/Diário de URUCUIA 016 – O sonho da filha do Putin, sabe como é carioca, encontro com o Ricardão

Diário de URUCUIA 016 – O sonho da filha do Putin, sabe como é carioca, encontro com o Ricardão

Diário de URUCUIA 016 – O sonho da filha do Putin, sabe como é carioca, encontro com o Ricardão

O sol, para variar, estava dormindo. Eu nem tinha acordado e já estava aprontando. Explico: tive um sonho. Não me lembro deles nem um pouco, o que é uma pena, pois como diz Riobaldo: “Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flôr”. No meu caso, virei foi convidado, provavelmente penetra (sabe como é carioca, não respeita nada) em uma festa. No Kremlim, vejam só. Casa cheia, Putin falando sem parar e todo mundo achando graça, menos eu, não entendi “patavim”. Pois de russo só conheço a linda palavra que designa mar (sabe como é carioca, só quer saber de praia): moriá. Pode ser que não seja bem isso, meu russo anda meio enferrujado. De qualquer forma, o Arrenegado não devia estar falando nada que preste. De repente, a festa esvazia, vai todo mundo embora, menos eu e o Putin, que nesse momento já tinha se transformado naquele que “tem um capeta em casa, miúdo satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa”. Jisé Simpilício nada, homem, acertou quem disse Bolsonaro, apre! A língua desse aí eu entendo, infelizmente. E começamos a discutir, ele gritando comigo, sempre a brandir uns papéis que dizia serem importantíssimos e tal e coisa. Devem ser os documentos que “provam” que as eleições já foram roubadas mesmo antes de acontecerem, sobretudo se ele perder.

Sou medroso, mas sou filho de baiano. Fui “desfeiteado” e meu sangue aferventou. Não virei flor, virei foi pedra. Comecei por tomar os papéis da mão dele e rasgar bem rasgado. Depois não me aguentei, nasci no paz e amor, mas desci a lenha no Pactário Zeroum: arrumei a mão nele e meti-lheum sopapo: um safano nas queixadas e uma sobarbada”. “Me concebo”, que mesmo assim o Tralha, o Pai-da-mentira (um dos nomes do Demo, sim senhor) não parava de vociferar (sabe como é Bolsonaro), me ameaçando disso e daquilo. Deixei a “papagaiagem” dele de lado e comecei a quebrar o palácio todo, agora sem raiva: “O vau do mundo é a alegria!”. Quando o serviço estava terminado, fugi com uma filha do Putin pra rua, totalmente coberta de neve, onde jogamos futebol com uma prosaica laranja (sabe como é carioca, só pensa em futebol). Estava tentando explicar a ela como passar a bola, até que a moça levava jeito, apesar de ser filha de Putin (sabe como é carioca, não resiste a um trocadilho). Foi bom até a improvisada pelota se esconder debaixo de um ônibus e aí o sonho terminou porque eu já devia estar com um bocado de fome e café-da-manhã é sagrado aqui no acampamento, nem preciso dizer.

Foi só isso assim o meu sonho, bem que eu queria ter feito muito mais coisa, mas acho que deu preguiça, sabe como é carioca. Por falar em indolência, não havia planejado nada para esse dia. À noite somente é que teria o encontro com o Bando Sagarana para continuarmos a ler a novela de Lalino Salãthiel, malandro sagaz e encantador, que tem uma aversãozinha ao trabalho, mas gosta de cantar e inventar histórias tão boas que até ele começa a nelas acreditar.

Mas “minava fininha, de dentro da idéia”, uma inquietude: se eu não contar mais nada esse povim do Foicebúqui vai cortar minha cabeça e falar mal de mim no Tuíte, no Estagrã e no Imeio. Melhor não. Mas que diacho vou fazer hoje? Na dúvida, fui tomar café da manhã. Quer dizer, até que eu tentei. Mas como, se novamente não havia pão, nem queijo, nem presunto? Tá certo que Gilciane, minha amiga, tinha descolado (sabe como é carioca, adora gíria) um suquinho de maracujá e até fez os dois últimos ovos que a galinha botou. Mesmo assim, um despautério.

Juro que eu não iria comentar, até agora me contive, mas sabe como é carioca, adora falar mal, gosta de uma turumbamba, é “inventador de tretas”. Então está certo o cara ter um sítio, uma fazenda, dois carrões, um hotel e um restaurante em construção e não comprar nem um pãozinho para o café da manhã? Como diria Riobaldo, “Um fato assim é honra? Ou é vergonha?” E “dou o dito”, nada mais é preciso dizer. Mais tarde, chofrei ele e perguntei ao somítico capitalista, com o perdão da redundância, se além de sábado, domingo e segunda ficaríamos sem pão mais um dia. Com um ar quase debochado ele disse que quando há poucos hóspedes “não vale a pena” dar o café completo, só pão de queijo e bolo. Retruquei que ele pode gastar um pouco do lucro dos outros dias para dar um padrão de serviço, para atender aos hóspedes. Ele disse que é assim que são as coisas e saiu no seu Jeep Compass cor de piriri. E eu que pensava que ele não dava café da manhã aos domingos para ficar com a família. É só para morder o dinheiro até o último cobre.

Não tenho o que fazer porque o hotel em que fiquei das vezes anteriores é precário. Fica em cima de um supermercado, tem quartos com “janelas” em que o que se vê é uma parede a um palmo de distância, não tem estacionamento e o café da manhã, embora seja de segunda a segunda, consta de café na garrafa térmica, um pote de margarina e uma cesta de pães.

Hoje, hospedado no magnífico Pão duro Plaza, Nossa Senhora da Abadia teve pena de mim e me arranjou alguém para conversar, fiquei sem pão e sem queijo mas não sem assunto para esta folha de Urucuia.

Compartilhava comigo o desjejum estilo jacuba sem farinha nem rapadura um outro senhor. Me lembrou o Ricardão: “corpulento e quieto, com um modo simpático de sorriso; compunha o ar de um fazendeiro abastado.” E não é que era mesmo um fazendeiro abastado? O pai tinha fazenda em Minas e no Mato Grosso, mas a família é do interior de São Paulo. Com oito anos, seu W., como irei chamá-lo, montou em um cavalo no meio de bois e vacas e não queria outra vida. Quando ia para a fazenda nas férias, não queria voltar, o pai tinha que arrastá-lo até o carro para retornar à cidade. O velho combina o seguinte: seu W. iria escolher uma profissão e estudar. Depois, se quisesse, poderia virar peão. Seu W. foi dentista a vida toda, mas sempre querendo mexer com fazenda, com gado. Veio a aposentadoria e aí é que começou “seu glorioso périplo”.

Procurou fazendas pela Internet mas achou os preços em São Paulo e Minas abusivos. Ademais, queria terra virgem, sem “vícios de semente”, para “abrir” (desmatar) e preparar o pasto. Foi subindo até chegar na Bacia do São Francisco onde sabia que havia terras inexploradas. Rodou oito mil quilômetros, quase tudo em estradas de terra, mas só viu terra montanhosa e pedregosa, que não servia a seus propósitos. Em uma dessas andanças, ficou perdido e foi parar em uma fazenda toda vigiada, com torres, guaritas e pessoal com metralhadora. Vai que era o acampo do Hermógenes na Jaíba, esqueci de perguntar se os tais homens tinham os dentes afiados a faca.

Havia uma última propriedade a visitar e ele só foi para cumprir a palavra. Ficava a 12 quilômetros do centro de Urucuia. Bingo: terreno plano, pura mata. Mas como ele já estava cansado, ofereceu pagar um preço bem abaixo do que os donos estavam pedindo. Só que eles aceitaram e aí não teve jeito como diria Lalino: “já viu sapo não querer a água?”. Cortou na alta como se fala por aqui. Se eu fosse cabra maldoso, ferino, duvidatório, poderia até pensar que ele engazopou os proprietários, Deus esteja.

Seu W. Já preparou todo o planejamento do desmate (“abertura” ele fala), aprovação do Ibama, passos necessários para obter um financiamento do Banco do Nordeste, que cobra a metade dos juros cobrados normalmente pelos bancos para estimular a ocupação das terras da região. Ele mesmo diz que não tinha dinheiro para comprar a fazenda, pagou dez por cento e o resto à prestação. Seu W. fala em um rompante tão animado que não é difícil ficar calado só ouvindo. Como diria seu Cipriano, meu amigo: o homem é xônado pela criação de gado. Por fora assim, é sujeito agradável, educado, não é biscoito de sebo (outra expressão urucuiana).

Planeja usar métodos científicos para preparar, adubar a terra e plantar um capim rico em nutrientes que permita superalimentar os animais. Pois será uma fazenda de engorda de gado. Diz que normalmente o boi come 30 quilos de massa por dia e engorda cerca de 750 gramas. Planeja que os bois e vacas dele comam 60 quilos de capim por dia e engordem até um quilo e meio. Informa que a média nacional é de meio boi por cada hectare (dez mil metros quadrados). Na sua propriedade, quer subir este número para dez bois por hectare. Não vai comprar tratores e outros equipamentos, que ficam muito tempo ociosos, vai alugá-los. Método, economia, produção e mais produção, isso me

lembrou também seô Habão:

E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo. Pudesse, economizava até com o sol, com a chuva. Estava picando fumo no covo da mão, garanto ao senhor que não esperdiçava nem o átomo dumas felpas. A alegria dele era uma recontada repetição, um condescendido: vinte, trinta carros de milho, ah, os mil alqueires de arroz…”

Habão-Ricardão reclama sem ênfase da dificuldade de conseguir mão de obra em Urucuia, tratoristas, por exemplo. Coitado do pessoal do Sucruiú, nem mais para escravos eles servem. Uma fazenda de gado não precisa empregar muita gente. O homem não parava de falar, eu nem apreciava tanto detalhe sobre a acidez do solo, o sal do gado e a colocação de gesso:

Daí, assim ia sendo que, mesmo sem sentir, o próprio Bebelo se via principiando a ter de falar com ele em todas as pestes de gado, e na boas leiras de vazante, no feijão-da-seca e nos arrozais cacheando, em que os passarinhos de Deus viram em a praga.”

Aquilo para ele não era um assunto, era a sua vida, “homem de raça tão persistente”. Ele devia de fazer obturação e arrancar dente pensando em boi, vaca e pasto.

Eu matutava perguntar, quando a prosa dele gastasse, por que ele e o Hermógenes tinham assassinado o Joca Ramiro, ainda por cima pelas costas. Mas o Ricardão recebeu um telefonema no celular e eu escapei para anotar essas histórias antes que evaporassem da minha mente. Escrever e preparar a aula da noite foi o que eu fiz antes do almoço no posto e da soneca regulamentar.

À tardinha, quando o furor do sol urucuiano já diminuiu um pouco, saio da toca para ir à academia, fazer musculação. Dou azar e sorte de encontrar uma professora fanática que supervisiona cada item da sessão de tortura voluntária. No dia seguinte vai doer tudo como se eu tivesse tomado uma surra de peia e taca, feito o tadinho do Valtêi.

Quase cinco horas, resolvo completar a sessão com uma caminhada a passo firme pela avenida. A essa hora, pode-se andar à sombra das centenas de oitis plantados no canteiro central, árvore bondosa, que com sua cabeleira de folhas black power fornece uma abençoada sombra (carioca, sabe como é, só gosta de sombra e água fresca). Essas árvores são mais folhudas do que as pestanas de Diadorim. Além disso, os passarinhos começam seu happy hour cantante, é um barulhinho tão infinitamente bom que parece até o som do mar batendo na praia (carioca etc).

Só que todo passeio por Urucuia reserva uma surpresinha ou duas. Encontro o simpático carreiro Davi, com a indispensável vara de vaqueiro na mão, conduzindo um carro de boi puxado pela dupla Rochedo e Brinquedo. Logo os três dobram à direita em uma rua perpendicular, na direção do poente e eu bem que tentei tirar uma foto bonita mas não consegui.

Continuando a andar, resolvo dar uma passadinha — olha só que intimidade (sabe como é carioca, folgado que só ele), no meu rio Urucuia, quem sabe para conseguir um belo registro do pôr-de-sol. Cheguei alguns minutos atrasado, a estrela indolente já havia mergulhado no horizonte, mas bem que deixou um rastro de sangue no ar que deu uma foto mais ou menos.

Subo na balsa para conversar um pouco com seu Diomar, que há anos transporta todo mundo de cá pra lá e de lá pra cá do rio. Ele proseia com todo mundo, tem sempre histórias pra contar, mas têm que ser estilo express, porque a travessia da vau do Urucuia dura só alguns minutos. A não ser quando chegam uns desocupados feito eu que não querer ir pra lugar nenhum, só conversar um pouquinho. Desta vez seu Diomar me pergunta se eu conheço cascavel.

Felizmente, ainda não fomos apresentados pessoalmente.

Então dá uma olhada nessa aqui, achada em Urucuia:

E me mostra no celular a foto de uma cascavel de duas cabeças. Eu nem queria avistar, mas não podia fazer essa desfeita. “Eh, o senhor já viu, por ver, a feiura de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel?”

Fico a “esmo”… Como não lembrar do bezerro erroso que o “povo prascóvio” achou que fosse o Demo e “mataram”?

Esse tal de João Guimarães Rosa, essezim, me arrumou mais essa, só pode ser.

P.S: Atenção, Rosinha, caso você esteja acompanhando este humilde diário com o rabo de olho, muito lhe agradeço a “fineza de atenção” e os encontros com Riobaldo, Diadorim, seu Cipriano e agora com Habão-Ricardão. Mas nada de me fornecer o Hermógenes, viu? Porque “à mão, a tiro ou a pau” eu não posso com ele, sou desbriado, “o cachorro lambeu a vergonha” da minha cara. Afinal, o senhor sabe como é carioca, não sabe?

P.P.S: Nem precisa ler isso aqui. Quem manda ser curioso(a)? Como em todos os diários, mesclo minhas bobagens com histórias, passagens e personagens de Grande sertão: veredas. Hoje, em homenagem à turma que comigo lê Sagarana, usei muitos termos retirados da novela “Traços biográficos de Lalino Salãthiel ou a volta do marido pródigo” (ainda há vagas). É uma pequena amostra da opulência da linguagem rosiana. Claro que (também) estou fazendo marketing do curso. Além de todas as alegrias que me proporcionam, são os cursos que patrocinam viagens como essa. E o pãozinho nosso de cada dia, que pelo jeito está valendo ouro. Talvez eu esteja exagerando um pouco, sabe como é carioca.

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Em setembro, NOVO curso Lendo Grande sertão: veredas

Inscrições abertas: marcosalvito@gmail.com – apenas 25 vagas

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