/Diário de Urucuia 021 – O princípio do prazer, sabão homérico e cenas dos próximos capítulos – Faixa bônus: até a lua veio

Diário de Urucuia 021 – O princípio do prazer, sabão homérico e cenas dos próximos capítulos – Faixa bônus: até a lua veio

Diário de Urucuia 021 – O princípio do prazer, sabão homérico e cenas dos próximos capítulos – Faixa bônus: até a lua veio

No diário de ontem, optei por centrar o relato no meu passeio matinal pelo Cerrado, sem tocar na terceira aula para a turma de alunos. Nada do que contei aqui até agora é mais emocionante do que ser o guieiro desta turma pelas veredas do Grande sertão. Na sexta-feira, comecei com uma recapitulação do episódio de Riobaldo e o Menino, para que eles de novo transportassem mente e coração para o porto do De-Janeiro. Havíamos interrompido a leitura no momento em que o Menino ordena ao canoeiro que atravesse para a outra margem do São Francisco. O tempo todo tentei fazer com eles deixassem a narrativa lê-los de dentro para fora, projetando o relato em suas vidas e as as suas vidas no relato. É uma turma bem jovem, a maioria tem 15, no máximo 16 anos. Mas já estão totalmente enfeitiçados por mestre Guimarães Rosa. Entre nós já há uma base de confiança mútua e uma rede de afetos que receberia confirmação no dia seguinte. De todas as travessias que faço, a pedagógica é que me afeta mais profundamente, onde depois de estudar e me preparar, o que reina é a intuição: “Meu coração é que me entende, ajuda minha ideia a requerer e traçar.”

Para esses meninos e meninas, volto a ser criança, dramatizo, faço vozes e barulhos, danço e coreografo cada passagem do livro. Cito, o máximo que posso, meus conhecimentos sobre o Urucuia, o vocabulário urucuiano, os costumes. Afinal, é quarta vez que venho aqui. A turma tem um comportamento impecável: chegam na hora, respeitam o horário do intervalo, prestam atenção absoluta, ninguém sequer põe a mão em um celular. Sobretudo, se divertem, gostam da história. Acredito, em sala de aula e fora dela, no princípio do prazer.

No sábado de manhã, a segunda aula da turma de professores. Depois da homérica bronca da semana anterior, todo mundo chegou cedo, apenas uma professora se retardou apenas alguns minutos. Outros, não tantos assim, faltaram, não sei se para sempre. Os que estavam ali, e isso é que importa, estavam com a “gã” de fazer a travessia. Por um lado, é mais fácil dar aula para essa turma, acabo indo mais rápido por não ter que explicar todos os conceitos, como faço com os estudantes. Por outro lado, a minha expectativa comportamental é maior e quando uma professora, a dois metros de mim, saca o celular: — Professora, pode sair de sala para ler suas mensagens, devem ser muito mais importantes do que esta humilde aula. Saiu e voltou. De início meio emburrada. Expliquei à turma que sou um profissional, que a sala de aula é a minha vida, o meu chão. De resto, continuei a brincar como sempre.

Outro momento de tensão. Dois alunos de Arinos, cidade próxima, no meio da aula, me convidam para participar, na outra semana, de uma mesa-redonda com especialistas na obra de Guimarães Rosa. Será na sexta-feira, dia em que dou aula para a turma de jovens. Digo a eles que não quero ir, não sou especialista, sou leitor e eterno discípulo, seguidor, adorador, devoto, use o nome que for. Acrescento que dispenso a companhia de especialistas (uns chatos de galochas) e que acho que palestras não servem para muita coisa. Como é que o sujeito, em sã consciência, vai falar meia hora sobre o Grande sertão: veredas? Ao invés de tentar descrever o que é o mar, prefiro convidar meus alunos a cair na água e enfrentar as ondas. Prefiro o trabalho de formiguinha, no chão da sala de aula, lendo, passo a passo, parágrafo a parágrafo, linha a linha, palavra a palavra.

Por falar nisso, garanti a eles que a leitura daquele belo episódio era uma verdadeira aula de prosa poética rosiana. Ao mesmo em que Riobaldo descobre o que é o desejo e o amor e da necessidade de coragem para as travessias da existência, nós aprendemos como o Rosinha elabora sua teia de metáforas, a maneira pela qual brinca com a linguagem.

Sim, é claro que as palestras também têm o seu papel, não há dúvida. Todavia, depois que me alforriei da universidade, olhei para frente, vi que já estava para lá do início do segundo tempo da vida e pensei: agora só vou fazer o que gosto. Recuso entrevistas (sobretudo para televisão), palestras em geral e convites para artigos a não ser que dê vontade. Só faço o que quero e gosto e só o que gosto muito, tirando lavar louça, pagar imposto de renda e cortar as unhas do pé. E fazer compras em supermercado? Aprecio. Adoro comprar comida, quando vou numa cidade procuro logo avaliar as padarias (recomendo as de São José dos Campos). E por falar em comida, vejam só que bonito. Os alunos estão tendo aulas de reposição da greve aos sábados. E a escola funciona, tem todas as refeições, inclusive café e biscoito nos intervalos. João Pedro, grandão com cara e sorriso de menino, vem me buscar na sala: — Professor, o senhor não vai vir lanchar? O biscoitinho estava bom, o café sem açúcar vocês já sabem…

Por incrível que pareça, depois dessas duas demonstrações de radicalismo insano, sem falar as comparações entre Hermógenes e Bolsonaro, a aula correu bem, os professores e professoras gostaram muitíssimo da história de Riobaldo e do Menino. Como tínhamos tempo, passei a trabalhar com eles um resumo de quatro páginas com os “fatos” mais importantes da vida de Riobaldo. Há, inclusive, a marcação dos trechos que aparecem antecipadamente, fora da ordem cronológica, no que batizei de “Pântano narrativo”. É talvez o momento mais saboroso para eles, a cada item do resumo eu parava e contava as histórias dentro das histórias. Todo mundo gosta de ouvir histórias, essa é a minha “técnica” fundamental. E é claro que o encadeamento cronológico dá-lhes um enorme alívio, sem contar o fato de virem a saber mais ou menos o que acontece no livro antes de lê-lo.

Deve ter sido por isso que não me interromperam quando, em pleno ataque de furor rosiano, estourei em cinco, em dez e em quinze minutos o horário da aula. Juro que sem notar. Dê fé. Minha brincadeira final: dizer que sabia que ninguém voltaria na semana que vem, mas que já havia combinado com o Edileison, um dos alunos, para comparecer e assistir à aula. Porque viera de longe e não deixaria de contar essa história de forma alguma. Se eles virão ou não no próximo sábado, isso é cena para os próximos capítulos.

Quando estava escrevendo este diário, ouvi o carro de som da Assembléia de Deus: “É hoje a grande conferência missionária: “Conheça o Deus dos sinais”. Lamento não comparecer. Só acredito em João Guimarães Rosa. Sou Pastor Missionário do Evangelho Rosiano dos Últimos Dias. Exatamente por isso, também estou sempre à espreita de sinais.

A escola fica sempre fechada, os portões trancados, por norma governamental, para evitar problemas. Até entendo, mas acho que cada aluno ou aluna deveria ter uma chave para sair na hora que quisesse. Escola não pode ser prisão. De qualquer maneira, depois da aula eu ia saindo quando vi o cadeado fechado. Quando me virei para chamar alguém, vi que Samuel, outro estudante, já havia pegado a chave para abrir o portão para mim. Antes disso, ele já havia aparecido no vidro da janela para espreitar a aula, sem falar que Paula, Tatiele e Luana também passearam por ali acenando para mim.

Nessas horas, me sinto como Riobaldo sentado na canoa “de pinto em ovo”, pronto a nascer de novo.

Faixa bônus: até a lua veio

A festa junina, todo mundo sabe, é uma tradição do sertaneja. Sempre achei as festas juninas de escola no Rio muito sem graça, porque artificiais, uma espécie de tradição escolar sem raízes firmes, sem organicidade. Em suma, como se diz hoje, algo fake até meio desrespeitoso com aquela caipirada de butique. Aqui é muito diferente. As comidas da festa junina aqui são as comidas que o pessoal gosta de verdade, que pertencem à vida cotidiana. Em uma cidade deste tamanho a festa junina é local de encontro e antes das verbas do FUNDEB, me explicou uma das minhas alunas professoras, essas festas eram um meio das escolas arrecadarem recursos necessários à sua sobrevivência.

A APAE de Urucuia, que tem uma uma sede que parece nova em folha, também usa esta estratégia e sempre optou por se antecipar e fazer uma festa maína, ou seja, uma festa junina em maio, o mês rosiano por excelência. Chego ainda a tempo de ajudar minimamente com os preparativos. O arraial está uma lindeza, decorado com muita delicadeza e bom gosto. Logo as barracas de comida e bebida, alma da festa, começam a funcionar.

Gosto de jantar cedo e faço minhas escolhas. Primeiro, um pratinho de paçoca: carne misturada com farinha e ervas. Comida de jagunço, que aparece no livro. Estava boa, só achei meio seca e sem pimenta para um filho de baiano. É um alimento pesado, para matar a fome e permitir que eles resistissem horas e horas sem comer, fugindo ou perseguindo alguém. A segunda escolha foi mais feliz: um caldinho de costela com mandioca, um tantinho de cheiro verde por cima, também alimenta e estava delicioso. Também havia pastéis fritos na hora, cachorro quente, galinhada e, como sobremesa maçã do amor e algodão doce. Para as crianças, pipoca colorida.

Aos poucos o pessoal foi chegando e eu confirmei minha hipótese: Urucuia é terra de gigantes. Sobretudo as mulheres são bem mais altas e até mais “fortes” do que o habitual. Confirmei essa hipótese conversando com um casal que mora lá e tem a mesma opinião. A explicação eu não sei, mas se alguém fizer uma média de altura e peso e comparar com outras cidades eu tenho certeza de que isso se confirmará.

Enquanto não começava a quadrilha, Marcelo Rodrigues, o presidente da APAE, também diretor da Cia. Teatral Grande sertão, agradecia sem parar aos comerciantes que apoiaram a realização da festa e dão suporte à APAE. Fiquei bem impressionado, parecia uma lista completa de todo o tipo de casa comercial existente em Urucuia. Também agradeceu ao prefeito e à polícia militar.

Eu estava quase o tempo todo com Judson e Luciana, que também são do grupo teatral, ambos meus alunos. Enquanto Marcelo, que também está fazendo o curso comigo, agradecia e agradecia e agradecia, eu brincava com eles de que estava esperando a hora em que ele iria me agradecer. Pois além dos comerciantes, ele agradeceu também à equipe da APAE, aos conselheiros, aos voluntários. Tudo muito justo e é claro que eu só estava brincando.

Quem veio para a festa foi a lua quase cheia, que estava muito simpática nessa noite, até topou sair na foto. A APAE merece: por conta da pandemia, essa era a primeira festa maína que eles realizavam em dois anos, o que pode ter trazido dificuldades financeiras. O fato é que dava para perceber que o pé da turma estava coçando para dançar. No dia anterior, um dos meus alunos, João Pedro (já mencionado no diário de hoje), não parava de pensar em dançar forró na festa de sábado.

O mais impressionante dançarino que vi foi um tal de João Neto, um ano e oito meses, o senso de ritmo desse pequeno era algo inacreditável, milagroso mesmo. A mãe, que dançava em frente a ele, não tinha a metade da verve bailarina do guri. Fotografei também, seus ingratos. Mas a foto do celular apareceu tremida porque o menino é elétrico.

Chegou a grande hora. Linda, em suas perfeitas imperfeições, a quadrilha dos alunos da APAE, mesclados com alguns professores e professoras. Como a noiva, baixinha e fofa, estava feliz ao lado do seu noivo de quase dois metros. Cada um do seu jeito, com seus problemas e soluções, todos dançavam com alegria. Foi bonito de assistir um pedacinho de mundo bom. Não é tão difícil assim.

Em seguida, as atrações eram Carlos Silva e depois Romerinho dos teclados. Ao microfone, o presidente agradece a todos e fala do caráter inclusivo da quadrilha. Em seguida, anuncia:

— Com vocês, Carlos Silva… Carlos Silva, cadê você… Carlos Silva…

Sem saber o que fazer, olha para mim que estou ali perto e para ter algo o que falar, começa a agradecer a presença do Professor Marcos Alvito que veio do Rio de Janeiro dar um curso sobre Grande sertão: veredas. Eu apenas ponho a mão no peito e faço uma reverência. Mas depois, menino maroto que sou, sussurro para Luciana e Judson: — Não falei que ele ia me agradecer?

Na verdade, quem tem que agradecer sou eu, por mais um dia inesquecível em Urucuia.

Obrigado, Rosinha, obrigado, povo urucuiano!

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