A festa do Divino Espírito Santo no Rio de Janeiro com direito a cavaquinho [machete] (primeira metade s.XIX)
Natureza e data do texto:
Passagem do romance Memórias de um sargento de milícias (cap.19), de Manuel Antônio de Almeida (1831-61). Foi publicado inicialmente sob a forma de folhetim no Correio da Manhã entre 1852-3. O autor procura descrever o Rio de Janeiro da época de D.João VI e do famoso Vidigal (chefe de polícia). Acaba por ser um documento importante acerca do cotidiano das classes populares no Rio de Janeiro do início do século XIX.
Texto:
“A festa não começava no domingo marcado pela folhinha, começava muito antes, nove dias, cremos, para que tivessem lugar as novenas. O primeiro anúncio das festas eram as folias. (…) Durante os nove dias que precediam ao Espírito Santo, ou mesmo não sabemos se antes disso, saía pelas ruas da cidade um rancho de meninos, todos de nove a onze anos, caprichosamente vestidos à pastora: sapatos cor-de-rosa, meias brancas, calção da cor do sapato, faixas à cintura, camisa branca de longos e caídos colarinhos, chapéus de palha de abas largas, ou forrados de seda, tudo isto enfeitado com grinaldas de flores, e com uma quantidade prodigiosa de laços de fita encarnada. Cada um destes meninos levava um instrumento pastoril em que tocavam, pandeiro, machete [cavaquinho] e tamboril. Caminhavam formando um quadrado, no meio do qual ia o chamado imperador do Divino, acompanhado por uma música de barbeiros, e precedidos e cercados por uma chusma de irmãos de opa levando bandeiras encarnadas e outros emblemas, os quais tiravam esmolas enquanto eles cantavam e tocavam.
O imperador, como dissemos, ia no meio: ordinariamente era um menino mais pequeno que os outros, vestido de casaca de veludo verde, calção de igual fazenda e cor, meias de seda, sapatos afivelados, chapéu de pasta, e um enorme e rutilante emblema do Espírito Santo ao peito: caminhava pausadamente e com ar grave.
Confessem os leitores se não era coisa deveras extravagante ver-se um imperador vestido de veludo e seda, percorrendo as ruas cercado por um rancho de pastores, ao toque de pandeiro e machete. Entretanto, apenas se ouvia ao longe a fanhosa música dos barbeiros, tudo corria à janela para ver passar a folia: os irmãos aproveitavam-se do ensejo, e iam colhendo esmolas de porta em porta.
Enquanto caminhava o rancho, tocava a música de barbeiros; quando parava, os pastores, acompanhando-se com seus instrumentos, cantavam: as cantigas eram pouco mais ou menos no gênero e estilo desta:
O Divino Espírito Santo
É um grande folião,
Amigo de muita carne,
Muito vinho e muito pão.
Eis aí o que era a folia…”
Fonte: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Klick Editora, 1997. pp.68-69.