PEDRO E FLORA: UMA HISTÓRIA DE AMOR?
Capítulo 1: O BILHETE
Havia apenas um bilhete. Estranho, nunca a vira com uma caneta, o celular era uma extensão de seus dedos. Lá estava o papel em cima da mesa: “Não consegui contar a você. Vou mandar zap”. Oito palavras. Não conseguiu contar? Como assim não conseguiu contar? O que? Zap para mim? pensou. Dizia que Pedro era um homem da idade da pedra, se recusava a ter celular e evitava o computador. Jamais atendia o telefone e insistia em usar uma velha máquina de escrever. Flora brincava: quando a Remington quebrasse ele teria que invadir um museu para conseguir outra máquina.
O pensamento parou de voar e resolveu examinar a casa. A sala era uma cópia de si mesma. Afora o bilhete, nada de novo: a mesa de sólida madeira, quatro cadeiras, o espelho extravagante que ele tivera que aceitar, a mega tevê e o sofá onde viam filmes antigos em preto e branco. Entrou no quarto. Antes, várias fotos de montanhas do mundo todo coloriam as paredes, agora, o silêncio branco. Abriu o armário como se de lá fosse saltar uma cobra. Suas roupas estavam no lugar. Do outro lado a metade vazia estava tão oca quanto o seu coração. No banheiro, a escova de dentes jazia solitária no copo. Atrás da porta, nem sinal da camisola azul. Ainda bem. Não tinha esquecido de levar nenhum perfume ou creme. Mas o cheiro dela, que permanecera, tornava o ar irrespirável. Se apoio na parede de azulejos. Pensamentos explodiam.
O que fazer agora? Foi até a cozinha. Queria se afogar, mas na falta de um bom lago ou rio, um copo d’água ia bem. Não entendia. Estavam dando certo. Não lembrava de briga feia ou reclamação. Esqueceram o que era sexo, só faziam amor. Dois rios de prazer desaguando um no outro. Desde a primeira vez. Beijos apagavam tempo e espaço. O mundo renascia. Dois corpos, duas almas. Os olhares se perseguiam, o fio invisível. Depois Flora tirava uma sonequinha enquanto ele preparava o almoço, o peixe com batatas ao alho que ela adorava, um spaghetti com camarão e outras comidas.
Devia haver algo no quarto. Escondido no canto da mesa do computador, um pequeno pacote invadiu as retinas de Pedro. As mãos rasgaram com avidez o papel pardo…
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Capítulo 2: SETE
Se viu segurando o embrulho com mãos trêmulas, espelho da alma. Contemplou o objeto como um achado arqueológico. Era um retângulo de metal fino, com fundo branco. Tinha buracos nas bordas e botões. Um celular. Aos poucos seu cérebro voltou e lembrou: zap. O aparelho era a esperança de falar com Flora e esclarecer a loucura. Só que ele nunca mexera em um e agora não teria cabeça. Conseguiu finalmente sentir alguma coisa além de espanto e tristeza: fome. Seu apetite era um relógio implacável. Flora tinha aprendido que ele nunca ficava mal humorado, era falta de comida. Quando viajavam ela levava uma mochila com sanduíches, frutas, castanhas de caju e chocolate. Na geladeira havia sobras do jantar. Fora a última refeição dos dois: salmão e salada. Ela quase nunca cozinhava. Mas na noite anterior tinha insistido. Comer o salmão seria devorar a sua carne. Nas prateleiras, lembranças. O doce de leite que ela espalhava em generosos pedaços de queijo minas. O suco de uva orgânico que Flora bebia. A bala preferida desde a infância e que ele comprava com regularidade.
Dor. Dor. Dor. Como fazer aquilo parar? Pequenas crueldades se espalhavam por toda a casa. A janela de onde a via dobrar a esquina indo para o trabalho, não sem antes voltar o olhar uma última vez. No chão, via os pezinhos de leite passeando. A cama era uma tela para os filmes da memória. Ao ouvir o elevador parando no andar, ficava esperando a porta se abrir: “Cheguei, amorzinho”. Tinha vontade de gritar Flora! até que um deus ou demônio o escutasse. Tentou se acalmar. Usou as técnicas de respiração que ela lhe ensinara. Uma de muitas ironias.
Afinal, qual era o terrível segredo que ela não fora capaz de contar? Lembrou-se do celular. Como é que se liga esse troço. Começou a apertar todos os botões. Nada. Inspirou fundo. Agora um botão de cada vez, demorando um pouco. A tela opaca começou a brilhar. O nome do fabricante. Depois uma espécie de quadrado verde no interior do qual havia um daqueles balõezinhos de quadrinhos e um telefone. Clicou em cima. Em preto apareceu um número: 7. Sete? Sete? repetiu para si mesmo.
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Capítulo 3: RADINHO
Teve vontade de quebrar o celular e sua estúpida mensagem. Sete o que? Sete anões, sete dias da semana, sete anos de azar, sete pragas do Egito, uma brincadeira de mau gosto. Era algo relacionado a eles dois? O sétimo mês? Nada, tinham se conhecido em março e não fora no dia sete. Quantas vezes ele a beijara onze vezes para dar sorte, começando nos pés… Sem falar que todo dia onze comemoravam, iam a um restaurante ou faziam algo especial. Se caía em um fim de semana conheciam uma nova trilha ou viajavam para uma cidade pequena, Flora amava.
Viviam repassando o dia, a hora, o momento e a situação em que se conheceram. Em um lugar absurdo. Ou haveria algo mais improvável do que terem se encontrado em um jogo do Botafogo em Volta Redonda? Chovia. E o pior é que o Fogão começou perdendo. Pedro tinha ido com seu amigo do peito e fiel escudeiro de aventuras alvinegras, Mauricio. Quando se posicionaram na arquibancada, notou a moça de formas arredondadas, pele alva e lindos cabelos pretos cacheados. Olhos negros, acesos. Os pés gordinhos nus na sandália de couro. E como xingava a danada, brandindo seu rádio de pilha feito um tacape, distribuindo impropérios para o time todo, do goleiro ao ponta-esquerda. Também, pudera, perder para o Voltaço afastava o Fogão da semifinal. O salvador gol de empate veio ainda no primeiro tempo. Pedro dizia que fora o gol mais importante da vida dele, bendito Igor Rabello.
Nessa hora, tomada pela euforia, Flora acabou desferindo um potente golpe de radinho na cabeça do moço da frente. O destino se manifesta de forma desajeitada. Depois foi aquilo: mil desculpas, você se machucou, caramba, sou uma bruta mesmo. Cometeu o erro de pegar nas mãos dele. Ali as placas tectônicas da paixão começaram a se mover com força. Mauricio saiu de fininho para buscar uma cerveja e deixar os dois sozinhos com as nove mil duzentas e trinta e sete pessoas presentes no Raulino de Oliveira. E cá estava ele, em uma casa mais vazia do que um estádio sem jogo. Por falar no número, tinha o peito rasgado por sete punhais de tristeza. E o deserto de uma noite sem amor pela frente.
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Capítulo 4: TIÊ SANGUE
Passou a noite abraçado ao aparelho. Virava de lado, como se houvesse onde colocar o corpo ou a alma. Era uma névoa de dor. Levantou, tentou ler, não conseguiu. Ele que adormecia feito uma pedra. Em aproximadamente trinta e sete segundos, dizia ela, rindo. Flora desistira de conversar na hora de dormir, o único jeito de mantê-lo acordado não era conversando. Era deixar os corpos falarem.
Mas quando a manhã se aproximava o cansaço o derrubou para dentro de um sonho. Era um dia nublado. O sol nascia preguiçoso. Estavam diante de um portão de metal. Um parque. Fechado àquela hora. Se entreolharam, cúmplices. Ele uniu as mãos para ajudá-la a saltar. Para ele, alto como era, foi fácil. De mãos dadas, seguiram por um caminho todo aberto na pedra. O mar à direita, as ondas quebravam com força, explodindo em nuvens de espuma branca. A mão dela, encaixada na dele, estava fria. O olhar distante de Flora não reparou no Tiê Sangue que veio colorir a árvore. O canto curto do passarinho era uma mensagem que ele não conseguiu decifrar. Olhou para ela. Naquela luz ficava ainda mais bonita. Mas havia algo de errado. Ela não se voltava para ele, seguia em frente, determinada. Pensou em puxar assunto mas sentiu que ela desejava o silêncio. Continuaram caminhando. Ao final havia uma grande rocha e depois dela uma curva para a direita que não se via onde acabava. Cutelo cortando o pescoço de um animal, ela desprendeu sua mão, passou correndo pela pedra e dobrou a curva. Depois de segundos de espanto, correu atrás de Flora. Tentou gritar o nome dela, mas da sua garganta só saiu o canto contido do Tiê Sangue. Após a pedra havia um abismo que despencava no mar azul. Ainda chegou a tempo de ver o corpo de Flora flutuando no ar …
Afogado que consegue vir à tona, despertou. Tremia. Ao invés de respirar, chorava. Arremessou o celular na parede. Gritou feito um homem pré-histórico. Um tigre de dente-de-sabre dilacerava sua pele. Eram cinco e meia da manhã. Seria um dia de calor abafado, úmido. Ia explodir. Precisava falar com alguém. Tomou o telefone fixo com mãos de vidro:
— Alô, Mauricio? Bola, preciso de ajuda…
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Capítulo 5: DOM QUIXOTE E SANCHO PANÇA
Bola era como Pedro chamava seu amigo Mauricio desde a sétima série. Os dois eram sem lugar no meio da turma de meninos ferozes. Pedro era alto e magro demais, Mauricio merecia o apelido. Ambos torciam para o Botafogo em meio a um mar de flamenguistas. Para Flora eram Dom Quixote e Sancho Pança. Com cara de sono, Bola veio voando socorrer o amigo.
— Cara, a Flora simplesmente desapareceu, deixou um bilhete e evaporou.
— Como é que é?
— Levou todas as coisas, até a escova de dentes.
— Vocês brigaram?
— Nunca houve tanto amor.
Ficaram os dois ali, bebendo silêncio. Bola foi na direção de Pedro com os braços abertos e apertou com força. Pedro mostrou o bilhete e o celular com o sete na tela. Bola pediu para dar uma olhada e explicou para Pedro que a pessoa que enviara a mensagem logo depois desligara o aparelho. Por isso Pedro não conseguira ligar para aquele número, coisa que ele fizera várias vezes. A opinião de Bola era de que Flora comprara um chip novo só para enviar esta mensagem e possivelmente outras. Pedro não entendia o motivo. Bola arriscou uma interpretação:
— Tem coisas que a gente simplesmente não consegue dizer, sobretudo para alguém que a gente gosta muito. Por medo de decepcionar, são coisas difíceis que a gente carrega feito um saco de pedras pontudas.
— Porra, Bola, isso é hora de fazer poesia?
— Olha só, Pedro, algo aconteceu e a gente não tem a menor ideia do que seja. Temos que usar a imaginação. Não é você que vive lendo romances policiais? Os detetives tentam entrar na mente dos criminosos, entender a razão dos atos que eles praticaram.
— Bola, sei que a Flora não fez nada de errado, eu dormia agarrado a essa mulher todas as noites.
— Quem disse que ela fez algo de errado? Pode ter sofrido maus tratos, abuso, algo que ela não consiga comentar com ninguém.
— E se ela simplesmente resolveu me largar?
— Pode ser, mas então qual o motivo dessa papagaiada toda de bilhete, celular com o número sete, coisa e tal?
— Realmente não faz sentido.
— Olha aí, o celular tá acendendo, deve ser outra mensagem.
Na tela, uma palavra: segredos.
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— Caramba, Bola, você estava certo, ela quer me contar sete segredos.
— Pedrão, você tem que andar com esse celular o tempo todo. Me empresta aqui, vou preparar o bicho: qualquer mensagem do número dela vai vibrar no teu bolso e até tocar uma música. Tem alguma preferência?
— Your song, na versão do Billy Paul.
— Vai ser romântico assim…
— Pô, cara, você que perguntou. Mas, Bola, que segredos são esses? O que você acha?
— Fica pensando nisso se quiser enlouquecer. Ela vai te dar as dicas, pode deixar, o objetivo dela está claro. Agora, segura firme. Não é só o futebol que é uma caixinha de surpresas.
Pedro decidiu ir ao trabalho de Flora. Ela trabalhava em uma ONG verde. A pesquisa da qual participava como bióloga buscava medir a redução da fauna do Cerrado mineiro na última década. Ela começou a trabalhar naquele projeto quando ainda era recém-formada. Era preciso ver a paixão nos olhos e na voz quando começava a falar no Cerrado como um ecossistema de dez milhões de anos, a savana mais biodiversa do mundo, com mais de trezentas mil espécies animais. Ele devia ter ouvido aquele discurso, com pequenas variações, dúzias de vezes. Adorava ver ela tomada de amor a falar de espécies ameaçadas como a arara-azul e o tamanduá-bandeira.
Foi bem recebido no escritório, já o conheciam das festas de fim de ano. Falou com Jimmy, o coordenador, um canadense. Este informou que ela tinha pedido uma licença por tempo indeterminado, sem dizer o motivo. A solicitação fora feita com antecedência, seis meses antes. Jimmy acrescentou que ficara muito surpreso, Flora trabalhava de forma incansável, ninguém conhecia o Cerrado mineiro tão bem. Pedro sabia bem disso. Morria de saudades quando ela pegava o carrinho velho, um Ford Ka vermelho, e passava um mês viajando pelo sertão de Minas. Mas não deixava de mandar fotos de rios, cachoeiras, animais e plantas. A conversa com Jimmy adicionara mais uma peça ao quebra-cabeças. Flora não partira de repente, em um impulso. Pensara e planejara tudo.
Não havia outro jeito? Por que ela não contara o que estava acontecendo? A cabeça rodopiava. Uma voz ressoava sem parar: Flora, Flora…
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Capítulo 7: FANTASMA
Passou uma semana. Pedro virou um fantasma. Era professor de Geografia em duas escolas. Não havia ninguém que amasse mais a cidade. A praia de Botafogo das regatas chics do início do século XX. O centro revirado de cabeça para baixo na Revolta da Vacina. As favelas retiradas a ferro e fogo da paisagem. Passava pelas ruas e ia remontando a história de cada pedaço do Rio. Com a fuga de Flora, a cidade se tornou um campo minado. O Jardim Botânico onde caminharam de mãos dadas em um silêncio que tudo dizia. O Largo do Machado e o seu Café Secreto. Os jogos do Botafogo no Nilton Santos e os abraços que o faziam esquecer que tinha sido gol. O pequeno cinema de Santa Teresa onde viram o primeiro filme, molhado com beijos. O Andaraí do Samba do Trabalhador, onde descobrira que a branquinha tinha samba no pé. O Arpoador onde iam bem cedo, para mergulhar em um canto de águas calmas. É adorado pelas pessoas mais velhas e chamado de Cocoon. É o nome de um filme em que há uma piscina mágica, rejuvenescedora.
Pedro também estava precisando de um milagre. A alma estava engasgada. Arrastava a si mesmo de compromisso em compromisso, como se viver fosse um trabalho forçado. A hora mais temida? O momento de tentar dormir, quando as dúvidas o torturavam. Ela gostava de outro homem? Nunca mais voltaria? O amor tinha sido uma mentira? Estava doente? Pedro era uma ilha de tristeza cercada de lembranças por todos os lados. Ela enrolada na toalha amarela com tanto prazer que dava até ciúme. A voz dela, a modulação leve, viva, que tornava interessante e prazerosa qualquer história que contasse. Ele se pegava a ouvir e olhar embevecido para ela contando de uma ida ao supermercado ou da dificuldade de arranjar vaga para estacionar. Tinha um jeito curioso de andar, não era das mulheres empertigadas feito pavões, estava mais para uma patinha charmosa. Não trocara a roupa de cama para sentir seu cheiro até esvanecer. A sua beleza também não derivava da perfeição das formas. Era algo que emanava dela feito a lava de um vulcão em atividade. Aos pés do qual ele agora estava, soterrado.
No seu bolso, uma esfinge com tela e botões.
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A principal função da memória é esquecer. Pedro lembraria de Flora até o último segundo. Mas ele precisava viver. Inventou ocupações. Arrumou a casa, fazendo de conta que poria tudo em ordem. Cozinhou e congelou refeições que esperava que fossem um dia divididas com ela. Fez poemas ruins. Em um deles dizia que um grande amor não acaba, mas vira dor. Em outro, perguntava onde ela tinha conseguido esconder o que haviam vivido. Só tinha coragem de mostrar para o Bola, que não dizia nada mas ficava com lágrimas nos olhos. Não parava de sonhar com Flora, dormindo e acordado. Ficava imaginando onde estava, o que fazia, se estava bem, com que roupa estava vestida, se sentia frio ou calor, se pensava nele. Se alguém tinha imaginado algo para enlouquecê-lo havia feito um bom trabalho. Voltou à academia. Não precisava emagrecer nem ficar forte, precisava suar e gastar o corpo para atordoar a alma destroçada. Por vezes, conseguia não pensar. Nos fins de semana, havia o Fogão, que ia mal, namorando a zona do rebaixamento. Mas ele e Bola estavam lá, torcendo, apoiando uma causa impossível. Sem o Bola, Pedro teria desmontado, não conseguiria prosseguir na busca por Flora.
Parecia ser mais um dia. Ao dormir, antes que Flora invadisse todos os espaços da sua imaginação ele repassava tudo que faria no dia seguinte. Tentava se tranquilizar com o fato de que teria uma jornada cheia de tarefas, que o ajudariam a continuar respirando. Ao acordar, já pulava da cama com o celular na mão, mas a tela fria apenas lhe repetia a velha mensagem: segredos. Enviara mil mensagens para o número, mas Mauricio lhe dissera que nenhuma delas chegara, havia só um v ao lado delas. O monstro, como ele chamava, continuava calado. Foi preparar seu café. Bola dizia que nem o Apocalipse seria capaz de tirar o apetite do amigo. À mesa, a miragem de Flora insistia em comer iogurte com granola enquanto ele devorava torradas com queijo minas. Foi aí que ouviu a abertura doce e as palavras sagradas na voz aveludada de Billy Paul:
It’s a little bit funny this feeling inside
I’m not one of those who can easily hide
No retângulo verde, finalmente, mais uma mensagem…
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Capítulo 9: MANUELA
No retângulo de metal estava o primeiro dos segredos, um nome de mulher: Manuela. Demorou alguns segundos até lembrar. Sabia quem era, mas não a conhecia, parecia que Flora guardava a amiga como um tesouro que não queria compartilhar. Manuela estava na casa dos cinquenta anos e havia sido psicanalista de Flora. Depois, acabaram ficando amigas. Era só o que ele sabia. Ela morava em Teresópolis, em um lugar lindo. De tempos em tempos, Flora subia a serra para conversar com ela. Pedro desistira de se convidar, a resposta era sempre a mesma:
— Amorzinho, tem coisas que só consigo falar com a Manuela.
Que coisas eram essas, ele se perguntava. Agora estava no caminho de descobrir, para o bem ou para o mal. Ligou para o Bola. Não sabia como o Bola conseguira vir tão rápido. Ou melhor, sabia: o amigo tinha uma poderosa Harley-Davidson azul e branca, metal niquelado, um animal selvagem em duas rodas. Pedro perdera a conta de quantas vezes fora visitar Mauricio no hospital: braço esquerdo, costelas, tornozelo direito, a lista de contusões parecia o departamento médico do Botafogo. Era arquiteto e Pedro alertava que poderia quebrar a mão e nunca mais desenhar. Bola respondia que agora era tudo por computador. Assim que saía, lá estava ele com seu indefectível capacete azul com o símbolo hippie do Paz e Amor em branco. O cara era apaixonado pela década de 60, sobretudo por Bob Dylan. Tinha recomendado a Pedro que escutasse Blood on the tracks. Segundo ele ninguém curtira uma fossa com tanta poesia quanto o bardo de nariz adunco. Pedro não conseguiu depois de ouvir If you see her, say hello, a história de um cara que é abandonado e não sabe onde ela está. As lágrimas aqueceram sua face. Eram salgadas.
Mas hoje era um novo dia. Ele não conseguia pensar. Não tinha endereço, telefone, e-mail, nem ao mesmo sabia o sobrenome da tal Manuela. Bola se abriu em um sorriso.
— Pedro, abre o computador. Vamos entrar no Face da Flora e procurar uma amiga chamada Manuela.
Havia três. Apenas uma morava em Teresópolis. Uma mulher com um sorriso bom de bochechas redondas.
— E agora?
— Agora é mandar uma mensagem para ela e esperar.
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Ela demorou dois dias para responder. Deu apenas o endereço. Era um sítio na paradisíaca estrada Friburgo-Teresópolis, em cada curva uma beleza. A paisagem o acalmou um pouco. Além de temer as possíveis revelações da amiga de Flora, Pedro morria de medo na garupa da Harley-Davidson. O Bola só gostava de andar rápido. Quem quisesse andar devagar que comprasse um velocípede, não uma Harley. De brincadeira, tinha providenciado um capacete branco com um coração bem vermelho para o seu carona. Sempre tinha chamado Pedro de “o último romântico”.
Enquanto o vento roçava em seu rosto, Pedro repassava a vida antes e depois de Flora. Ansiava e temia pela conversa com Manuela. Saíram da estrada e entraram em uma estradinha de terra castigada pela chuva. Feito o caminho acidentado que Pedro tinha percorrido até ali. Manuela estava sentada em uma varanda sombreada, lendo um livro. Caminhou até o portão. Era uma pessoa que abraça com o olhar. Mas o seu sorriso não era feito de alegria e sim de compaixão. Não teve dificuldade em identificar Pedro. Mauricio e ela se apresentaram.
Convidou-os a se sentarem na varanda de madeira cercada de verde. No canto, uma rede onde Pedro imaginou Flora deitada. Manuela apontou para um lago com árvores em volta. Estavam floridas em amarelo ou roxo, a cor preferida de Flora. Tinha uma grande pedra no meio do lago:
— Flora gostava de nadar nua. Dava braçadas, circundava a pedra, mas nunca subia.
Antes que ele a bombardeasse com perguntas, Manuela explicou:
— Sei porque vocês vieram aqui. Também não sei onde ela está, nem o que pretende com isso. Flora me pediu que te contasse tudo que sei sobre a vida dela, que deixasse de lado o segredo da relação analista-paciente. Mas você verá que sei muito pouco. A primeira coisa que posso te dizer é o que repetia todas as semanas: você é o amor da vida dela.
— Então, por que…
— Pedro, sou psicanalista há mais de vinte anos. A minha noção de humanidade é muito mais alargada do que eu poderia imaginar quando comecei. Todas as minhas certezas desapareceram. O que posso é te contar o que sei, ou melhor, o que ela me disse.
E começou…
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Capítulo 11: FEITIÇO
A voz de Manuela era cautelosa, exploradora desbravando terra nova, de olhos e ouvidos bem abertos. Se preocupava com os efeitos de suas palavras sobre Pedro. Ele iria conhecer uma Flora que não podia imaginar.
— A infância dela foi muito feliz. O pai era dono de um haras perto daqui, ainda é…
— Ela me disse que os pais haviam morrido…
— Você vai entender. Peço que não me interrompa, depois pode perguntar à vontade.
— Pode deixar.
— Um haras é uma enorme propriedade com um pequeno riacho e muitos cavalos. Flora desde cedo se apegou a esses animais. Os pais diziam que ela gostava mais deles do que de gente. Exagero. Era uma menina gentil, nas fotos que me mostrou está sempre sorrindo, olhos vivos, o rosto lindo de criança e os cachinhos que davam vontade de pegar. Começou a falar muito cedo e falava muito, sobretudo sozinha com suas bonecas. Qualquer coisa lhe servia de brinquedo, com um graveto inventava um mundo. Desde que foi apresentada a papel e lápis, nunca mais se separou. Criava as histórias na sua cabecinha fervente e antes de saber escrever, desenhava. Muitas vezes os cavalos estavam nelas. Fazia perguntas sem parar, que os pais não sabiam responder. O pai é um bom homem, muito querido por todos, mas não sabe nada além de criar cavalos. A mãe era uma pessoa simples. Cuidava o melhor que podia de Flora e do outro filho, Rogério, por quem tinha uma clara preferência. Preocupava-se com Flora, não entendia como podia haver tantas perguntas numa cabecinha de criança. Incomodava-se com aquilo. Rogério, mais velho, tinha ciúmes da atenção que a caçula despertava. Quem a conhecia, via que a menina era única.
— Ela nunca disse que tinha um irmão…
— Pedro, já te pedi … Tudo corria bem. Além de ler, desenhar e escrever suas histórias, Flora amava cavalgar. Sempre descalça e de vestido. Se recusava a colocar sapatos e calça. Vivia a passeando a cavalo com o pai pelas pequenas estradas de terra. Uma tarde, aos dezessete anos, montou sozinha em Feitiço, seu cavalo preferido, e demorou horas para voltar. Ao chegar, Flora tinha uma expressão indecifrável no rosto. O vestido sujo de lama. Os pés cobertos de sangue …
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Capítulo 12: PONTO CEGO
— Segundo o pai de Flora, ela desmontou do cavalo vinda de outro planeta. Não falava. Em passos pesados, caminhou até a casa, entrou e tomou um banho demorado. Se trancou no quarto, sem dizer nada. Os pais bateram à porta várias vezes. Ouviram-na tentar abafar um choro que vinha em ondas, uma ressaca de dor. Depois de duas horas, o silêncio.
Pedro fazia força para não chorar. Mais do que imaginar, sentia a dor de Flora.
— Só saiu do quarto na noite do outro dia. Tinha alguma fome. Mastigava lentamente, pensando a comida. Não levantava os olhos do prato. Continuava calada. Decidiram parar de indagar, deixá-la em paz com seus pesadelos. Ficou exatamente uma semana sem falar. Seu rosto, tão belo, agora era de pedra. Um dia apareceu à mesa com a cabeça raspada, sem os cachos que tanto prezava. Falava somente bom dia. Diante de perguntas alçava olhos de areia movediça e fazia um gesto suave com a mão espalmada servindo de escudo. Tudo isso que eu estou dizendo é uma possível reconstrução a partir do que ela mesma e os pais me contaram.
— O que pode ter acontecido com ela? Pedro perguntou com dois olhos boiando em tristeza.
— Eis o ponto cego dessa história. Ninguém sabe. E ela nunca quis me dizer. Aparentemente, o trauma foi tão grande que ela não conseguia trazer o episódio à tona. Exatamente por isso ela nunca te contou nada, Pedro, não conseguia.
— Mas agora está contando alguma coisa, ou não?
— Sim, mas à distância é mais fácil. Se você a rejeitar ela já estará distante.
— Jamais faria isso, ela é o amor da minha vida.
Manuela continuou a contar. Durante alguns meses, Flora permaneceu na casa dos pais, tomando a condução que a levava ao colégio, estudando o suficiente para passar. Comia feito um passarinho triste. Ficou magra, era uma sombra da Flora que todos conheciam. Um dia, do nada, desapareceu.
Os pais, desesperados, começaram uma peregrinação. Foram a hospitais, IML, avisaram à polícia, postaram no Facebook, colaram cartazes na região e no centro de Teresópolis. Ela parecia ter sumido da face da Terra. Imaginem só, uma moça de dezessete anos…
— E depois? Perguntaram ao mesmo tempo Bola e Pedro.
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Depois… disse Manuela com voz de carro derrapando, depois Flora demorou seis meses para reaparecer.
— Onde ela estava? perguntou Pedro, curiosidade misturada com medo.
— Ninguém sabe. Havia um buraco negro na narrativa dela, fruto de traumas profundos. O indizível. Fiz o que pude, mas se o paciente se recusa a contar, só podemos esperar que um dia se abra uma pequena brecha e o discurso encontre um meio de vir à tona. Flora me falava de pesadelos mas não contava o conteúdo. Os olhos eram nuvens carregadas de sofrimento. Tivemos que interromper a terapia quando ela foi para a universidade, um ano depois.
— Ela foi para a federal do Rio Grande do Sul, não foi?
— Exatamente. Creio que foi o meio que conseguiu de fugir daqui, das lembranças do que ocorreu aqui.
— E a senhora continuou mantendo contato com ela?
— Sim. Nos falávamos por telefone de tempos em tempos. Ela parecia melhor. E depois que passou a morar no Rio ela me visitava, agora na condição de amiga, como você sabe.
— Ela falava de mim?
— Sim, muito, sempre com vida nos olhos e voz amorosa.
— Então, como a senhora explica o desaparecimento dela?
— Ela nada me disse. Mas me visitou há duas semanas. Estava emocionada. Me pediu para te dizer uma coisa.
— O que?
— Algo que eu não entendi: que a conversa comigo valia por três segredos.
Desceram a serra em silêncio. Só se ouvia o ronco do motor da Harley, um som hipnótico. Sonhava voltar para casa e encontrar Flora tirando uma sonequinha depois de uma longa viagem. Para despertar mais linda ainda, a cada dia mais bonita. Mas sabia o que o esperava: uma casa e uma vida de pernas para o ar, a saudade esmagando a alma, as mil teorias rondando a sua cabeça feito hienas. E aquele silêncio absurdo dos aposentos, um vácuo de som, o vazio de sentido. A impotência e a maldição da espera.
Quando estacionaram a moto diante do prédio, o Bola encontrou um motivo para esperança.
— Pedro, estava aqui pensando e me dei conta de uma coisa…
— Fala logo, Bola.
— Sabe o dia em que a primeira mensagem dela apareceu?
— O pior da minha vida.
— Era dia onze, dia do aniversário de vocês. No próximo dia onze vai aparecer outra…
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Capítulo 14: TEMPLO
Depois da ida a Teresópolis, Mauricio e Pedro ficaram um tempo sem se verem. Bola precisou passar uns dias em Cachoeiras de Macacu. Estava elaborando um projeto de casas populares e foi até lá conversar com os futuros moradores. Gostava de fazer um trabalho de campo para conhecer as pessoas, suas vidas e desejos antes de partir para a prancheta, ou melhor, para o computador. Para ele a arquitetura era uma arte e como tal lidava com o humano. Nesse período, conversava por zap com Pedro, aproveitando que agora o amigo tinha, mesmo contra a vontade, um celular. Pedro dava respostas lacônicas com uma voz carregada de melancolia. Dizia apenas que sim, continuava trabalhando, dando aula e mais nada. Bola ficou preocupado.
Por isso, veio direto para a casa do amigo. Quando Pedro abriu a porta, Bola ficou paralisado diante do que viu. Há um restaurante em Florianópolis conhecido pelos frutos do mar e pela prática dos clientes pendurarem papeizinhos nas paredes, contando da experiência gastronômica, fazendo comentários engraçados e muitas, muitas declarações de amor. Pois declaração de amor pendurada na parede era o que não faltava no apartamento de Pedro. Ele mandara fazer dezenas de fotos digitais que tinha de Flora espalhadas pela sala, pelo quarto, cozinha e até no banheiro. Flora rindo com a boca lambuzada de iogurte no café. Flora compenetrada, escrevendo seus relatórios. Flora sorrindo para ele no Café Secreto. Flora no sofá, vestida só com uma camisa dele de camisola, olhando marota … Na mesa de jantar, um vaso com uma orquídea roxa. Além disso, havia bilhetes para ela em toda a parte, perguntando onde estava, o que estava acontecendo com ela, lembrando momentos dos dois. Terminavam assim: “Eu sou louco por você, Flora. A cada segundo te amo mais.” Valia por uma oração pagã.
Quando parou de admirar o templo do amor por Flora, Mauricio se virou para o seu amigo. Pedro tinha o rosto banhado. Tremia. Um homem daquele tamanho soluçando não é coisa bonita de se ver.
— Bola, estou rasgado de saudade. Preciso ver a Flora.
— Segura firme, Pedrão, amanhã é dia onze.
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Pedro tinha aprontado no último dia onze antes do desaparecimento de Flora. Adorava surpreendê-la. Mas naquela sexta-feira se superou. Pegou emprestado o Ford Ka vermelho e foi buscá-la no trabalho. Ela não esperava.
— Isso tudo é saudade? Disse ela inclinando o rosto e mexendo nos cachinhos, a falsa timidez que o encantava.
— Saudade de você nunca passa, mas hoje vim aqui para um rapto consensual…
— Mais consensual do que isso, impossível…
Ele a levou para uma reserva ecológica a menos de uma hora e meia do Rio. Aquele lugar era um refúgio para ela. Uma antiga fazenda transformada em uma enorme área de preservação. Era cheia de lagos, árvores nativas e muitas flores. Havia lindos pássaros, inclusive o Saíra-Sete-Cores que ela adorava. A cereja do bolo era uma cachoeira intocada, um paredão de pedra de onde descia água cristalina. Era preciso caminhar duas horas numa trilha da mata. Fizeram boa parte do caminho de mãos dadas. Paravam para o beijo como se estivessem precisando de ar. Falaram pouco, ouviram o silêncio feito de amor. À noite, dormiram como se a paz existisse no mundo.
E agora, dois meses depois, cá estava ele, de olho no maldito celular, sem saber nada dela. Bola acompanhava o amigo, temendo que ele fizesse alguma besteira. Para passar o tempo, convenceu Pedro a disputarem uma partida de futebol de botão, faziam isso desde crianças. Era o grande clássico Botafogo A x Botafogo B, assim o Fogão sempre ganhava. A partida foi para os pênaltis. Pela primeira vez Bola viu o seu amigo distraído e quase feliz.
Apareceu uma mensagem no visor. Pedro voou para pegar o aparelho. A mensagem não era de Flora. Era de Manuela: “Boa tarde. Tenho que acrescentar um detalhe macabro: três dias depois da ida de Flora para a universidade no sul, o irmão dela morreu em um acidente com uma Scania. O motorista do caminhão, que sobreviveu, disse que Rogério acelerou e jogou o carro em cima do seu veículo.”
Pedro ainda tentava absorver esta notícia quando ouviu Your song e viu a nova mensagem de Flora: “Itaipava, doutor Cardoso”.
Que quarto segredo era aquele? O nome de um médico em Itaipava? O que aquilo significava?
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Capítulo 16: MARCAS INVISÍVEIS
Mauricio e Pedro só poderiam viajar para Itaipava em busca do doutor Cardoso na tarde de sexta. Bola iria trabalhar no escritório montando o projeto de casas populares. E Pedro tinha que dar aula. Era ainda terça-feira, o tempo era um elefante preguiçoso. A aula do dia era sobre a urbanização. A turma de adolescentes gostava do professor, da sua fala apaixonada, não importando o assunto. Parecia que era sempre a questão mais importante do mundo e que cabia a eles resolver os problemas que Pedro apresentava. Ele estimulava a participação com perguntas frequentes e pedia trabalhos criativos, trazia passagens da literatura, propunha situações. Concluiu sua aula propondo uma reflexão:
— O Brasil é louco. Em 1950, era um país rural, mais de 60% da população vivia no campo, apenas 40% nas cidades. Em trinta anos, vejam bem, em apenas trinta anos, menos do que o dobro da idade de vocês, era o inverso. Em 1980, 60% da população vivia nas cidades, sobretudo nas grandes cidades, e apenas 40% no campo. Será que vocês conseguem imaginar o que isso representou para milhões de pessoas que vieram do campo, de áreas sem eletricidade, sem escola, hospital, sem água encanada ou esgoto? E o impacto que isso teve na já precária infra-estrutura urbana? O exercício para a aula que vem: imaginar que você é um migrante vindo do campo e chegando na cidade. Vocês escolhem se serão um dos pais ou uma criança. Os motivos para migrar são por conta de vocês, bem como o tipo de recepção que vão encontrar na cidade e o que pensam dela. Apenas uma página. Mas vamos ler e debater. Tocou o sinal e ele viu a turma desaparecer que nem água escoando na banheira.
Aula terminada, vinha a parte mais difícil, voltar para casa. Bola tinha arrancado e guardado os bilhetes e fotos, para Pedro não enlouquecer. Mas as marcas invisíveis estavam em toda a parte. Ao entrar em casa, lembrou que certa vez entreabriu a porta e disse que não iria deixá-la entrar:
— É beleza demais, não vai caber em um apartamento tão pequeno.
Os olhos de Flora responderam com um amor tão grande que o único lugar em que poderia se alojar seria no coração de Pedro.
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Capítulo 17: LIBERDADE
Antes era o melhor da semana. Quinta-feira era o único dia em que não dava aula. Às vezes Flora conseguia sair mais cedo do trabalho e passeavam pela cidade, viam exposições, iam ao cinema. Ou simplesmente andavam por Laranjeiras, onde moravam. Flora adorava tomar iogurte gelado com morangos e chocolate na loja perto de casa. O programa de Pedro era ver Flora feliz. Agora temia a quinta-feira, muito tempo para pensar e pensar era pensar em Flora, em tudo que faziam juntos, em tudo que gostariam de fazer. Ela o chamava de tradicional, mas ele queria que fossem a Paris no mês de maio, o mesmo em que Riobaldo encontra Diadorim pela primeira vez. Agora o dia livre era dedicado à literatura.
Passou a ler sem parar, para dar uma trégua no seu pensamento. Começou a ler na adolescência, de forma curiosa. Aos quinze anos, era um bom jogador de basquete. Era o craque do time da escola e já treinava no Botafogo. Era um armador habilidoso e cerebral, mais passador do que arremessador. Gostava de colocar os companheiros em situação de cesta. A equipe ia bem no campeonato sub-17. Se vencessem o jogo contra o Tijuca, estariam na final contra o odiado Flamengo. Jogo empatado, faltavam cinco segundos. Pedro dá um drible no seu marcador e penetra no garrafão. Quando sobe para a bandeja sente um corpo arremessado contra o seu: o pivô adversário. Caiu pesadamente, jamais sentira tanta dor. Rompimento do ligamento cruzado do joelho, nunca mais voltou a jogar. Foi acolhido pela literatura, começou com policiais e de ficção científica, depois lia de tudo. A literatura deu-lhe compreensão do mundo e sensibilidade para as coisas humanas.
Sempre quis escrever um romance, mas a ideia não se firmava. Agora, em meio ao caos, entendeu as entrevistas de escritores. Diziam que eram obrigados a escrever. A grande inspiração era o desespero, escrever para não enlouquecer. Decidiu-se ao ler a frase de um conto de Silvina Ocampo: “Vivia dentro do meu personagem como uma criança dentro da mãe: eu me alimentava dele.”
Ali ele iria se abrigar: na palavra. Em sua forma mais perfeita: a ficção, única liberdade possível.
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Pedro animou-se com o projeto do romance. Em um caderninho azul, anotou ideias. Tinha que escolher entre duas histórias. A primeira chamava-se Revertério 86 e o protagonista era Marcelo, um adolescente de classe média estudioso e deslocado. Logicamente, estava apaixonado pela menina mais bonita da sala. Sua vida muda ao fazer um amigo na arquibancada do Maracanã, um rapaz que morava na Mangueira e o leva para conhecer o mundo do samba. Ele conhece isso e muito mais, inclusive uma moça do local. O tema central do romance seria a transformação da visão de mundo de um peixinho de aquário que vem a conhecer o mar. A outra ideia era mais complexa e difícil. O cenário era o início do século XIX em Angola e no Brasil. Olabisi, uma mocinha libolo, é sequestrada e trazida como escrava para o Rio de Janeiro, onde tem que se adaptar a uma realidade pesada. A particularidade é que ela tem poderes especiais concentrados nos pés. Mesmo sendo um escritor principiante, Pedro se decidiu por Olabisi, que começava assim:
“Nem o Cuanza depois da chuva. Nem as palancas correndo pela savana. Nem a aldeia em dia de festa. Nada era igual aos olhos da Kuku. Lembravam um pássaro pousado em paz sobre um galho. Mas podiam virar um leopardo que sente o cheiro da caça. Se os apontava para mim nunca era à toa, sempre tinha algo a dizer. Cada palavra era uma pedra atirada em um lago, fazendo ondas circulares que não terminavam. Ainda nem conseguia tocar os chifres do búfalo quando a Kuku me disse:
— Olabisi é a que traz alegria. A alegria vai demorar. E não conte nada para a medrosa da sua mãe. Vai dizer que é feitiçaria. Nem todas as árvores dão frutos, mas algumas de nós nascem com poderes. Ouça seus pés.
— Não entendi, vó.
— O tempo vai ensinar.
Passei a olhar para os meus pés, como se fossem conversar comigo. Apertava, alisava, mordia. Ou estavam mudos ou não queriam falar nada. A Kuku vigiava, em silêncio. Aos poucos os pés foram dizendo coisas na língua deles.”
Quando viu, depois de escrever, reescrever, cortar e imaginar novas cenas, passava da meia-noite. Já era sexta-feira, dia de ir a Itaipava na pista de Flora.
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PEDRO E FLORA: UMA HISTÓRIA DE AMOR?
Capítulo 19: ITAIPAVA
Antes de subirem na Harley, Bola pediu que recapitulassem o que sabiam. Flora desaparecera do dia para a noite, mas tinha planejado aquilo com meses de antecedência: avisara no trabalho e deixara instruções para a amiga e confessora. Manuela achava que o envio dos segredos por zap era a forma que Flora tinha encontrado para lidar com fatos que a haviam traumatizado. Sem dúvida aquele passeio solitário a cavalo retornando com os pés banhados em sangue havia sido um episódio marcante e inexplicado. Descobriram também que Flora mentira para Pedro ao dizer que os pais haviam morrido e que era filha única. Como se ela quisesse apagar a família da sua vida. A isso tudo se somava o possível suicídio do irmão. Mais um mistério, sem falar nos seis meses em que ela desapareceu de casa pouco após o episódio central. Algo lhes dizia que tudo estava interligado, só iriam desemaranhar aquele novelo no final. Agora, o que tinham a fazer era subir a serra em busca do doutor Cardoso.
Segurando firme na garupa, Pedro percebeu que era capaz de ver o azul do céu. Reparou nas montanhas verdes do caminho. A dor era sua pele. Mas o desespero, o atordoamento, haviam diminuído. Ele sabia que precisava ter calma e paciência se quisesse ver Flora de novo. Isso, é claro, se sobrevivesse à carona e à velocidade alucinada com que Bola subia a serra de Petrópolis. O amigo só parou para comer um pão com linguiça e um croquete de carne no Alemão, não iria perder uma chance dessas. Pedro se contentou com um brioche de queijo e um suco de laranja.
Reforçado pelo lanche, Bola partiu com furor na direção de Itaipava. Na tarde de sexta, o distrito chic de Petrópolis começava a receber seus visitantes de fim de semana. Fugiam do stress do Rio, mas esperavam ser acolhidos com os mimos que tinham lá embaixo: lojas de luxo, vinhos importados, café expresso, shopping e estacionamentos bem guardados para seus carros importados.
A questão deles era achar o doutor Cardoso, um médico que já devia ter certa idade. Encontrá-lo e ouvir o que ele sabia de Flora. No Google, nem sinal dele. Teriam que bater à porta dos hospitais e clínicas.
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PEDRO E FLORA: UMA HISTÓRIA DE AMOR?
Capítulo 20: DOUTOR CARDOSO
Todas as noites, à hora de dormir, depois de passar o dia se esforçando para alcançar o mais elevado grau de esgotamento, Pedro deitava-se com o fantasma de Flora. Ouvindo a voz animada e alegre de Flora. Vendo os olhos negros de Flora a sorrir para ele. Aninhando seus dedos nos cabelos cacheados de Flora. Sentindo o perfume estonteante de Flora. Tocando o corpo quente de Flora. Dando em Flora um beijo infinito. Até se perceber no silêncio do quarto, a imobilidade dos objetos, o cenário sem vida onde ele agora sobrevivia. Ao levantar ligava o celular como quem empunha uma corda para sair do abismo. Tinha esperança de ler apenas uma mensagem: Pedro, te amo, estou voltando para casa. A tela impiedosa nada dizia.
Se ela voltasse, ao sair do elevador iria espremê-la no beijo de parede. Iria massagear o corpo da sua branquinha, com atenção especial aos pés, pressionando a sola com o polegar e puxando com delicadeza cada um dos dedinhos. Depois entraria nela como quem volta para casa, sem nunca parar de olhar para Flora. Este era, de verdade, o maior prazer: olhar nos olhos da mulher que você ama e ter certeza de que é amado.
Agora as certezas tinham desaparecido. Achava tudo aquilo estranho, bizarro até. Era sexta feira, estava com Bola em Itaipava atrás de um doutor Cardoso. O distrito não dispunha de nenhum hospital, mas havia clínicas. Na primeira delas, um prédio que parecia uma loja, ninguém havia ouvido falar em doutor Cardoso. No posto de saúde, idem, havia doutor Ferreira, doutor Azevedo, nada de doutor Cardoso. Em uma clínica luxuosa, uma enfermeira disse ter conhecido um doutor Cardoso, que agora trabalhava em um centro médico no final da rua principal. Foram até lá. O doutor Cardoso era um oftalmologista, um médico recém-formado que não devia ter nem trinta anos. Explicamos a história por alto e ele foi simpático mas disse não conhecer nenhuma Flora Tavares. Quando falamos que se referia a algo que acontecera vinte anos atrás, abriu um enorme sorriso:
—Vocês estão procurando o meu pai. Ele é um médico obstetra aposentado. Nem mora mais aqui e sim no centro de Petrópolis, eis o endereço.
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