Modinhas (primeira metade do século XIX)
Natureza e data do texto:
Passagens do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida.
A – Na festa do batizado
Texto:
“Depois do minuete foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira aferventou, com se dizia naquele tempo. Chegaram uns rapazes de viola e machete: o Leonardo, instado pelas senhoras, decidiu-se a romper a parte lírica do divertimento. Sentou-se num tamborete, em lugar isolado da sala, e tomou uma viola. Fazia um belo efeito cômico vê-lo em trajes do ofício [era meirinho], de casaca, calção e espadim, acompanhando um monótono zunzum nas cordas do instrumento o garganteado de uma modinha pátria. Foi nas saudades da terra natal que ele achou inspiração para o seu canto, e isto era natural a um bom português, que o era ele.
A modinha era assim:
Quando estava em minha terra,
Acompanhado ou sozinho,
Cantava de noite e de dia
Ao pé dum copo de vinho!
Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo;
(…)
O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se a brincadeira, foi o adeus geral às cerimônias. Tudo daí em diante foi burburinho, que depressa passou à gritaria, e ainda mais depressa à algazarra, e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando viam-se passar através das rótulas da porta e da janela umas figuras que denunciavam que o Vidigal andava perto.”
Fonte: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Klick Editora, 1997. pp.15-16.
B – Reunião nos Cajueiros (perto do Morro da Providência) com jogo, vinho e música
Texto:
“Começava a cair a noite.
-
Vamos levantar súcia, minha gente, disse um dos convivas.
-
Sim, vamos.
-
Nada, inda não: Vidinha vai cantar uma modinha.
-
Sim, sim, uma modinha primeiro; aquela: ‘Se os meus suspiros pudessem’.
-
Não, essa não, cante aquela: ‘Quando as glórias que eu gozei’
-
Vamos lá, decidam, respondeu uma voz de moça aflautada e lânguida.
Vidinha era uma mulatinha de dezoito a vinte anos, de altura regular, ombros largos, peito alteado,, cintura fina e pés pequeninos; tinha os olhos muito pretos e muito vivos, os lábios grossos e úmidos, os dentes alvíssimos, a fala era um pouco descansada, doce e afinada.
Cada frase que proferia era interrompida com uma risada prolongada e sonora, e com um certo caído de cabeça para trás, talvez gracioso se não tivesse muito de afetado.
Assentou-se finalmente que ela cantaria a modinha: ‘Se os meus suspiros pudessem’.
Tomou Vidinha de uma viola, e cantou acompanhando-se em uma toada insípida hoje, porém de grande aceitação naquele tempo, o seguinte:
Se os meus suspiros pudessem
Aos teus ouvidos chegar,
Verias que uma paixão
Tem poder de assassinar.
Não são de zelos
Os meus queixumes,
Nem de ciúme
Abrasador;
São das saudades
Que me atormentam
Na dura ausência
De meu amor.
O Leonardo, que talvez hereditariamente tinha queda para aquelas coisas, ouviu boquiaberto a modinha, e tal impressão lhe causou, que depois disso nunca mais tirou os olhos de cima da cantora. A modinha foi aplaudida como cumpria. Levantaram-se então, arrumaram tudo o que tinham levado em cestos e puseram-se a caminho, acompanhando o Leonardo o farrancho.”
Fonte: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Klick Editora, 1997. pp.103-104.
C – Cantando em frente de casa, na rua da Vala (hoje Uruguaiana)
Texto:
“Mal se haviam todos sentado em uma larga esteira junto à soleira da porta sobre a calçada, Leonardo propôs logo que se cantasse uma nova modinha.
-
Qual… respondeu Vidinha acompanhando este qual da sua costumeira risada; estou já tão cansada… que nem posso!
-
Ora… ora… disseram umas poucas de vozes. Além do costume das risadas tinha Vidinha um outro, e era o de começar sempre tudo que tinha a dizer por um qual muito acentuado; respondeu ainda portanto:
-
Qual… pois se eu também já cantei tudo que sabia. Qual, meu Deus! Nem eu posso mais!
-
Ainda não cantou a minha favorita, disse um dos presentes.
-
Nem a minha, disse outro.
-
Eu também, acrescentou outro, ainda não lhe pedi aquela cá do peito.
-
Qual, meu Deus! Onde é que isto vai parar!
-
Ora, mana, não se faça de boa.
-
Ai, criatura, disse uma das velhas, quereis que vos reze um responso para cantares uma modinha ?
Leonardo, vendo sua causa advogada por tantas vozes, conservou-se calado. Tentados mais alguns meios, e feitas mais algumas negaças, Vidinha decidiu-se, e tomando a viola cantou, segundo a indicação de uma das velhas, o seguinte:
Duros ferros me prenderam
No momento de te ver;
Agora quero quebrá-los,
É tarde, não pode ser.”
Fonte: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: Klick Editora, 1997. pp.105-106.