/Diário do URUCUIA 012 – Rubem Braga, o “Triângulo rosiano” e Elis Regina

Diário do URUCUIA 012 – Rubem Braga, o “Triângulo rosiano” e Elis Regina

Diário do URUCUIA 012 – Rubem Braga, o “Triângulo rosiano” e Elis Regina

Rubem Braga, camisa 10 da nossa crônica, certa vez escreveu uma peça antológica em que, ao invés de se lamentar pela falta de assunto, mandava os leitores às favas e pedia que desaparecessem. Ele era o maioral e podia fazer isto. Este humilde escriba, todavia, tem que se esforçar ao máximo para agradar seus 17 leitores e leitoras. Mas é verdade que há dias e dias.

Queria sempre contar algo de totalmente inesperado. Sei que, de certa maneira, tudo é sempre novo, parodiando Riobaldo “o rio [da vida] é sempre sem antiguidade”. Heráclito assinaria em baixo. Pois ontem eu fui novamente à Vereda da Mutuca, mas a vereda de ontem não é a vereda de anteontem. Cheguei mais cedo, queria ficar sozinho para conversar com os buritís. Já deixei a Nikon de tocaia para fotografar pássaros distraídos. Claro que o garboso casal de araras canindé se retirou das dependências voando com uma classe admirável. A espécie corre o risco de desaparecer e por isso não dão mole pra Kojak (procurem no dicionário de gírias de séculos passados).

É claro que o leitor ou leitora, assisado [sensato] sagaz já adivinhou: Riobaldo e Diadorim apareceram mais uma vez. Diadorim revelou que vão ali todos os dias depois da aula. Ó, vida, ó céus, ó azar, repetiria a hiena do desenho animado, só que não (sim, estou apelando até para desenho animado hoje). Diadorim, sempre ele, conta que seu pai é pedreiro e ele já aprendeu a emassar, colocar tijolo e cerâmica. Quando crescer, para continuar no ramo da construção, quer ser engenheiro. O pai de Riobaldo também é pedreiro, mas Riobaldo diz não saber fazer nada. Quer ser policial, “para proteger as pessoas inocentes”. Mas quando pergunto se é corajoso dá uma gargalhada e admite que não é. Ora bolas, o outro Riobaldo também confessou: “Eu cá não madruguei em ser corajoso”. E a resposta do Riobaldo de Urucuia explica a amizade de Diadorim: ele pode ser um pouco sem iniciativa (no momento), mas parece ter um coração imenso.

Eles moram no mesmo bairro e estudam juntos, sublinha Diadorim com toda a ênfase mostrando os dedos da mão pequena: “— Desde a quarta série!”. Vieram numa só bicicleta, verde como os olhos do Diadorim de Rosa. Embora não estejam ainda no Ensino Médio (cursam o 9o. Ano), resolvi convidá-los para a aula sobre Grande sertão: veredas, afinal houve um bom número de faltas. Riobaldo não dá um pio. Diadorim quer saber que livro é esse, que dia, que hora, em que sala é a aula.

Foi pensando nesses meninos de Urucuia que elaborei o projeto “O Urucuia é o meu rio e o Grande sertão é a minha casa”. Vamos dizer que o cabra ou a cabrita, venha do Rio (1.058 km) ou de São Paulo (1.111) para ver as belezas de Urucuia, as quais como vocês agora sabem, existem, são magníficas. O que ele encontra? Nada. Perto da entrada da Vereda da Mutuca há somente uma placa anunciando a venda de minhocas. Entrando na bela Avenida Tancredo Neves, não há nem uma mísera indicação de onde fica o rio Urucuia. Aliás no vídeo abaixo, uma peça publicitária da prefeitura, a cidade é filmada do alto, com ênfase no prédio do Poder Executivo, é claro. Mas perguntem se o rio que dá nome à cidade aparece. A vereda também não.

Urucuia (assim como outras cidades do sertão), poderia seguir o exemplo do “Triângulo do sertão” (já vou explicar). Por um lado, a literatura de Guimarães Rosa, especialmente Grande sertão: veredas, se tornou um patrimônio nacional e mundial. Há milhares de títulos acerca da obra, montante que não para de aumentar a cada ano, sem falar em filmes, ensaios fotográficos (sobre o sertão rosiano), peças de teatro de grande sucesso (como a versão de Bia Lessa), histórias em quadrinhos, artes plásticas etc. O livro foi traduzido para inúmeras línguas e no momento em que você lê estas palavras a história de Diadorim e Riobaldo poderá estar sendo desfrutada em inglês, francês, alemão, espanhol, italiano, holandês… No mundo todo, acadêmicos oferecem cursos, organizam simpósios, elaboram novas teorias. O interesse que a obra desperta é cada vez maior.

Por outro lado, nas cidades do sertão mineiro, cenário imortalizado pela obra, Grande sertão: veredas é muito pouco utilizado em seu potencial cultural, educacional, artístico, turístico e econômico. Você chega em Itacambira, onde Diadorim foi batizado na belíssima matriz datando do século XVIII e não há uma placa. Pergunta aos moradores e quase ninguém ouviu falar no nome de Diadorim. A mesma coisa em São Francisco ou Januária, cidades citadas dezenas de vezes no livro. Foi o que pude comprovar em minhas viagens.

Como exceções a esta regra eu citaria três cidades do que chamo o “Triângulo rosiano”: Andrequicé (distrito de Três Marias), Cordisburgo (terra natal do escritor) e Morro da Garça. Andrequicé, localidade que é mencionada apenas uma vez no livro, é famosa hoje por ter sido a residência de Manuel Nardy, o famoso Manuelzão, nos seus últimos vinte anos de vida. Embora ele tenha falecido em 1997, parece ser a alma de Andrequicé. Sua pequena e simpática casa virou um museu. Ao lado, o grupo das bordadeiras de Andrequicé faz trabalhos inspirados em trechos das obras de Guimarães Rosa, não havendo turista que resista a comprar uns bordados para a sua casa ou para dar de presente. O Centro Cultural, onde há reuniões, ensaios, apresentações e sessões de cinema, é claro que leva o nome de Manuelzão. E até as campanhas educativas colocam fotos de Manuelzão como chamariz. Andrequicé não tem mais do que duas mil pessoas, contando a população que vive no campo. Mas não há rosiano que viaje para o sertão que deixe de ir lá. Onde se hospeda, faz suas refeições, paga a entrada do museu, compra presentes. Eu mesmo lá estive em 2016 e 2019, deixando minha modesta contribuição pecuniária para o distrito de Manuelzão. Ao contrário de Itacambira ou São Francisco, em Andrequicé não há quem não tenha pelo menos ouvido falar em Guimarães Rosa e em Grande sertão: veredas.

A segunda ponta do Triângulo rosiano é Morro da Garça. Curiosamente, esta cidade nem mesmo é citada em Grande sertão: veredas, mas seu morro parecido com uma pirâmide do sertão está no centro de uma novela de Corpo de Baile: “O recado do morro”. Foi o que bastou para que a secretária de Cultura criasse uma Semana rosiana que ocorre anualmente e congrega apresentações de diversos tipos: encenações de “O recado do Morro”, subida ao Morro da Garça propriamente dito com declamação de trechos da obra de Rosa, palestras com especialistas acerca da destruição do cerrado e sobre temas relativos à obra de Guimarães Rosa. Estive lá em 2015 e vi pessoas vindas de vários locais do Brasil, com predominância para paulistas e mineiros de Belo Horizonte, além de um eventual carioca feito eu. Além disso, recentemente a prefeitura local criou o “Circuito turístico Guimarães” e o festival “Sertão, saber e sabor”.

Por fim, o exemplo mais perfeito de plena utilização da relação com Guimarães Rosa está na terra do seu nascimento, Cordisburgo. O escritor ficaria encantado se caminhasse pelas ruas do burgo onde nasceu. Veria a casa de sua família, onde ficava também o armazém do seu pai, Seu Fulô, ser transformada em um museu extremamente bem pensado e cuidado, hoje o mais visitado do Estado de Minas Gerais. A poucos metros dali, esbarraria na Loja do Brasinha, a única loja do mundo que nada vende, apenas acumula e expõe objetos da vida cotidiana de várias gerações do sertão. Se conversasse com Brasinha, Rosa conheceria alguém que não somente leu toda a sua obra, mas que também visitou todo o sertão rosiano. Brasinha organiza um grupo chamado Caminhos do sertão, que a cada ano apresenta um trecho de uma obra rosiana em um cenário natural para onde as pessoas vão caminhando. Claro que Rosa também adoraria ouvir os debates e apresentações da semana rosiana que anualmente ali se realiza e para a qual são chamados grandes especialistas na sua obra. Ou talvez ficasse encantado em ouvir uma apresentação do grupo Miguilim, composto de pré-adolescentes e adolescentes que recebem uma formação que lhes permite declamar os mais lindos trechos da obra de Guimarães Rosa. É bem possível que almoçasse, glutão que era, no excelente Sarapalha, nome de uma melancólica novela de Sagarana.

Creio que o meu argumento já está claro. Há um enorme potencial a ser utilizado pelas cidades e regiões do sertão mineiro que constituem o cenário do livro. E Urucuia, dentre elas, é uma das que apresenta as maiores possibilidades de desenvolvimento de ações nesse sentido. Este foi o berço de nascimento do projeto. Mas é preciso que o Grande sertão, que nasceu do amor do menino Joãozito por sua terra, retorne ao sertão e a seus jovens, sobretudo.

Elis Regina imortalizou os versos de Aldir Blanc cantando assim: “O Brasil não conhece o Brasil”

Não é possível que o Diadorim de Urucuia nasça, viva e morra sem conhecer o Diadorim rosiano.

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