/ESTUDOS PROUSTIANOS – Outros temas que aparecem além de tempo e espaço

ESTUDOS PROUSTIANOS – Outros temas que aparecem além de tempo e espaço

“Além das palavras temps e retour que simbolizam o tema central do romance, outros temas são evocados pela repetição de palavras, sons e sílabas que os conotam, como os que se seguem:”

“1) Vida: a palavra vie não consta do texto estudado e só é indicada por seu sinônimo existence. Mas a frequência dos sons [v] e [i], que a compõem, suscitam no subconsciente do leitor a sua presença”

(…)

“2) Morte: a idéia da morte mal aflora neste segmento que, embora mostre a preocupação do narrador com o tempo,

126: enfatiza a vitória sobre ele e sobre a própria morte. Seu autor sabe que viverá para sempre por meio do livro que começa a escrever Mas a dicotomia morte/vida corresponde ao conceito de Proust sobre o tempo e a arte e não poderia estar ausente desta visão global do romance. O sono é o símbolo da morte e na expressão ‘Je m’endors’, a série fônica ‘or’ introduz no texto a sua imagem. Também essa série repete-se em cadeia, nos vocábulos encore, dorment, quatuor, encore, forêt, encore.

Em contraponto à dicotomia morte/vida, temos a antítese sono/vigília:

3) Sono: as expressões indicativas do sono no texto, ‘je me suis couché’, ‘mes yeux se fermaient’, ‘je m’endors’, ‘chercher le sommeil’, correspondem simbolicamente a ‘ma bougie étainte’, ‘souffler ma lumière’, ‘le bougeoir n’était plus allumé’, ‘obscurité’, ‘obscure’, ‘nuit’.

“4) Vigília: ‘m’éveillait’, ‘mon réveil’, ‘je recouvrais la vue’ correspondem simbolicamente a ‘bougie’, ‘lumière’, ‘bougeoir’, ‘lampe’ tomados independentemente dos elementos que lhes modificam o sentido nos sintagmas.

O sintagma ‘obscurité douce et reposante’ parece formar um oxímoro, pois o narrador refere-se, em vários trechos do romance, à escuridão de uma maneira negativa assim como à noite, como podemos ver na segunda sequência deste segmento quando, falando de uma maneira impessoal, mas aludindo à sua própria vida, diz: ‘/…/ il faudra rester toute la nuit à souffrir sans remède’.

Mas o final da primeira sequência corresponde ao final do romance, quando o narrador, tendo encontrado o segredo para dominar o tempo, sabe que a morte, para a vida terrena, significa a vida eterna pela arte e, assim, a escuridão é doce e calmante, porque, no silêncio

127: da noite, a ideia da volta destrói todos os seus poderes negativos e os transforma em adjuvantes valiosos. A escuridão é propícia à criação: ‘j’étais bien étonné de trouver autor de moi une obscurité douce et reposante pour mes yeux, mas peut-être plus encore pour mon esprit à qui elle aparissait comme une chose sans cause, incompréhensible, comme une chose vraiment obscure.’; a palavra coisa, repetida, sugere a incapacidade de explicação do narrador que prefere sugerir o estado em que se encontra por meio da repetição (em chose, chose, cause a mesma sílaba tônica reforça a mesma ideia enfatizada por obscurité, obscure) O fato da ideia da escuridão ser repetida duas vezes parece indicar que ela é procurada como benéfica.

À vigília prende-se o pensamento, que se opõe à letargia do sono. Podemos distinguir, neste segmento, duas atitudes opostas: a contemplação e a ação. A partir de ‘Puis elles commençait à me devenir inintelligibles, comme après la métempsycose, les pensées d’une existence antérieure’, há uma revolução nessa atitude que, de passiva, torna-se ativa. As conotações de passividade e ação são fornecidas pelas formas sintáticas, porém indicam-se, também, no plano semântico.

5) Contemplação: a oposição contemplação x ação corresponde às duas atitudes do narrador, que mostraremos pela sintaxe: a da vida mundana, estéril e a da vida para a arte, fecunda e duradoura.

HARVEY, Vera. Marcel Proust: realidade e criação. São Paulo: Perspectiva, 2007. pp. 125-27.