CHALHOUB – Estácio como garantidor e continuador de uma hegemonia política e cultural
“ao constatar a insatisfação da tia com o reconhecimento de Helena, Estácio conclui porém que ‘uma vez que o seu pai assim o ordenava […] ele a aceitava tal qual, sem pesar nem reserva’ (H, cap. II); em seguida, ao responder às ponderações do dr. Camargo de que o conselheiro teria sido mais prático e justo caso tivesse se limitado a deixar um legado a Helena, o rapagão do Andaraí dispara que ‘a estrita justiça é a vontade de meu pai’ (H, cap. II); cada vez mais incisivo, Estácio pinga ponto final à discussão: ‘Não quero saber […] se há excesso na disposição testamentáriaa de meu pai. Se o há, é legítimo’ (H, cap. II). Diante da firmeza inquebrantável do mancebo, só resta ao réptil um recuo estratégico: Camargo admite serem inúteis os seus esforços e afirma que o melhor era cumprir a resolução do finado, ‘lealmente, sem hesitação nem pesar’ (H, cap. II); pouco adiante, em conversa com d. Úrsula, o doutor observa que Estácio aceitava os fatos ‘filosoficamente e até com satisfação’, e concorda ‘que mais nada há do que cumprir textualmente a
23: vontade do conselheiro (H, cap. II. A satisfação de Estácio, que o doutor dizia não compreender, é facilmente explicável: ele conseguira manter o controle dos acontecimentos, entrava no pleno exercício de suas prerrogativas senhoriais, e evitava o risco de uma divisão definitiva do patrimônio numa partilha não amigável. Afinal, a vontade do conselheiro expressa em testamento tinha força legal, e Helena adquiria direitos que, caso usurpados, poderiam originar uma longa, incerta e desgastante batalha judicial. Estácio era, efetivamente, o hábil depositário de uma tradição, um chefe de família/senhor/proprietário, garantidor e continuador de toda uma hegemonia política e cultural.”
Sidney Chalhoub. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 22-23.