MIRE E VEJA
PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA (1931), Salvador Dalí (1904-1989)
24 x 33 cm, Museum of Modern Art, New York
“O que existe nos quadros de Dalí que dá a eles uma força irresistível e que os torna tão pessoais, tão seus? Em parte, naturalmente, é a qualidade do tema sempre bizarro e fantástico. Mas muito mais importante é a alta originalidade de Dalí, difícil de definir e desconcertante; uma mistura de realismo límpido, insistente, quase palpável e de um clima de irrealidade, impossibilidade, muitas vezes de pesadelo que evoca algo de que somos conscientes, mas que não compreendemos completamente ou talvez preferíamos não compreender.”
T. Marshall Rousseau
Em um penhasco diante do mar, ao entardecer, quatro relógios parecem derreter depois de um dia de muito sol. Ao fundo, do lado direito, a paisagem rochosa de Port Lligat, litoral da Catalunha, onde Dalí costumava passar o verão pintando. É uma paisagem de caráter onírico.
Nenhum dos quatro relógios marca a mesma hora, o que faz com que eles tenham perdido sua função de marcar e regrar o tempo. Um deles, mais ao fundo, está pendurado em um frágil galho de uma oliveira morta e parece que poderá cair a qualquer momento. Abaixo dele, à direita, um relógio em tudo semelhante repousa no dorso de uma criatura. Para um crítico, trata-se da Medusa, ser mitológico cujo olhar transformava em pedra quem a mirasse. Para outro, trata-se do próprio Dalí.
Dois outros relógios estão sobre uma espécie de pedestal e são um pouco diferentes dos dois primeiros. O maior tem as bordas douradas, como que captando os últimos raios solares. Pousado nele temos uma mosca, inseto que era valorizado por Dalí como símbolo da reflexão, como companheiras do pensamento: “Elas são as musas do Mediterrâneo. Traziam inspiração aos filósofos gregos, que passavam momentos perdidos, estendidos ao solo, cobertos de moscas.” Já o último relógio, menor e avermelhado, está totalmente tomado por formigas. Na iconografia de Dalí, elas eram ligadas à Morte.
O curioso deste quadro é que todos os elementos nele presentes já haviam sido utilizados por Dalí em outros quadros, mas agora ele os reagrupa de forma mais simples e clara, acabando por realizar uma obra que se transformará em um ícone da escola surrealista.
Como se explica o título? Por uma contraposição. De um lado, a vida cotidiana com seus tempos desencontrados, instável, perigosa e até desequilibrada. Do outro, a paisagem rochosa imutável, segura, representando a memória do vivido, que persiste e não pode mais ser arrancada de nós. Notem que os relógios estão numa área que está quase na sombra enquanto a montanha brilha ao sol.
Nascido em uma família abastada da Catalunha, aos 17 anos Salvador Dalí foi para Madri estudar numa academia de Belas Artes. Na residência estudantil, que funcionava como uma espécie de centro cultural, ficou amigo de Buñuel e de Garcia Lorca. Com 21 faz sua primeira exposição individual, na Catalunha. No ano seguinte, vai a Paris encontrar-se com Picasso. Em 1929 faz colabora com Buñuel no curta surrealista Um cão andaluz, mesmo ano em que consegue uma mostra individual em Paris. Daí para frente a vida de Dalí foi uma sequência de sucessos e também de polêmicas. Tornou-se um dos mais famosos pintores do século XX: com 34 a revista Time lhe dedicou uma capa. Sempre foi provocador, surpreendente, se auto-promovia como ninguém e era absolutamente egocêntrico. Quem melhor o resumiu foi Carlos Rojas:
“Salvador Dalí Domènech era um artista extraordinário e um ser humano excepcional que, nascido duas vezes, se definiu divino. Modelava a sociedade ocidental para adaptá-la aos próprios sonhos, escandalizava ou divertia o mundo com as suas zombarias e, mesmo assim, vivia em escura e perpétua agonia, em um castelo em Ampurdán, depois de ter sido um anarquista, um comunista, um cubista, um surrealista, um acadêmico, um místico, um monárquico e Marquês de Púbol.”