UM MORALISTA HORRORIZADO DIANTE DOS CALUNDUS (séculos XVII-XVIII)
Natureza e data do texto:
Passagens do Compêndio narrativo do peregrino da América, do moralista baiano Nuno Marques Pereira (c.1652-c.1733), o qual, disposto a denunciar os erros e vícios do seu tempo descreve, no capítulo XI da sua obra, um batuque ouvido na casa de um proprietário do Recôncavo na passagem do XVII para o XVIII.
Texto (na grafia original):
“Não era ainda de todo dia, quando ouvi tropel de calçado na varanda: e considerando andar nela o dono da casa, me puz de pé; e saindo da câmera, o achei na varanda, e lhe dei os bons dias, e ele também a mim. Perguntou-me como havia em passado a noite? Ao que lhe respondi: Bem de agasalho, porém desvelado; porque não pude dormir toda a noite. Aqui acudiu ele logo, perguntando-me, que causa tivera? Respondi-lhe, que fora procedido [devido] ao estrondo dos atabaques, pandeiros, canzás, botijas e castanhetas; com tão horrível alarido, que se me representou a confusão do Inferno. E para mim me disse o morador, não há cousa mais sonora, para dormir com sossego. A isto lhe disse eu: Com razão dizem os naturais que vivem junto do Nilo, que não sentem o estrondoso sussurro de suas correntes; e pelo contrário os que vão de fora não podem entender, ainda quando mais alto gritam. Senhor (me disse o morador), se eu soubera que havieis de ter esse desvelo, mandaria que esta noite não tocassem os pretos seus Calundús.”
E, perguntando o viajante do que se tratava, responde o anfitrião:
“São uns folguedos, ou adivinhações (me disse o morador) que dizem estes pretos que costumam fazer nas suas terras, e quando se acham juntos, também usam deles cá, para saberem várias cousas; como as doenças de que procedem; e para adivinharem algumas cousas perdidas; e também para terem ventura em suas caçadas, e lavouras; e para outras cousas”
Obs: É interessante notar que, após esta explicação, Nuno Pereira não somente repreende o proprietário, mas manda reunir os negros, doutrina-os contra a idolatria durante uma longa pregação, fazendo com que brancos e negros o escutem ajoelhados e rezem um ato de contrição. Feito isto, acende-se uma fogueira no meio do terreiro, onde são queimados todos os instrumentos num verdadeiro auto-de-fé contra o batuque.
Fonte: TINHORÃO,J.R.Os sons dos negros no Brasil (cantos, danças, folguedos: origens). São Paulo:Art Editora, 1988.pp.36-8.