“Note-se que, apesar de mudanças drásticas de direção iniciadas em 1969, aprofundadas em 1974 e mais ainda em 1978, os líderes do que se autodenominou a ‘Nova História’ – J. Le Goff, E. Le Roy Ladurie, F. Furet, M. Ferro etc. – pretendem apresentar-se como continuadores de Bloch, Febvre, Simiand e sobretudo Braudel, ao ponto que se pôde falar, a respeito, de um verdadeiro ‘culto dos antepassados’. É evidente, entretanto, a queda do espírito crítico e combativo que animava, contra a História tradicional, os fundadores e o próprio Braudel: a ‘Nova História’ comporta-se como o establishment que é, dominando na França, no relativo aos estudos históricos, os mecanismos do poder universitário, acadêmico e até ao nível dos meios de comunicação de massas.
Em certos aspectos, ocorreu uma radicalização tão extrema de tendências já presentes no grupo dos Annales antes de 1969, que a continuidade tornou-se mais aparente do que real. É assim que, na ‘Nova História’, a recusa de qualquer sistema teórico em favor de um cientificismo tecnicista chega ao absurdo de se aceitar uma total indigência teórica. (…) É óbvio que a recusa da teoria não significa ausência real de um nível teórico. Por exemplo, implicitamente, na ‘Nova História’ as ‘mentalidades’ se transformam às vezes em verdadeiras infra-estruturas determinantes do social; em outros casos, sem se chegar a tanto, proclama-se a sua auto-suficiência, a sua não-dependência para com as determinações da estrutura social global (o que ajuda a explicar o êxito, entre os historiadores franceses, das epistemes desencarnadas de Foucault). Outra opção no fundo teórica é a obsessão com a Antropologia, cujo sentido é justificar e dar apoio a uma preferência declarada por temáticas como o inconsciente coletivo, a festa, o ritual, a sensibilidade e a sociabilidade vividas, o quotidiano etc., em detrimento de outras: classes sociais, revoluções, economia etc. As descontinuidades sociais reais – ao contrário das descontinuidades dos discursos, representações, epistemes, que são valorizadas – são desprezadas, tendendo-se a uma espécie de ‘história imóvel’ que se apresenta em ciclos muito longos (a França rural de Le Roy Ladurie de 1300 a 1720 é um bom exemplo), uma ‘longuíssima duração’ que conduz à noção de uma ausência de mudanças, ou então de uma lentíssima evolução sem cortes qualitativos precisos. Na verdade, a construção do objeto de estudo pelos ‘novos historiadores’ se faz mediante a destruição de objetos maiores e ilustres – como, por exemplo, a Revolução Francesa.”
CARDOSO,Ciro F.S.[1988] “Uma ‘Nova História’ ?” In: Ensaios Racionalistas. Rio de Janeiro:Campus. pp. 99-100.