Diário de Urucuia 020 – Córrego da Taboca, Breve visita ao Inferno e seu Edinho, guieiro 2.0
Dia mais curto. É que no fim da tarde darei a terceira aula para os alunos-estudantes do curso LENDO Grande sertão: veredas em Urucuia. Vamos terminar de ler e comentar o encontro de Riobaldo com o Menino e a travessia para a outra margem do São Francisco, fato que divide a vida de Riobaldo ao meio. Na aula anterior, foi bonito ver a acolhida deles ao amor de Riobaldo adolescente por Diadorim Menino. Parece que eles rezam pela mesma cartilha que eu de que se é por amor sou sempre à favor. A beleza sublime do texto deve ter deixado em suspense medos e preconceitos. Vamos ver como reagem hoje, quando terminarmos de ler uma das mais belas histórias do livro.
Meu passeio, portanto, hoje tinha que ser menos longo. Tinha ouvido falar no Córrego Taboca e quando perguntei a Mikaele, que trabalha aqui no hotel, ela disse que estivera lá com a família no fim de semana e que era bem bonito. Na Internet vocês vão achar vários córregos com esse nome em vários estados diferentes, porque o nome “taboca” em tupi significa tanto bambu quanto formiga, duas coisas que sempre abundaram em nossas terras. Em urucuiano, me informaram os alunos, significa bambuzal. Mas se colocarem “Córrego Taboca Urucuia” verão um local com pequenas cachoeiras, água cristalina, coisa linda de se ver.
Claro que eu e o burrinho não conseguimos chegar lá. Para quem conhece é sempre muito fácil, a pessoa sempre te diz essas palavras que dão azar: — Não há como errar. Pois é, não conhecem o meu senso de não-direção. Bem que tentamos. Encaramos a pavorosa estrada de terra que vai para Pintópolis, piso todo frisado por máquinas, que faz o burrinho tremelicar como se estivesse com Dança de São Guido ou febre terçã. Claro que liguei o Guglimapi, que jurou saber onde era o tal córrego, mas me abandonou assim que eu me encontrava no meio do nada. O cidadão, a cidadã, não vá confiar que vai chegar aqui apertar o botãozinho no celular e chegar onde quer. O Ueize também desaparece na hora do vamos ver.
Na verdade, até encontramos o córrego, mas não no trecho paradisíaco e sim mais abandonado, embora com alguma beleza, mas sem uma água que inspirasse um mergulho. Caminhei um pouco pelas margens, vi vários pássaros fugindo do bicho homem — no caso euzinho, e depois segui em frente para ver se esbarrava em algo que desse para colocar no diário e embaçar vocês. Ora, como já dizia o grande mestre sambista Wilson das Neves, “Quem não sabe o que procura, acha o que não quer”.
O que encontrei? O inferno na terra: uma carvoaria de eucalipto. Aqui o sertão é transformado em carvão. O senhor está vendo aquela fumaça saindo do forno? Antes era mata, era buriti, era pássaro, era água, era vereda. Bem que eu vi o sinal quilômetros antes com a placa anunciando a palavra odiosa, mil vezes maldita: “GERDAU”. Deixemos que a empresa se apresente:
A Gerdau é a maior empresa Brasileira produtora de aço e uma das principais fornecedoras de aços longos nas Américas e de aços especiais no mundo. No Brasil, também produz aços planos e minério de ferro, atividades que ampliam o mix de produtos oferecidos ao mercado e a competitividade das operações.
Faltou dizer que é uma das maiores destruidoras do Cerrado com suas oceânicas plantações de eucalipto, árvore que exaure o solo e esgota os recursos hídricos, em bom mau português chupa toda a água que há em volta e decreta a morte da natureza. Em 2016, na minha primeira viagem ao sertão com Gustavo e Yan, passamos uma tarde deliciosa com um desses sábios da terra, seu Toco Pequi. Não mais entre nós, ele conhecia e amava todas as plantas e ervas do sertão bem como suas finalidades alimentícias, médicas e espirituais. Seu Toco, naquela calma sertaneja, sorria para nós dizendo: “Eucalipto é tão ruim que no meio dele não dá nem cobra, nenhum passarinho pousa nele”. Passem por um eucaliptal e apurem os ouvidos: é um silêncio de morte. Até o vento desvia do deserto verde.
E ali estava eu mirando aqueles fornos que para mim eram como se fossem “extremas do fim do Inferno…”. E eles falando em “mix de produtos” e “competitividade das operações”. Nem o Diabo saberia vender o Cafarnaum com tanta desenvoltura. Para plantar uma erva do Diabo bem diferente da de Carlos Castañeda eles usam é um mix de dois tratores e um correntão grosso, derrubando e arrancando tudo quanto é árvore do caminho para desespero de pássaros e bichos e insetos e todo o tipo de vida que estiver na frente da “competitividade de operações” desses filhos do Hermógenes.
Mas é o que diz Compadre Quelemém: “Pensa para diante.” E adiante nós fomos, eu e o burrinho. Para minha alegria de menino, vi muito trecho de Cerrado ainda de pé, não sei até quando. Também colhi fotos de duas flores, algo raro por ali. Lamentei uma placa que anunciava, fruto de ignorância, mau gosto ou os dois: “Rancho Capitão do Mato”, com direito a desenho. Curioso foi ver placa para dois lugares que prometiam ser Pesque e Pague. Um ficava “só” trinta quilômetros de terra esburacada adiante. O problema maior da estrada de terra não é a buraqueira. Incomoda, mas levando o barco devagar, tudo bem. O problema é atolar na areia, uma areia fininha, traiçoeira, toda a hora o burrinho dava uma rebolada involuntária. Ficar enterrado nessa areia é o meu temor nesse tipo de estrada.
Depois de dez quilômetros, resolvi voltar, feito o pescador que viu os peixes surrupiarem suas iscas sem morder o anzol. Só que a surpresa melhor veio no final. Vi uma meia-dúzia de vacas andando na estrada na minha direção, o que estranhei. Amarrei o burrinho na sombra, apontei a Nikon e finalmente consegui boas fotos dessa turma tão arisca. Havia um homem numa moto atrás delas. Pensei que estivesse esperando as vacas irem embora para passar. Só que não era isso. Seu Edinho é guieiro 2.0. Ele toca o rebanho de moto e diz que isso nem é novidade: — Agora ninguém nem usa mais cavalo não.
A “cidade acaba com o sertão. Acaba?” Sinceramente, seu Riobaldo, não sei lhe responder, mas o senhor mesmo já disse: “Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legítimo leal, pouco sobra, nem não sobra mais nada.”
Sobra sim. Sobram os meninos e meninas do sertão, “esperança maior”. Sobra esse livro que permitiria refazer o sertão todinho, veredas e buritis, manuelzinhos-da-croa, a flor “casa-comigo”, as tanajuras, os brejos, chapadões, itambés, o pequi, a imburana, a mãe da lua, as araras, o curiango, o macuco, a seriema, a onça cangussú, as cigarras, as cachoeiras, os córregos, os rios, o capim-marmelada, o capim-pubo, o capim-capivara, a anta, o urubu, o gavião, o sabiá-preto, a ema, o veado, o poví, o xenxém, urutu, cascavel, ararambóia, o papa-mel, a ariranha e todas as cores de borboletas.
Só não é preciso recriar o Liso do Sussuarão, nós já temos uma boa ideia de como ele é.
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