/A “PRÉ-HISTÓRIA” DO SAMBA – Pagode dominical (final do século XIX)

A “PRÉ-HISTÓRIA” DO SAMBA – Pagode dominical (final do século XIX)

Pagode dominical

Natureza e data do texto: Passagens do romance O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, datado de 1890 mas cuja ação se passa antes da Abolição. Capítulos VI e VII.

Texto:

“E entre a alegria levantada pela sua reaparição no cortiço, a Rita deu conta do que pintara na sua ausência; disse o muito que festou em Jacarepaguá; o entrudo que fizera pelo carnaval. Três meses de folia! E, afinal, abaixando a voz, segredou às companheiras que à noite teriam um pagodinho de violão. Podiam contar como certo!

Esta última notícia causou verdadeiro júbilo no auditório. As patuscadas da Rita Baiana eram sempre as melhores da estalagem. Ninguém como o diabo da mulata para armar uma função que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a gente como foi que a noite se passou tão depressa. Além de que ‘era aquela franqueza! enquanto houvesse dinheiro ou crédito, ninguém morria com a tripa murcha ou com a goela seca !”

(…)

E assim ia correndo o domingo no cortiço até às três da tarde, horas em que chegou mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo aquele o violão e o outro o cavaquinho.

Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era um mulato pachola, delgado de corpo e ágil como um cabrito; capadócio de marca, pernóstico, só de maçadas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira. Teria seus trinta e tantos anos, mas não parecia ter mais de vinte e poucos.

(…)

Não trazia gravata, nem colete, sim uma camisa de chita nova e ao pescoço, resguardando o colarinho, um lenço alvo e perfumado; à boca um enorme charuto de dois vinténs e na mão um grosso porrete de Petrópolis, que nunca sossegava, tantas voltas lhe dava ele a um tempo por entre os dedos magros e nervosos.

Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para gastar num dia; às vezes porém os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o dinheiro, e então ele fazia como naqueles últimos três meses; afogava-se numa boa pândega com a Rita Baiana. A Rita ou outra.”

(…)

O amigo que Firmo trazia aquele domingo em sua companhia, o Porfiro, era mais velho do que ele e mais escuro. Tinha o cabelo encarapinhado. Tipógrafo. Afinavam-se muito os dois tipos com suas calças de boca larga e com os seus chapéus ao lado; mas o Porfiro tinha outra linha: não dispensava a sua gravata de cor saltando em laço frouxo sobre o peito da camisa, fazia questão da sua bengalinha com cabeça de prata e da sua piteira de âmbar e espuma, em que ele equilibrava um cigarro de palha.

Desde a entrada dos dois, a casa da Rita esquentou. Ambos tiraram os paletós e mandaram vir parati, ‘a abrideira pra moqueca Baiana’. E não tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão.

(…)

Em casa da Rita Baiana a animação era ainda maior [do que na casa dos portugueses, onde se cantava o fado]. Firmo e Porfiro faziam o diabo, cantando, trocando bestialógicos, arremedando a fala dos pretos caçanjes.

(…)

Terra minha, que te adoro,

Quando é que eu te torno a ver?

Leva-me deste desterro;

Basta já de padecer.

Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam todos, até mesmo os brasileiros se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais do que os primeiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor; música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doce, fazendo estalar de gozo.

E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e besouros venenosos, freneticamente, bêbedos do delicioso perfume que os mata de volúpia.

E à viva crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas dos de além-mar. Assim à refulgente luz dos trópicos amortece a fresca e doce claridade dos céus da Europa, como se o próprio sol americano, vermelho e esbraseado, viesse, na sua luxúria de sultão, beber a lágrima medrosa da decaída rainha dos mares velhos.

(…)

Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas.

(…)

Ela [Rita Baiana] saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titilando.

Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil, de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço batendo os calcanhares, os braços a querer fugir-lhe dos ombros, a cabeça a querer saltar-lhe. E depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre.

O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio, tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.

(…)

Passaram-se horas (…) O círculo do pagode aumentou (…)”

Fonte: AZEVEDO,Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Klick Editora, 1997. pp. 52-56;61-63.