/PARA LER PROUST 6 – Marcel Proust explica Em busca do tempo perdido

PARA LER PROUST 6 – Marcel Proust explica Em busca do tempo perdido

PARA LER PROUST 6 – Marcel Proust explica Em busca do tempo perdido

* Entrevista concedida por Marcel Proust ao jornal Le Temps no dia 14 de novembro de 1913, antevéspera da publicação de No caminho de Swann.

1. Da unidade de Em busca do tempo perdido:

“O que publico é apenas um volume, No caminho de Swann, de um romance que terá como título geral Em busca do tempo perdido. Gostaria de publicar tudo junto; mas não se editam mais obras em vários volumes. Sou como alguém que tem uma tapeçaria grande demais para os apartamentos atuais e que por isso foi obrigado a cortá-la.”

2. Da importância do tempo na elaboração do romance:

“Pois bem, para mim, o momento não é somente da psicologia plana, mas da psicologia do tempo. Essa substância do tempo, eu procurei isolá-la, mas para isso havia uma necessidade que a experiência pudesse durar. Espero que no final de meu livro, tal fato social pequeno e sem importância, tal casamento entre duas pessoas que no primeiro volume pertencem a mundos bastantes diferentes [Swann e Odette de Crécy], indicará que o tempo passou e assumirá a beleza de alguns chumbos patinados de Versailles, que o tempo envolveu de um revestimento esmeralda.

Então, como uma cidade que, enquanto o trem segue seu caminho enviesado, aparece-nos tanto a nossa direita quanto nossa esquerda, os diversos aspectos que um mesmo personagem terá assumido aos olhos de um outro, a ponto de ser personagens sucessivos e diferentes, darão – mas por isto somente – a sensação do tempo decorrido. Tais personagens revelar-se-ão mais tarde diferentes daquilo que são neste volume atual, diferente daquilo que se acreditará ser, da mesma forma que acontece com muita frequência na vida, de resto.

E não são somente os mesmos personagens que reaparecerão ao longo desta obra sob aspectos diversos, como em certos ciclos de Balzac, mas em um mesmo personagem – nos diz o sr. Proust – certas impressões profundas, quase que inconscientes.”

3. Do romance como uma espécie de “romance do inconsciente”:

“Quanto a isso, continua o sr. Proust, meu livro será talvez como um ensaio de uma sequência de ‘Romances do Inconsciente’: não teria vergonha nenhuma de dizer de ‘romances bergsonianos’, se acreditasse nisso, pois em todas as épocas ocorre de a literatura tentar se ligar – naturalmente de forma tardia – à filosofia predominante. Mas (dizendo isso) não seria exato, pois minha obra está dominada pela distinção entre a memória voluntária e a involuntária, distinção que não somente não aparece na filosofia de Bergson, mas é até mesmo contrária a ela.”

4. Da distinção entre memória voluntária e memória involuntária:

Como o senhor estabelece esta distinção?

– Para mim, a memória voluntária, que é sobretudo uma memória da inteligência e dos olhos, não nos dá, do passado, mais do que faces sem realidade; mas se um cheiro, um sabor encontrados em algumas circunstâncias totalmente diferentes, despertam em nós, à revelia, o passado, passamos a sentir o quanto este passado era diferente daquilo que acreditávamos lembrar, e que nossa memória voluntária pintava, como os maus pintores, com cores sem realidade.”

5. Dá o exemplo da madeleine e afirma que a personagem central não é ele:

“Já neste primeiro volume, vocês verão o personagem que narra, que diz: Eu (que não sou eu) encontrar de repente, jardins, seres esquecidos, no gosto de um gole de chá onde ele mergulhou um pedaço de madeleine; é provável que ele se lembrasse deles, mas sem suas cores, sem seu charme; pude fazê-lo dizer como este pequeno jogo japonês onde se mergulham pedacinhos de papel que, tão logo imersos na tijela, se esticam, ganham contorno, tornam-se flores, personagens, todas as flores do seu jardim e as ninféias de Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas casinhas e a igreja, e toda Combray e arredores, tudo isso que assume forma e solidez saiu, cidade e jardins, de sua xícara de chá.”

6. O artista deveria usar as memórias involuntárias como matéria-prima:

“Vejam vocês, acredito que é apenas às lembranças involuntárias que o artista deveria requisitar a matéria-prima de sua obra. Antes de mais nada, precisamente porque elas são involuntárias, que se formam por si próprias, atraídas pela semelhança de um minuto idêntico, elas são as únicas a possuir uma marca de autenticidade. Depois, porque nos trazem de volta as coisas numa dose exata de memória e esquecimento e, enfim, uma vez que nos fazem experimentar a mesma sensação em uma circunstância completamente diferente, elas a liberam de toda a contingência, e nos dão dela a essência extra-temporal, aquela que é exatamente o conteúdo do belo estilo, esta verdade geral e necessária que somente a beleza do estilo traduz.”

7. Do seu livro como uma obra de sensibilidade, que o autor encontrou no fundo dele mesmo, como um motivo musical:

“Se me permitem divagar sobre o meu livro, continua o sr. Marcel Proust, é que não se trata em nenhum grau de uma obra de raciocínio, é que os seus mais ínfimos elementos me foram fornecidos pela minha sensibilidade, que os encontrei no fundo de mim mesmo, sem os compreender, tendo tanto trabalho em convertê-los em algo inteligível, como se eles fossem tão estranhos ao mundo da inteligência, como dizer? como um motivo musical. Parece-me que vocês podem estar pensando que se trata de meras sutilezas. Oh, não! Eu lhes asseguro: ao contrário, de realidades. O que não tivemos de esclarecer nós mesmos, o que estava claro antes de nós (por exemplo, ideias lógicas) tudo isso não é realmente nosso, não sabemos nem mesmo se é real. É apenas uma parte do ‘possível’ que elegemos arbitrariamente. Aliás, vocês sabem, isso se vê imediatamente no estilo.”

8. Da importância do estilo: uma maneira do autor dar a conhecer um universo a mais:

“O estilo não é de maneira alguma um enfeite como crêem certas pessoas, não é sequer uma questão de técnica, é – como a cor para os pintores – uma qualidade da visão, a revelação do universo particular que cada um de nós vê, e que não vêem os outros. O prazer que nos dá um artista é de nos fazer conhecer um universo a mais.”

Fonte: PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Rio de Janeiro: Globo, 2006. “Apêndice – uma entrevista com Marcel Proust”, pp. 510-512