/Um FUNCIONÁRIO SAINDO DE CASA A PASSEIO COM SUA FAMÍLIA, Jean-Baptiste Debret

Um FUNCIONÁRIO SAINDO DE CASA A PASSEIO COM SUA FAMÍLIA, Jean-Baptiste Debret

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Um FUNCIONÁRIO SAINDO DE CASA A PASSEIO COM SUA FAMÍLIA, Jean-Baptiste Debret (Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, Tomo II, Prancha 5)

Antes de mais nada, é preciso perceber que a ironia já se faz presente no título, sobretudo pelo uso da palavra “família”. Na Roma antiga a família de um cidadão incluía não somente o que hoje nós tradicionalmente chamamos de família, ou seja, o núcleo familiar constituído pelos pais e pelos filhos, mas também os escravos que lhe pertenciam. Parece ser neste sentido arcaico que Debret utiliza o termo “família”, pois este “empregado do governo” (funcionário) está a sair da “sua casa” não somente com a sua mulher e suas três filhas (uma ainda um bebê), mas também com toda a sua escravaria, com exceção da figura solitária do cozinheiro. Este é retratado de pé na soleira da porta a espiar – talvez com inveja – seus patrões e seus companheiros de infortúnio a ir passear. Debret assinala que ele fica como “guarda da casa”, talvez, aqui eu especulo, por um motivo prático também: ao retornar da caminhada há que ter a refeição pronta. De qualquer forma, já no título Debret parece apontar para a grande questão que caracterizava a sociedade brasileira e, aos olhos de um francês iluminista recobria a nossa realidade de um aspecto sombrio e até bizarro: a persistência da escravidão e mais do que isso, a centralidade da mão-de-obra escrava como ele ressalta na introdução ao segundo tomo:

“Tudo assenta pois, neste país, no escravo negro: na roça, ele rega com seu suor as plantações do agricultor; na cidade, o comerciante fá-lo carregar pesados fardos; se pertence ao capitalista, é como operário ou na qualidade de moço de recados que aumenta a renda do senhor.”

De fato, ele inicia o comentário da Prancha 5 com a surpresa que causou a ele e seus colegas artistas, “Após dois meses de travessia”, o contato inicial com as ruas do Rio de Janeiro, “obstruídas por uma turba agitada de negros carregadores e de negras vendedoras de frutas” (1982:160).
Em uma contraposição presente várias vezes em sua obra, Debret assinala a existência de um costume oposto ao da civilização, cujo modelo primeiro é para ele (e para muitos, à época), sem dúvida, a França e, mais especificamente Paris. Ele aponta, assim, uma falta (1982:160):
“sentimo-nos, nós franceses, estranhamente impressionados com o fato de não ver nenhuma senhora, nem nos balcões nem nos passeios.”
Ou seja, ele aponta para o seu provável leitor francês uma inversão: ao invés da civilização encarnada em moças elegantes a passear pela cidade ou ao menos a espiar das janelas ou sacadas, o que temos são ruas “obstruídas” (notar o sentido de obstáculo), tomadas pelo espetáculo horrendo da escravidão.
Depois de fazer estas observações em que a oposição civilização x escravidão fica clara é que Debret descreve a Prancha 5:
“A cena aqui desenhada representa a partida, para o passeio, de uma família de fortuna média, cujo chefe é funcionário. Segundo o antigo hábito observado nessa classe, o chefe de família abre a marcha, seguido, imediatamente, por seus filhos [M.A. no caso, filhas], colocados em fila por ordem de idade, indo o mais moço sempre na frente; vem a seguir a mãe, ainda grávida; atrás dela, sua criada de quarto, escrava mulata, muito mais apreciada no serviço do que as negras; seguem-se a ama negra, a escrava da ama, o criado negro do senhor, um jovem escravo em fase de aprendizado, o novo negro recém-comprado, escravo de todos os outros e cuja inteligência natural mais o menos viva vai desenvolver-se a chicotadas. O cozinheiro é o guarda da casa.”

Antes de passar à análise iconográfica, é preciso fazer algumas observações acerca deste conciso parágrafo de apresentação da gravura:

i. Notar que Debret novamente reforça a ideia de que está a utilizar a palavra “familia” no seu sentido arcaico: ele não diz que o funcionário está a sair com sua família e seus escravos e sim que a família está saindo a passear e a partir daí passa a enumerar seus membros, sem haver nenhum corte (no texto) entre sua mulher e filhas e seus escravos e escravas.
ii. A lógica em que está estruturado o a “família” é claramente patriarcal e hierárquica. Primeiramente vem o chefe de família, que não é seguido de sua esposa, como seria de esperar, mas de suas filhas e herdeiras, que representam a continuidade da família e explicitam a verdadeira função de sua mulher: não uma companheira e sim uma reprodutora. Em seguida vem a mulher do funcionário e depois a escravaria, também em uma ordem hierárquica, desde a mucama mulata – e portanto “racialmente” superior aos outros escravos da família – até o negro novo, degrau mais baixo da escala social e sujeito a um aprendizado que tem na violência seu principal mecanismo “pedagógico”. Debret na verdade diz mais do que isso: ele “é escravo de todos os outros”. Ou seja, a escravidão é a principal forma de estabelecer relações naquela sociedade. Ele parece estar dizendo, para voltar novamente ao modelo romano, que o pater familias é o único homem livre, dispondo de um poder absoluto sobre os membros de sua família.
A análise da imagem reafirma estas observações e proporciona outras. Começando da esquerda para a direita segundo a lógica hierárquica e patriarcal, abrindo a fila temos o funcionário. Calçado em imponentes botas de couro, vestindo uma sóbria casaca de cor escura e ostentando um chapéu que marcava sua função e sua posição social. Veste também o indefectível colete devidamente abotoado e um lenço no pescoço, símbolo de fidalguia à época e proibido aos negros (Karasch, 2000:303). Ele é dono de uma vasta cabeleira que termina em um pequeno rabo de cavalo. Com a mão esquerda segura a casaca afetando elegância mas tentando talvez esconder uma pança proeminente que devia ser escandalosa aos olhos de um parisiense como Debret. A mão direita empunha uma espada, símbolo concreto não somente da sua função e posição na sociedade mas também do seu poder enquanto chefe de família: é fundamental perceber que a espada está voltada para trás, na direção dos seus subordinados, como a apontar o fato de que esta hierarquia se baseia no uso da força, pois a violência está na base do sistema escravista. É uma figura caricatural, grotesca quase se confrontarmos a sua pretensão de superioridade com o que ele de fato representa. Orgulhoso, arrogante até, sai a passear para exibir o seu poder e as suas propriedades, consubstanciada na posse de outros seres humanos, já que a riqueza e a posição social eram medidas em número de escravos. Debret é aqui altamente irônico e crítico, o que foi apontado com extrema lucidez por Rodrigo Naves (1996:82) ao analisar esta e outras gravuras:
“Nesse movimentado painel de ambiguidades, algumas litografias e aquarelas realçam com humor os estranhos vínculos criados pela servidão O funcionário que desfila suas posses humanas, o oficial garboso que encarrega uma escrava do transporte de suas armas (repr. 50), o homem bem posto que compra os favores de uma prostituta negra, manifestam a dependência que a escravidão também cria nos seus senhores. Sem dúvida, os negros que fecham o cortejo do burocrata sentem a humilhação de serem a sombra de seus donos, sempre à mão para qualquer necessidade. No entanto, a sua simples presença anula muito da suficiência que enche o peito do proprietário orgulhoso.” [grifo meu, M.A.]

Esta interpretação, que à primeira vista pode parecer exagerada, é reforçada por uma fonte proveniente da época: o parecer elaborado em 1841 por membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro acerca dos dois primeiros tomos da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (Lisboa e Moncorvo, 1841: 95-99). De fato, Bento da Silva Lisboa e J.D. Attaíde Moncorvo utilizam a palavra caricatura, sem tirar nem por (Idem:98) :

“Entre as estampas há trez, que, se não fosse a consideração de que em geral o autor faz elogios aos Brasileiros, pareceria que elle queria fazer uma verdadeira caricatura.”

Das três gravuras criticadas pelos pareceristas do IHGB, duas tratam explicitamente da escravidão: Mercado da Rua do Valongo (Tomo II, Prancha 23) e Feitores castigando negros (Tomo II, Prancha 25). Mas a primeira a ser contestada pelos intelectuais do IHGB é exatamente a imagem que estamos analisando. Eles chegam a dizer o seguinte (Idem:98): “Com effeito, a do empregado público passeando com sua família excita o riso.” Os críticos brasileiros querem alegar que o costume do funcionário de sair a passeio com sua esposa grávida e o restante da família era tão afastado da realidade brasileira que seria até cômico em sua imprecisão. O testemunho de viajantes contemporâneos de desmente (Lima,2007:163) esta tentativa de refutar a representação construída por Debret de uma marcha processional, vulgarmente conhecida como “fila indiana”. Jacques Arago, por exemplo (apud Lima, 2007:163), descreve assim o passeio de senhoras e suas escravas:
“Elas vão em fila, umas atrás das outras […] Assim, no Rio, a dama que dirige as outras deve, de vez em quando, voltar-se e ver se a linha foi interrompida por algum obstáculo e se todas têm sua chefe de fila. As escravas, trajadas com elegância e quase sempre de pés descalços, seguem suas senhoras a quatro, seis ou oito passos de distância. Quanto mais longe elas estiverem, mais dignidade há na marcha.”

A cena é cômica, de fato, mas não pelo motivo alegado e sim pelo aspecto risível do pater familias, símbolo de um sistema que muitos anos mais tarde Machado de Assis, em seu conto “Pai contra Mãe” irá caracterizar como “grotesco” e “cruel” (Assis, 2007: 147). Uma última observação sobre a personagem – assim o chamamos para enfatizar o caráter construído da representação debretiana – que abre a marcha. Assim como empunha a espada com a mão direita, é também o pé direito que abre a marcha. Ora, o lado direito é associado na tradição ocidental, desde a Grécia antiga, ao masculino e a uma série de propriedades positivas (ver Hertz, 1980). Novamente a hipótese interpretativa pode parecer exagerada, mas é apoiada no contraste existente na imagem: as quatro personagens seguintes, todas do gênero feminino, a saber suas duas filhas maiores, sua mulher e a mucama mulata, todas o acompanham com o pé esquerdo colocado à frente.