZ DE FORA / MINAS GERAIS / BRASIL 20.03.2016 Atlético x Tupi no estádio Municial Radialista Mário Helénio - Campeonato Mineiro 2016 - foto: Bruno Cantini/Atlético MG

Árbitro joga a moeda para decidir quem começa com a bola e quem escolhe o campo na partida entre Atlético x Tupi. Foto: Bruno Cantini/Clube Atlético Mineiro.

Por outro lado, o livro também funciona como um manual de aplicação das regras de futebol, comentadas uma a uma. Antes disso, todavia, o autor faz uma “Pequena história da arbitragem brasileira” que começa por um item muito significativo chamado “A falta de organização”. Ele cita um caso vergonhoso (mais um) da CBF:

“Para ilustrar a falta de organização do futebol brasileiro, tome-se como exemplo o descaso com o cumprimento e divulgação das regras do esporte. O último livro sobre regras atualizadas pela CBF datava de 1999. Entretanto, só no final de 2002 e início de 2003 foi que a entidade maior do futebol brasileiro começou a distribuir às comissões de arbitragem o livro ‘atualizado’ dessas regras. As alterações que foram feitas durante esse período foram repassadas aos árbitros – imagine-se – por meio de circulares.”

Mas há algo que é muito organizado: a pressão que os grandes clubes fazem sobre os juízes. Aqui Teodoro Lino não doura a pílula e admite que muitos árbitros fazem o jogo das agremiações mais poderosas e ai deles se não o fizerem, pois serão punidos pelas federações:

“em relação a alguns jogadores, percebe-se que certos árbitros têm receio de expulsá-los, dada a sua fama e o seu valor econômico nas competições. Muitas vezes, o árbitro que age com um pouco mais de rigor na parte disciplinar pode ficar um período sem ser escalado (geladeira) ou até mesmo ser cortado do quadro de árbitros da entidade a que pertence. Num confronto entre a autoridade que as regras conferem aos árbitros e o poder dos cartolas, esses últimos ganham disparado, tendo em vista o fraco respaldo oferecido pelas comissões de arbitragem. Para não serem punidos, muitos árbitros, ao relatarem uma expulsão (que não tiveram como evitar), produzem relatórios vagos ou imprecisos, permitindo assim que os advogados dos clubes consigam pequenas punições ou multas irrisórias.”

Corroborando o que o autor disse, certa vez conversei com um velho árbitro, que apitava no Campeonato Carioca décadas atrás. Segundo ele, jamais foi escalado para apitar um clássico. Era uma punição pelo fato dele contrariar a orientação explícita da federação para que os árbitros favorecessem os grandes clubes no confronto com os pequenos.

O que o autor propõe é o fortalecimento de instâncias coletivas dos árbitros, além da já mencionada profissionalização. Ou seja: a regulamentação da profissão de árbitro de futebol e a criação de um sindicato da categoria.

Rio de Janeiro- RJ- Brasil- 08/12/2014- A 10ª edição do Craque Brasileirão foi uma festa em família. A versão 2014 consagrou os 11 melhores do campeonato, o craque, a revelação, o melhor técnico, o craque da galera, mas, sobretudo, reuniu os jogadores e suas famílias em evento que ficará marcado na carreira e na vida de todos. Foto: Rafael Ribeiro/ CBF

A 10ª edição do Craque Brasileirão (2014) premiou também a arbitragem. Foto: Rafael Ribeiro/ CBF.

Mais de cem páginas do livro são dedicadas ao surgimento e à evolução das regras de futebol, sistematicamente analisadas pelo autor. A primeira observação a se fazer é que ao contrário do que afirma o senso comum futebolístico, as regras do jogo mudaram muitíssimo. Não tenho espaço nem é meu propósito fazer aqui o levantamento destas transformações – quem sabe em outra coluna – mas vou dar dois exemplos importantes. Primeiro: a regra de hoje cita explicitamente a possibilidade dos jogos serem disputados em grama sintética. Não há nenhuma especificação do tipo de gramado artificial, da altura da “grama”, por exemplo. Ela tem apenas que ser verde. Eu, particularmente, acho uma novidade absurda e nefasta, já adotada pelo Atlético Paranaense no Brasileirão de 2016. As jogadoras da Copa do Mundo Feminina de 2015 reclamaram muito e chegaram até mesmo a iniciar uma ação no Tribunal de Direitos Humanos de Ontário. Uma delas, a espanhola Vero Boquete, afirmou em entrevista ao El País:

os tempos de recuperação são diferentes, pois em campos artificiais o desgaste muscular é muito maior… é uma desvantagem” (…) “Quanto você dá um carrinho ou cai em um campo de futebol artificial, as feridas são graves. Em nível muscular, a forma como a perna e o pé prendem-se ao campo são diferentes, as costas, os joelhos, os tornozelos sofrem mais…”

Eu desconhecia que a International Board já tivesse aprovado o uso do campo de plástico em toda e qualquer competição de futebol. Será que é uma tentativa desesperada de conquistar mais mercado em países com inverno rigoroso ?

O outro exemplo é bem mais engraçado e leve, mas também demonstra o nosso (ao menos o meu) enorme desconhecimento das regras do jogo. Vocês sabiam que qualquer jogador pode sair de campo durante o jogo para fazer suas necessidades fisiológicas no vestiário? E se for o goleiro, que também tem esse direito, o juiz tem que interromper o jogo… Espero que não se transforme numa nova forma de cera.

A última e mais divertida parte do livro chama-se “Histórias do apito”. Há várias engraçadíssimas: a mãe do próprio Teodoro que ao ouvir o filho ser chamado de filho … retruca dizendo que ele era na verdade um bom filho e ela uma mulher direita; o juiz que expulsou os 22 em um Portuguesa x Botafogo; o que foi preso pelo presidente do clube (CSA) ainda no estádio e levado para a delegacia; e até mesmo a do juiz que se surpreendeu com a existência de uma torcida organizada a gritar seu nome durante todo o jogo. Mas é claro que esta última não foi no Brasil e sim no Peru.

Como era de se esperar, Teodoro Lino não comenta diretamente nenhum caso de suborno, embora dê a entender que ele existe. Mas desta vez eu mesmo forneço a evidência, contando o milagre sem dar nome aos “santos”. Pessoa muito próxima a um ex-árbitro carioca de outros tempos me informou que ele recebeu pagamento para “ajeitar” uma final de campeonato. A transação era tão corriqueira que foi pago em vários cheques pré-datados…