/Diário de URUCUIA 018 – El Lago de Ypacaraí, em busca da cachoeira perdida, as delícias de Riachinho & Faixa bônus: arremesso de pau à distância

Diário de URUCUIA 018 – El Lago de Ypacaraí, em busca da cachoeira perdida, as delícias de Riachinho & Faixa bônus: arremesso de pau à distância

Diário de URUCUIA 018El Lago de Ypacaraí, em busca da cachoeira perdida, as delícias de Riachinho & Faixa bônus: arremesso de pau à distância

1974. Eu era um varapau cabeludo de 14 anos, devorador de romances policiais e ficção científica. Nanda, 11 anos, era a irmã mais doce e inteligente que pode haver. Tudo nos divertia, inclusive as diferenças entre papai e mamãe. Mamãe era sempre trabalho, família, carinho, amor e uma bronca de vez em quando. Papai era mais complexo. Tirando bife duro, não reclamava de nada. Sem dúvida era bom trabalhador e homem de família, mas o amor dele prescindia de abraços e adorava inventar. Sua palavra preferida era “bossa”, no sentido de algo novo, criativo e “bacana” (que vinha em um honroso segundo lugar).

Por isso, quando ele propôs aquela viagem ao Paraguai, mamãe torceu o nariz, o queixo, a sobrancelha e tudo o mais. Não sei como, mas ele conseguiu convencê-la e lá fomos nós embarcar (tenho foto, ó descrentes) em um avião da distinta L.A.P. (Lineas Aereas de Paraguay). Chegando lá… O que isso tudo tem a ver com o sertão? Calma, gente, “Deus é paciência”, já chegamos lá. Papai estava quieto, comendo bem, bebendo de leve uma cervejinha, elogiando tudo e todos, exaltando a hospitalidade nativa.

Nanda e eu, entretanto, sabíamos que era questão de tempo para ele aprontar alguma. Dizendo ter recebido informações precisas de que era o mais fulgurante espetáculo da terra paraguaia, afirmou sem dúvida alguma que tínhamos que conhecer o Lago de Ypacaraí, que era azul, belíssimo, imperdível. Afinal, eram míseros 40 quilômetros de distância, já tinha até combinado com o motorista de táxi. Só que famílias são organismos complicados e houve muito atraso na saída.

O nosso chauffeur dirigia com a pachorra de um goleiro batendo tiro de meta quando o time dele está ganhando e o jogo está no final. E o astro-rei, sempre impiedoso e traiçoeiro, naquele dia correu para se esconder atrás das montanhas, mesmo que o Paraguai praticamente não as tenha. Era uma tragédia anunciada, que finalmente ocorreu. Chegamos sim ao famoso lago, só que o juiz já havia apitado o fim da partida. O sol, esse salafrário, já estava no vestiário. Nanda e eu só não rimos porque seria colocar mais lenha na fúria de mamãe.

Todo esse prolegômeno, admito, é uma preciosa encheção de linguiça. Afinal, não é fácil escrever o diário de um dia em que o mais importante foi o que não aconteceu. Exatamente como nossa tragédia paraguaia. Então vamos lá, tratar dos fatos com crueza inapelável.

Quarta-feira é meu dia de folga, único dia, além dos domingos, em que não estou dando aula. Sendo assim, é um dia em que posso planejar passeios mais alongados. Tinha encontrado dois moços de Riachinho quando atravessei para a outra margem do Urucuia. Eles haviam pronunciado a palavra mágica: cachoeira, jurando que na terra deles havia muitas. Filho de Xangô adora cachoeira e justiça, não sei em que ordem. O Burrinho, por sua vez, andava macambúzio, enciumado com as atenções constantes dadas à Alba Valéria, doido para fazer ao menos uma breve excursão.

Sendo assim, decidi ir a Riachinho, uma cidade com pouco mais de oito mil habitantes e que fica a somente 35 quilômetros de Urucuia. Tem esse nome por causa de um córrego que vem das montanhas e hoje está quase seco, segundo me disse uma senhora. O plano era chegar lá e buscar uma cachoeira, de preferência sem precisar andar quilômetros e mais quilômetros em estradas de terra que fazem a superfície lunar parecer um pano de sinuca. O caminho é tranquilo, quase sem movimento e com bons trechos de Cerrado nativo. A maior emoção, para mim, sempre é passar pela ponte sobre o rio Urucuia. Foi a primeira visão que tive do rio que mudaria a minha vida.

Fiquei espantado ao chegar em Riachinho, um município totalmente voltado para a agricultura e a pecuária. A cidade é acanhada, mas a avenida principal tem um canteiro muito bem cuidado, com um gramado impecável, árvores, flores, bancos para a gente sentar, uma maravilha. Isso contrasta grandemente com a mais horrenda sede de prefeitura que já vi na vida, parece um armazém de arroz pintado de verde. Assim é que deve ser. Há muitos lugares em que a prefeitura é luxuosa e o entorno é miserável. Mas, libriano que sou, pelamordedeus, deveriam alterar pelo menos a pintura.

Na mesma avenida há um bom comércio, com um excelente supermercado, onde pude me abastecer de castanhas de caju e do meu xampu (juro que a rima foi acidental). Uma agência do Banco do Brasil mostra que o município produz riqueza. Há um galpão aberto, em boas condições, para a feira do produtor rural, há uma praça com aparelhos de ginástica, uma quadra de futsal, tudo bem conservado. Tive uma ótima impressão.

E a cachoeira? Pois é, a cachoeira. Perguntando, fiquei sabendo que tinha basicamente duas opções: ou encarava uma estrada de terra de 20 quilômetros ou andava 15 de carro e depois dois quilômetros a pé até a cachoeira. Claro que escolhi a segunda alternativa e o burrinho me levou na direção de Bonfinópolis. A indicação que eu tinha era procurar por uma estrada à esquerda logo depois de passar a segunda ponte.

Logo nos primeiros quilômetros, uma surpresa: à minha direita, em um letreiro vermelho inconfundível, o anúncio: M-O-T-E-L, tão simplesmente. Nem precisa ter nome, porque deve ser o único em um raio de centenas de quilômetros. Riachinho, Riachinho. Alguns quilômetros depois, mais um sinal, um triste sinal da “civilização”: um aterro dessanitário com três ou quatro homens catando lixo. O burrinho até abaixou as orelhas.

No caminho há muitas placas indicando fazendas que só podem ser imensas, porque as sedes ficam a 6, 10, 12 e até a 20 quilômetros para dentro do sertão. Mas há também muitas placas apontando estradas que levam a comunidades rurais, como uma que dá acesso às comunidades Saco da Roça (nome sensacional), Canabrava e São Pedro. É até bom eu não estar em com um 4×4, caso contrário iria me enfiar por tudo quanto é estrada pequena, poeirenta e que não se sabe bem onde vai dar. Deus não dá asa a cobra nem carro grande a carioca curioso.

O Cerrado estava lindo, eu não parava de imaginar como eram essas comunidades enfiadas no Cerrado, mas havia a pergunta que não queria calar: e a cachoeira? Passei a primeira ponte depois de uns vinte quilômetros e andei no burrinho mais uns dez até a segunda. Mas cadê a tal estrada de terra? Ah, deve ser mais adiante um pouquinho. E lá fomos nós, seguindo mais e mais em nosso road movie involuntário. Até que eu tive que admitir que a cachoeira tinha evaporado. É fenômeno conhecido, já relatado por Riobaldo:

O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso…”

Claro que estou fazendo uma brincadeira, citando fora do contexto. Porque no livro, o que ele quer é afirmar uma concepção heraclitiana da eterna mudança, questionando os que acreditam em uma verdade absoluta. Tudo isso já ensinei para os meninos e os professores daqui.

Mas o fato é que eu não iria achar cachoeira alguma. Nunca fui bom para achar, sempre fui melhor para me perder. Aí resolvi me perder com estilo e voltar parando onde desse na telha, para ver, ouvir, sentir e fotografar (sabe o ceticismo desse povo de Foicebúqui) tudo que houvesse pelo caminho.

Foi assim que parei para ver o Ribeirão Riachão, que apesar do nomão, no momento é só uma aguinha desanimada, não tem nem a vivacidade de um corguinho serelepe. Parei para fotografar porteiras, adoro fazer isso e imaginar o que há para além delas, tenho encosto de um espírito transgressor. Duas árvores com lindas flores amarelas, feito duas irmãs morando uma em cada lado da rua, também me fizeram descer para fotografar. Me interessei pelo cartaz anunciando um leilão de gado nelore de uma fazenda toda toda, com o caminho para a sede margeado por majestosas palmeiras. O leilão ocorreu pela Internet, o mesmo lugar que me informou que uma bezerra nelore de oito meses vale quase três mil e quinhentos reais. É só fazer as contas: quantas bezerras dessas custa um deputado, um senador, um presidente? Tem muito fazendeiro com milhares e milhares de cabeças de gado. Eles todos juntos, fazem o Congresso virar um rebanho que não é tocado pelo berrante mas por moeda sonante.

O ponto alto desse retorno foi o Ribeirão dos Confins, com seu canto de água alegre roçando nas pedras (Riachinho, Riachinho). Em Grande sertão: veredas, Riobaldo monta o seu cavalo e foge, assustado ao descobrir que ama Diadorim. Só não vai mais longe porque um corguinho lhe diz não. Fiquei esperando que esse lindo corguinho dos Confins me dissesse: sim, sim. Coloquei o vídeo aqui embaixo, para esse pessoal que não acredita nem em urna eletrônica. Humilde e belo esse Ribeirão dos Confins.

Tá certo, não é nenhum Lago de Ypacaraí, mas dá pra quebrar um galho.

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Faixa bônus: arremesso de pau à distância

Com o diário prontinho e revisado, vou à academia e depois resolvo dar uma passada na vau do Urucuia, ver o meu rio, tirar uma foto do entardecer e, quem sabe, ver se seu Vanderlei tem uma janta qualquer. O Bar da Balsa é um restaurante sui generis. Você liga para lá algumas horas antes e aí é que seu Vanderlei vai providenciar o peixe e colocar o feijão no fogo. Desta vez eu não havia avisado nada.

O encontrei sentado do lado de fora do bar em um banquinho de madeira, aparentemente pensativo. Ao lado dele, uma porção de pedaços de pau (claro que tenho foto):

Boa noite, seu Vanderlei, o que o senhor está fazendo?

Boa noite, carioca, estou espantando as galinhas.

Como assim, as suas galinhas?

Essas mesmo. Quando teve a cheia do rio, que cobriu todo o barranco, eu deixei elas ficarem aqui no terraço. Agora querem montar acampamento aqui, sujam tudo, fazem uma bagunça danada.

E os pedaços de pau?

Quando as desgraçadas tentam subir pra cá eu mando o pau nelas…

Parecendo querer demonstrar isso ele se levanta de supetão e arremessa com incrível rapidez e precisão um pedaço de pau bem grosso na direção de duas temerárias aves… Eu acabara de ver o nascimento de um novo esporte: arremesso de pau à distância.

Mas é para acertar nelas?

Não, mas se acontecer eu faço uma canja.

Nenhuma galinha morreu para a realização deste diário. Não comemos canja, mas um delicioso feijão mulatinho que seu Vanderlei havia cozinhado lentamente, horas e horas no fogão à lenha. Jogamos os ossos da carne para Cibalena, a cachorra, que apesar do nome dá muita dor de cabeça. E ficamos proseando, feito dois urucuianos velhos, ele vindo de Belorizonte, eu de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Conversa boa, sempre desaguada em gargalhadas sinceras, sobretudo versando sobre as aventuras de seu Vanderlei quando jovem impetuoso e encrenqueiro. Contou das suas quatro candidaturas a vereador, todas fracassadas. Em termos, porque sua campanha era encher o carro de eleitores, levar umas garrafas de cachaça e aparecer na casa de um simpatizante pedindo que ele fizesse uma galinha para a rapaziada. Foi preso o mesmo número de vezes, era brigão:

Ainda bem que essa fase passou, diz, rindo.

No final, quando saquei o cartão para pagar o jantar, ele me olhou meio de lado, maroto que só:

Hoje você não vai pagar nada não, carioca. Só o guaraná, mas isso você paga da próxima vez que vier aqui.

Pronto, agora acabou mesmo, podem ir embora. Ou será que vou ter que chamar seu Vanderlei?

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