Uma das características mais marcantes de Em busca do tempo perdido é a sua circularidade: o romance, ao final, volta ao seu ponto de partida, aos temas e questões que estavam presentes desde o início. Sendo assim, mesmo que de forma muito simplificada, é bom conhecer o caminho percorrido pelo romance como um todo. Para termos ideia de onde estamos e aonde vamos. Neste intuito de ajudar, lá vai não um, mas dois resumos do livro, feitos por especialistas:
SUMÁRIO dos sete volumes de Em busca do tempo perdido
Obs: O nome das partes que compõem os 7 volumes aparece entre colchetes e em negrito.
1. No caminho de Swann: [Combray] o sabor de uma madeleine mergulhada no chá faz o herói relembrar suas visitas a Combray durante a infância; as caminhadas no campo da sua família davam-se por dois caminhos; seus relacionamentos com vários vizinhos, incluindo Charles Swann; a fascinação do herói com a aristocrática Guermantes. A segunda parte [Um amor de Swann] conta a história do desafortunado caso de amor entre a cortesã Odette de Crécy no salão da Sra. Verdurin. A parte final [Nomes de terras: o nome] descreve a amizade entre o herói e Gilberte, a filha de Swann e Odette, que agora é a Sra. Swann.
2. À sombra das raparigas em flor: a primeira parte [Em torno da sra. Swann] descreve a adolescência do herói em duas casas de classe média alta: a dos seus parentes e a dos Swann. A segunda parte [ Nomes de terras: a terra] ocorre em Balbec (cidade imaginária ma non troppo, baseada em Cabourg e Trouville), na costa da Normandia, onde ele se hospeda no Grand Hotel com sua avó. A parte relativa a Paris ironiza as pretensões da alta burguesia, enquanto a parte relativa a Balbec contém descrições igualmente divertidas acerca das afetações da burguesia provincial. Recuperado das sua paixão por Gilberte, o herói agora se apaixona por toda menina que vê, e elas são muitas. Ele se torna amigo de Robert de Saint-Loup e de seu tio, o Barão de Charlus.
3. O caminho de Guermantes: a família do herói muda-se para uma casa vizinha da residência do Duque e da Duquesa de Guermantes, e o herói fica obcecado em conhecê-los. Ele passa semanas numa academia militar com o sobrinho deles, Robert de Saint-Loup, que ele havia encontrado em Balbec. Por fim, Marcel é aceito no círculo mágico de Guermantes e do Faubourg Saint-Germain.
4. Sodoma e Gomorra: continuando o seu sucesso social no Faubourg Saint-Germain, o herói descobre o secreto mundo homossexual da Guermantes do Barão de Charlus. Na sua segunda visita a Balbec ele se torna parte do “pequeno clã” dos Verdurin, reacende seu caso amoroso com Albertina e descobre o mundo do lesbianismo.
5. A prisioneira: Marcel traz Albertina para viver com ele em Paris onde ele a trata mais ou menos como uma prisioneira. Obsessivamente ciumento, ele descarta seu círculo social e em vez disso tenta agradá-la ou abandoná-la. Acima de tudo, ele se tortura pensando sobre, perguntando sobre e neuroticamente tentando evitar que ela se entregue a seus gostos lésbicos. Ao mesmo tempo, o comportamento público de Charlus se torna cada vez mais ultrajante até que ele é publicamente desgraçado pelos agora influentes Verdurin. Albertine vai embora sem avisar.
6. A fugitiva: o herói se recupera do desaparecimento e da subsequente morte de Albertine. Ele redescobre Gilberte, que, com sua mãe Odette, agora é aceita pela sociedade afluente, enquanto a memória de seu pai, Swann, é escondida e destruída. O herói visita Veneza com sua mãe e fica sabendo, por carta, do casamento de Saint-Loup com Gilberte. Depois do seu casamento, Saint-Loup torna-se um ativo e promíscuo homossexual.
7. O tempo redescoberto: visitando Gilberte na casa desta em Combray, Marcel descobre que o caminho de Swann e o caminho de Guermantes não são irreconciliáveis. A guerra afeta a cada um de uma maneira diferente. Robert morre como um herói no front; Charlus percorre incessantemente os bordéis masculinos da Paris em guerra. Marcel, ainda um escritor sem sucesso, retorna a Paris depois da guerra e é convidado a uma festa dada à tarde na casa da Princesa de Guermantes. Todas as personagens do livro, ao menos todos ainda vivos, estão na festa, mas tudo está mudado. Mesmo a nova Princesa de Guermantes acaba por ser a antiga Sra. Verdurin, agora viúva. O herói compreende que a memória só pode ser recapturada e o Tempo derrotado através da arte. Sentindo-se feliz, no meio da festa, ele entende que sua vocação é escrever um grande romance e desta forma fazer o passado voltar à vida.
Fonte: ALEXANDER,Patrick. Marcel Proust’s Search for Lost Time. New York: Vintage Books, 2007
Marcelo Backes resume assim os sete volumes:
A construção do livro é bem pensada, resumo de cada livro:
Mas a construção é sólida e bem pensada. E não é por acaso que o primeiro livro, No caminho de Swann, aborda mais detidamente os temas da infância, da recordação, da capacidade de se impressionar com as coisas do mundo, de antecipar os fatos e contemplar o mundo em flashbacks.
No segundo livro, À sombra das raparigas em flor, o caráter prometedor e comprometedor do amor começam a marcar um homem na passagem da infância para a vida adulta e o narrador se concentra nas alegrias concedidas pela viagem, pela arte e pelo poder da imaginação.
Em O caminho de Guermantes, terceiro livro, é estabelecido de uma maneira mais conclusiva o arcabouço por assim dizer societário da obra, quando o narrador trata mais detalhadamente da vida da nobreza, do embate entre essência e aparência, da política, das diferentes formas do esnobismo, e de como se chega ao e depois se mantém o poder social.
No quarto livro, Sodoma e Gomorra, é complementada a questão do amor – muito mais valioso do que a amizade – e o narrador trata mais diretamente, até ensaisticamente no princípio do livro, quando faz uma grande descoberta, do homossexualismo e de seus efeitos sobre indivíduo e sociedade; a moral dupla, as mentiras e os mistérios da sociedade são abordados, deixando claro, entre outras coisas, que “lamentavelmente tanto na sociedade quanto no mundo da política as vítimas são tão covardes que não se consegue considerar os algozes maus por muito tempo.”
E se um maior dinamismo é visível no quinto livro, A prisioneira – um dos maiores documentos universais acerca do ciúme, junto com o Otelo de Shakespeare e Dom Casmurro de Machado de Assis –
ele continua em A fugitiva, o sexto e penúltimo livro, um degrau antes do ápice, que trata da separação, da morte e do luto; do conhecimento tardio da verdade e do processo de cura que envolve a morte dos eus que vamos deixando para trás depois de nossas grandes perdas.
No sétimo e último livro, O tempo reencontrado, o romance ata e desata os nós propostos desde o princípio, mostrando uma estrutura perfeitamente circular. Nele tudo se resolve, tudo se arredonda e se amarra numa torrente de soluções. O tempo reencontrado, inclusive em seu intenso debate artístico sobre si mesmo – é um grande tratado sobre a arte, que proporciona, inclusive, sublimes olhadelas à oficina literária do autor –, no qual Proust dá todas as respostas para as perguntas que foram feitas nos seis livros anteriores. O tempo reencontrado dá a prova final, mais uma vez, de que para reencontrar algo é preciso perdê-lo antes e mostra um autor que na verdade quis publicar todos seus livros no único volume de um romance, e lamentava ter um tapete grande demais para os exíguos apartamentos modernos, o que o obrigou a cortá-lo em sete partes. A angústia do narrador diante do pouco tempo que lhe resta pra contar devido à enfermidade que o acossa encontra eco na mais perfeita das metáforas para a arte de narrar. Só a morte, esse rei Xariar ainda mais inclemente, pode interromper a busca de quem assim como Xerazade precisa contar, e contar pra dar à vida um sentido que ele não teve enquanto foi vivida.
BACKES, Marcelo. “Proust ou de como a vida só faz sentido na arte”, artigo eletrônico: https://www.sul21.com.br/noticias/2013/03/proust-ou-de-como-a-vida-so-faz-sentido-na-arte/. Acesso em 7/3/2019