/Diário do Urucuia 028 – Pindura na padaria, feijão inesperado e duelo de contadores – Faixa bônus: Entrevista com Monique Figueiredo Barbosa, gestora da Central Veredas – Parte 1

Diário do Urucuia 028 – Pindura na padaria, feijão inesperado e duelo de contadores – Faixa bônus: Entrevista com Monique Figueiredo Barbosa, gestora da Central Veredas – Parte 1

Diário do Urucuia 028 – Pindura na padaria, feijão inesperado e duelo de contadores – Faixa bônus: Entrevista com Monique Figueiredo Barbosa, gestora da Central Veredas – Parte 1

O dia começou sem o café da manhã no hotel. Na noite anterior o dono deixou uma mensagem de voz avisando que não haveria porque o estabelecimento estava muito vazio e a funcionária responsável tinha coisas a resolver. Eu poderia ir à padaria e colocar meu desjejum na conta do hotel. Preferi improvisar o meu café de acampamento: iogurte com granola, castanhas e baru e também biscoito cream cracker com mussarela. Assim eu evito levar o ramo hoteleiro de Urucuia à falência.

Apesar disso, acordei, como em todos os dias aqui, de muito bom humor. Pois hoje era dia da terceira aula da turma de professores e professoras. Depois da bronca do primeiro dia eles têm sido extremamente pontuais e nossa convivência tem sido muito leve e agradável. Hoje era dia de leitura do resumo da vida de Riobaldo e eles demonstraram muito interesse na história da mesma forma que o pessoal da turma de alunos. Apenas dois dentre eles já leram o livro, curiosamente dois irmãos, um homem e uma mulher. Mas muitos deles demonstraram um forte desejo de atravessar o “Pântano narrativo” e ler Grande sertão: veredas até o final. Espero que eles sejam multiplicadores deste trabalho.

Para isso, primeiro lhes forneci o mesmo material que distribuí à turma de alunos: mais três mapas, além do resumo da vida de Riobaldo. Os professores, todavia, receberam materiais adicionais como um resumo ainda mais detalhado da vida de Riobaldo e um pequeno texto meu sobre a questão da linguagem de Grande sertão: veredas. Todos esses materiais foram colocados em envelopes endereçados também aos professores e professoras que se inscreveram e não puderam fazer o curso. Juntamente com o vídeo das aulas isto proporciona aos que assim o quiserem fazerem “sozinhos” a travessia da obra.

Depois disso, o melhor compromisso do dia: almoço no Bar da Balsa com seu Vanderlei. Ele estava fazendo um “feijãozinho” e eu sabia que ali tinha coisa. Cada vez é de um jeito. Ótimo cozinheiro e homem afeito a aventuras, está sempre inventando algo novo para colocar na panela. Desta vez o feijão era com bucho ou dobradinha. Só de ouvir a palavra já fiquei meio enjoado. Mas depois eu pensei: como eu posso não gostar de algo que não comi? Por amizade, encarei. Enquanto o prato estava quente passei na prova, depois… Mas havia também saladinha e o peixe delicioso de sempre. Só tenho medo do que ele vai inventar de colocar no feijão da próxima vez…

Feito dois velhos boxeadores brincando no ringue, eu e ele ficamos trocando histórias como quem troca golpes. Ele conta uma história de como escapou de ter a moto tomada pela polícia, apesar da moto não ser sua e ele não ter habilitação. O perdão se deu porque estava levando um senhor para comprar remédios. Eu contra-ataco: quando a minha cara de professor otário de óculos fez com que policiais não me parassem numa blitz para sorte minha e do amigo meu que havia comprado duas caixas de cerveja para seu aniversário. Estava com dois ipvas atrasados e acho que eles iriam cobrar uma caixa por cada um. Consigo um trunfo ao contar a longa história de como passei a só tomar café sem açúcar. Aí ele tira da cartola a história do bordel no Pará onde nem ele teve coragem de entrar…

E por aí vai, só não era duelo de contador de histórias porque ninguém queria ganhar, só queríamos um divertir o outro. Jogar conversa “fora”, “perder tempo” é uma maneira de demonstrar amizade, antítese do mundo dos negócios onde tudo tem que ter um objetivo, quase sempre o lucro. O bater papo é o oferecimento de dom e contra-dom com o bem mais valioso de todos: o tempo. Éramos apenas dois coroas de cabelos brancos à beira do fogo rindo de tudo e de todos.

Mas teve uma história que ficou sem resposta. Depois da minha história de quase ter morrido de dengue, seu Vanderlei fala que certa vez um irmão dele, oito anos mais novo, estava para morrer. Há tempos que tinha problemas nos rins, mas agora estava na fase terminal, sem um transplante ele morreria. O irmão morava em Belo Horizonte. Seu Vanderlei se ofereceu, avisando que só queria que lhe pagassem a passagem. A família, entretanto, torce o nariz, dizendo que seu Vanderlei bebia e fumava, decerto não daria um bom doador. Tudo bem.

Mas ninguém aparece e ele vai até Belo Horizonte fazer os exames. Parte da bateria de exames consistia em trazer duas Pets de dois litros com urina no dia seguinte. Seu Vanderlei achou que não seria capaz de tal produção de um dia para o outro, mas bebeu muita água e conseguiu. Ao chegar no hospital, teve que fazer na hora mais meio litro como contra-prova, para provar que o “material” era mesmo seu. Resultado dos testes: ele estava com uma ótima saúde e mais do que aprovado como doador. Nem me falou nada da operação, só algo como “fui lá e fiz”. Diz que seu irmão está bonzinho, até joga futebol. A lógica dele é simples: — Se eu que sou irmão dele não me ofereço, como é que eu vou esperar que alguém se ofereça?

Ele conta a história toda sem fazer drama, sem valorizar o seu ato, apenas como algo que ele tinha que fazer e fez. Mostra a longa cicatriz como se estivesse falando das galinhas ou da cadela que deu cria.

Só mesmo as histórias de seu Vanderlei para salvar este mísero diário 28. Isto e uma ótima entrevista na nossa faixa bônus:

Faixa bônus: Entrevista com Monique Figueiredo Barbosa, gestora da Central Veredas – Parte 1

O artesanato, sobretudo praticado por mulheres, sempre foi uma atividade tradicional no noroeste de Minas. Na década de 90, várias associações foram criadas visando agrupar as artesãs e lhes proporcionar renda. Entretanto, sempre tiveram dificuldades para participar de feiras, para vender seus materiais para outros estados, de uma maneira geral para se organizarem e conseguirem financiamentos.

Em 2002 começaram a ser feitos levantamentos sobre a produção artesanal da região, com a ajuda da Artesol, uma organização da sociedade civil voltada para o desenvolvimento do artesanato brasileiro. Estes estudos desaguaram na criação da Central Veredas em 2007. O papel principal da Central Veredas seria o de agrupar as associações e ajudá-las no controle da qualidade, na precificação e a distribuição ou seja: em tudo aquilo que envolve a comercialização do produto do trabalho das artesãs, gerando renda para elas e suas comunidades.

De início, três associações ingressaram na Central Veredas: Bonfinópolis, Riachinho e Urucuia. Aos poucos, mais seis se juntaram: Natalândia, Uruana de Minas, Sagarana, Buritis, Serra das Araras e Chapada Gaúcha.

No começo, a estruturação da Central Veredas foi possível graças a um projeto da Fundação Banco do Brasil, que forneceu recursos, inclusive computadores não mais utilizados pelo banco. A FBB pagava o salário de agentes em cada uma das associações. Eles auxiliavam em tudo que fosse necessário: desde a limpeza até a elaboração de atas e editais. Ajudavam também no processo eleitoral para escolher a diretora da associação a cada dois anos. Esse foi o tempo das vacas gordas, com tudo funcionando muito bem.

Monique participou de todo este processo desde o começo. Começou como auxiliar administrativa. Já tinha contato com o pessoal da associação de artesãs de Riachinho, onde nasceu, porque sua irmã trabalhava nesta associação. Ou seja, nos últimos quinze anos de sua vida esteve ligada à Central Veredas.

Em 2014, o projeto da FBB se encerra e aí começa o tempo das vacas magras. Os agentes, tão importantes na organização e funcionamento das associações locais, são dispensados, pois nem as associações nem a Central Veredas tinham condições de mantê-los.

Neste momento, a Central Veredas se vê diante da necessidade de ir além do seu papel de comercialização para ajudar as associações no seu gerenciamento, que foi sempre um calcanhar de Aquiles.

Lutando para sobreviver, a Central Veredas passou a se manter à base de editais e projetos aos quais concorre. Antes também colocavam de 10 a 15% no preço do produto, mas isso nunca foi suficiente para garantir pagar as contas, os funcionários e as despesas fixas. Quando entrava, o dinheiro acabava sendo utilizado para ajudar uma ou outra artesã em dificuldades.

Há dois anos que não há abertura de projetos na área de Cultura. Não há verba nem mesmo para o pagamento do salário de Monique, que vem sendo pago pelo pessoal de uma cooperativa amiga, a Copabase, verba que depois terá que ser reembolsada.

Monique conhece feito a palma da mão todas as nove associações. Enquanto houve verba, ela percorria cada um dos nove locais de quinze em quinze dias. No momento, por conta da crise de recursos, há dois meses que não faz essa visita de supervisão e consultoria. Muito calma, ela fala com uma desenvoltura impressionante sobre todos os assuntos relativos à vida desta região. É a dedicação aliada à competência e a uma paixão que transparece a cada frase. Intensidade tranquila é uma expressão que talvez defina a sua personalidade.

A Central Veredas está instalada em um lindo prédio de frente para a praça principal da cidade de Arinos. Mas nem este prédio lhe pertence: está emprestado pela prefeitura de Arinos para servir de atração turística.Seu interior é um tesouro: teares antigos de madeira, caixinhas e até um sofá feito de buriti, mantas tecidas à mão, quadros com bordados à mão, alimentos orgânicos e até um freezer com polpa de frutas da região, que se tornaram o suco diário das crianças das escolas da cidade. É uma visita deslumbrante a um mundo construído por mãos experientes guiadas por saberes tradicionais, que passaram de geração a geração durante muito tempo.

Um mundo que, mais do que nunca, hoje precisa de apoio.

AMANHÃ a segunda e última parte da entrevista com Monique Figueiredo Barbosa, gestora da Central Veredas

P.S: Este diário já estava fechado quando eu recebo um e-mail de um aluno da turma dos professores, Edileison Santos, que me alegra deveras. Sobretudo quando diz: “é muito bom fazer parte da turma e estar aí lendo, ou melhor aprendendo a ler, a obra que passei a gostar demais; até sonhar com os personagens eu sonho… De coração, obrigado.”

Eu é que agradeço, Edileison, que alegria você me deu!

———————————————————————————————

Em setembro, NOVO curso Lendo Grande sertão: veredas

Inscrições abertas: marcosalvito@gmail.com – apenas 25 vagas

Estudantes, professores e moradores de Urucuia e do sertão mineiro receberão bolsa de 50%

———————————————————————————————