Diário do URUCUIA 004 – Bicicleta amarela, Leopoldo aos meus pés e Urucuia vermelha
Parece que estou virando jagunço. Como lembra Riobaldo: “Alegria do jagunço é o movimento galopado”. Mesmo depois do longo e acidentado percurso de ontem, saltei da cama às quatro da manhã já querendo botar o pé na estrada, sequioso de movimento. Tomei um café duplo que Hermínia, a cafeteira, preparou com capricho. Comi uns biscoitos. E lá fui eu antes das cinco da manhã caminhar por Urucuia.
O príncipe do sistema solar ainda não tinha dado o ar de sua graça, mas já pintava o céu de um vermelho que lembrava a batalha do Paredão. Fui caminhando pelo eixo central da cidade, a longa avenida Tancredo Neves, que é larga e tem uma alameda central sombreada. Ela se inicia ao terminar a estrada que vem de Riachinho e termina em uma estrada de terra que marca o fim da cidade. Praticamente todo o comércio e serviços se encontram ali: churrascaria, lojas de conserto de motos, hamburgueria, postos de gasolina, farmácias, loja de eletrodomésticos, de roupas, etc. O restante da cidade se desdobra em dois lados, sendo o lado direito de quem vem do asfalto onde temos o rio Urucuia, escondido, sem direito a uma placa anunciando sua presença.
A cidade tem menos de vinte mil almas, algumas delas residentes na zona rural. Ela é um pontinho urbano em meio a uma imensidão de campo. Pecuária, café e carvão proveniente de plantações de eucalipto são as principais fontes de renda do município, que não tem bons índices de desenvolvimento humano, educação ou saúde. Como me disse o balseiro do Urucuia: “o que tem aqui é só emprego braçal”. As grandes fazendas, localizadas sobretudo na outra margem do rio, chegam a ter doze mil hectares, mais ou menos 12 mil campos de futebol tamanho oficial. Muitas destas propriedades pertencem a pessoas de outros estados, investidores. O desmatamento é tão sério que Urucuia tem até oficina de conserto de moto-serra.
Na verdade, Urucuia, o município, foi criado há trinta anos somente, em 27 de abril de 1992. Sem saber, ontem eu cheguei no dia do aniversário da cidade, que será comemorado amanhã, sexta-feira, com missa e shows na praça do Coreto. Antes, muito antes, havia uma localidade chamada Porto de Manga, que aparece em Grande sertão: veredas apenas uma vez. É no trecho em que Riobaldo fala das histórias que seu padrinho-pai contava acerca de um poderoso chefe de jagunços chamado Neco:
“Demais falasse, tendo conhecido o Neco, se lembrava de quando o Neco forçou Januária e Cariranha, nas éras do ano de [18]79: tomou todos os portos — Jatobá, Malhada e Manga — fez como quis:”
Porto de Manga, à época, era apenas um povoado nascido de um pequeno porto fluvial à beira do Urucuia, aquinhoado com a sombra de generosas mangueiras. Deve ter sofrido na mão de Neco, a julgar pelo que ele fez até em cidades propriamente ditas:
“O pessoal que eles numeravam em guerra comprazia uma babilônia. Botavam até barcas, cheias de homens com bacamartes, cruzando para baixo e para cima o rio, de parte a parte. Dia e noite, a gente ouvia gritos e tiros. Cavalaria de jagunços galopando,saindo para distâncias marcadas. Abriam festa de bomba-real e foguetório, quando entravam numa cidade. Mandavam tocar o sino da igreja. Arrombavam a cadeia, soltando os presos, arrancavam o dinheiro em coletoria, e ceiavam em Casa-da-Câmara…”
Depois da caminhada, tomei o bom café da pousada e arrumei o acampamento do quarto 219, a começar pela prateleira de livros. O ar condicionado gela de fazer picolé, o chuveiro de água quente é delicioso, a internet funciona bem, nada a reclamar. Em seguida fui à academia me registrar e cuidar um pouco do corpo já que a alma está em festa. Ali se deu o fato mais singelo e doce do dia. Leopoldo entrou na minha vida se pondo aos meus pés. Quando eu estava fazendo um exercício para os braços, o gatinho cor de mel se alojou entre os meus pés, ajeitou a cabecinha no tênis direito e se aprontou para dormir. Fiz-lhe um cafuné e tirei a foto porque sei que vocês são um bocado incréus.
O almoço foi em frente ao meu rio, no bar do Vanderlei. Convidei o Nilsinho, o simpático urucuiano que fez todas as pontes iniciais para que o projeto deslanchasse. Comemos uma refeição maravilhosa preparada pelas mãos de Dona Lucinha: pedaços de peixe frito a milanesa, arroz, feijão de corda e uma salada caprichada. Seu Vanderlei sentou à mesa conosco e aí foi um festival de histórias e gargalhadas. Falaram sobretudo da festa de Santo Antônio no povoado da Serra das Araras, que atrai gente de todo o sertão e até de outros estados. Mas, sertanejos sábios que são, os dois se interessam mais pelo ir do que pelo chegar. Nilsinho vai caminhando com um grupo de amigos fazendo festa pelo caminho. Seu Vanderlei idem, só que a cavalo. Adotaram a máxima de Riobaldo, tendo ou não lido o livro:
“o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”
Em seguida fui à escola acertar alguns detalhes dos cursos que começam na terça-feira. Os deuses são bons e as duas turmas estão lotadas. Já está dando o friozinho na barriga que ajuda a pensar e inventar coisas novas, a “gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder”.
Mas não fui de carro. Depois da presepada que armaram ontem, deixei o burrinho e Agripina de castigo no curral, sem sair nem para ir na padaria. Aluguei uma bicicleta amarela para passear por Urucuia todo pimpão. Ainda não arrumei nome para ela, mas, bela e elegante desse jeito, tá com jeitão de Isolda.
E por falar em bike, a cena mais impressionante de hoje: fui ao supermercado comprar um chocolate para comer com café. O estacionamento de bicicletas era normal, afora um detalhe: nenhuma estava presa com correntes. A pessoa chega, encosta a bicicleta, volta e a bicicleta está no mesmo lugar. Simples assim.
Igualzinho ao Rio de Janeiro…
(amanhã tem mais)