Diário do Urucuia 032 – Ovo de jacaré, a mulher que não tem medo de onça e Dona Joaquina, a matriarca que gosta de política; Faixa bônus: Segunda e última parte da entrevista com Zezito Guerreiro.
Dia vinte e cinco. Dois e cinco dá sete. Só assim, recorrendo à mística rosiana, para explicar o dia de hoje. Um dia imenso em descobertas. Um dia lindo de tontear e não se acreditar no que se vê. Por isso tirei fotos às centenas. Mas, calma, vamos retomar o balanço do carro de boi para prestar atenção em tudo e não perder nada.
Hoje é que Nilsinho marcou comigo de me levar no Ribeirão de Areia, no sítio do irmão dele, seu Dionil. Acho que não demorou nem meia hora, em um trajeto com uns quinze minutos de estrada de terra daquelas. No caminho fui entrevistando Nilsinho, nascido e criado em Urucuia e com uma trajetória interessante, de garoto levado até vereador e presidente da Câmara de Vereadores. Só que a entrevista fica para depois, prometo, agora tratemos desse lugar em que me senti feito Riobaldo:
“O que é de paz, cresce por si: de ouvir boi berrando à forra, me vinha idéia de tudo só ser o passado no futuro. Imaginei esses sonhos. Me lembrei do não-saber.”
Quando atravessamos a porteira, parecia só um sítio normal: a simpatia encabulada de seu Dionil e dona Ana, as vacas e bois presos no curral, os tanques de criação de tilápia. Nada demais. Isso até Nilsinho se embrenhar por ali afora me mostrando o que nunca vi igual. Tirando o mar, nunca vi um lugar com tanta água. É lagoa atrás de lagoa, a gente até perde o senso de direção. Todas arrodeadas de buritis, alguns fincados no espelho d’água. Para todo o lado, pássaros: Cardeal do Nordeste (aqui Galo de Campina), João de Barro, Quem-Quem (Quero-Quero), Garças, Jaburús (muitos), maitacas e gavião. O céu parecia uma avenida de grande movimento e eles se faziam ouvir sem parar.
Acho até que esse lugar (e outros) tem o potencial para se tornar um sítio a ser visitado por observadores de pássaros, gerando renda para a população local, que se veria estimulada a preservar o meio-ambiente. Claro que seria necessário ter guias falando inglês e uma organização mínima de hospedagem. Não consigo visualizar um turista inglês tomando o banho e sendo obrigado a usar o rodo por falta de box ou tendo colocar suas roupas no chão.
No que me diz respeito, é assim que vivo há um mês, acrescentando que: não tenho cozinha, nem geladeira, nem mesa, e a única cadeira é uma relíquia da Inquisição espanhola. Fora o café da manhã pisca-alerta, hoje sim, amanhã não… E estou trabalhando dia e noite, esgotado, sugado… Mas devo confessar que tenho vivido “na maior felicidade…”, como no samba-enredo do Salgueiro.
Depois, chegamos na origem dessa água toda: o Ribeirão de Areia. O carioca aqui tinha ido de calção de banho, doido para dar um mergulho. Na ida, Nilsinho já havia me assustado contando que mês passado as piranhas atacaram dois homens no Urucuia. Um saiu assustado, mas ileso. O outro perdeu dois dedos da mão. Pois bem, ele já havia me falado dos rastros de um jacaré com uma pata gigante, um bicho que ele avalia ter mais de dois metros que estaria em algum lugar do ribeirão perto do sítio de seu Dionil. Tudo bem, era improvável que o encontrássemos ou, bem pior, que ele nos encontrasse.
O ribeirão é uma graça e, como todos dizem e o nome lembra, é de areia, não tem lama, você pisa e sai com o pé limpinho. Acontece que no caminho encontramos um ovo, bem redondo, parecendo uma bola de ping-pong. Nilsinho foi categórico: — É ovo de jacaré! Ainda argumentei que achava estranho o ovo estar ali, desprotegido, mas ele alegou que o bicho teve uma emergência e abandonou o ovo no chão. Quem é que adivinha o que aconteceu? Logicamente a minha vontade de tomar banho de rio passou na hora. “Viver é negócio muito perigoso” também neste sentido.
Curioso é o comportamento das vacas. Vimos elas serem soltas do curral e marcharem, quase desembestadas, por um corredor entre duas cercas de arame liso. Ao nos verem, todavia, parararam debaixo de um buriti e ficaram comendo os frutos caídos, que tanto servem para ser comidos quanto para artesanato. Tudo no buriti é aproveitado. O fruto pode ser ingerido depois de retirada a fina casca vermelha ou na forma de doce. No livro, quando do cerco da Fazenda dos Tucanos, Preto Mangaba oferece a Riobaldo um pão com doce de burití. O fruto é do tamanho de uma bola de ping-pong. As os bois e vacas têm um baita medo da gente, mas também podem arremeter e carioca, vocês sabem… Nilsinho sabe dizer o que elas estão sentindo pelo jeito das orelhas. A minha Nikon faz um clic gostoso, mas que põe a boizada em alerta, e ele acha que até certo ponto imita barulho de arma, embora seja bem mais baixo. Mas, como minha mãe dizia: “Gato escaldado tem medo até de água fria”.
Gostei muito das fotos que tirei de um cavalo que estava dentro de uma lagoa, ao mesmo tempo se refrescando e se alimentando com plantas que só devem existir na água. Tirei foto de tudo: formiga cortadeira, abelhas com ferrão indo de flor em flor e sem ferrão também (foi o que disse o guia de cego), da vegetação das lagoas, de uma casa de João de Barro, de algumas árvores nativas (Jatobá, Sucupira branca e Sucupira preta) e até do gatinho Fred.
Andamos umas duas horas. Não é mata cerrada, até porque o local todo fica inundado durante a cheia do rio, daí é que vem esse manancial de vida. Mas havia uns trechos de capoeira e como eu estava de calção de banho até me arranhei um pouco. Nilsinho, mais precavido, veio de calça comprida. Mas nós dois estávamos de bota. Se eu fosse dar um conselho a alguém que quer viajar para cá e entrar nos matos e rios seria: compre uma bota. Com calma e paciência, Nilsinho vai me ensinando o nome de cada árvore, de cada planta, de cada pássaro. O Cerrado é o seu quintal.
Voltamos e desfrutamos da doce hospitalidade de seu Dionil e dona Ana. Comemos um queijinho fabricado por eles, fresco todavidaevocêsnãotêmideiadecomoestavabom. Nilsinho bebeu café açucarado. Seu Dionil é um dos três irmãos de Nilsinho. Foi o que não quis estudar (foi até a 6a série) e sim se dedicar à vida na roça. Nilsinho diz que ele raramente vai à cidade e o próprio seu Dionil diz que quando vai fica logo coçando para voltar para a fazenda. Pergunto a ele como ele faz para recolher o gado no curral e ele diz que é tudo gado ensinado, voltam pra comer sal, não dão trabalho.
Ele e dona Ana fazem de tudo: criam gado e porcos, tilápias como já disse, caçam (tatu, por exemplo) e pescam. Ela é exímia pescadora, entra nas lagoas para armar rede, não tem medo de nada. Até onça já matou. Peraí que eu vou contar a história direito. Se costuma colocar uma armadilha no meio do cerrado para onça, com um bezerro funcionando como isca. A onça fica presa, depois é só ir lá e matar. Certa vez, seu Dionil foi lá ver a armadilha e viu uma onça-monstra. A bichona, mesmo presa, tinha enfiado a pata pelo cercado e quebrado a patinha do bezerro. Seu Dionil, quando viu aquilo, ficou paralisado. Dona Ana pegou a espingarda e liquidou com o assunto, ou seja, com a onça.
Foi nessa hora que Nilsinho achou propício contar a eles que tínhamos visto um ovo de cágado, bem que eu tinha achado pequeno, mas quem sou eu para saber o tamanho de um ovo de jacaré. Nilsinho explicou que o cágado enterra os ovos, mas uma raposa deve ter desenterrado. Sabe aqueles episódios do mundo animal em que todo mundo come, devora, mata alguém? É nessa toada.
Mas eu, que não vim para comer nem para matar, fui arrebatado pela visita a esse Jardim do Éden em pleno sertão.
Voltamos e ganhei uma aula e uma conversa de presente. Gravei Nilsinho contando histórias da sua infância na primeira rua de Porto de Manga, que era toda gramada. Fala da igreja, das histórias de assombração, depois vou postar no Facebook. O melhor de tudo: nos levou à casa de sua mãe, Dona Joaquinha. Ali desfrutamos de um almoço caseiro: feijão mulatinho com arroz, legumes cozidos, carne de porco e um gostoso doce de mamão como sobremesa.
Ela foi professora, lembra-se bem de usar a palmatória, mas palmatória inteira, sem furos, porque a palmatória com furos (retratada por Debret como castigo aos escravizados) dói muito mais. O mais interessante é que ela foi vereadora e diz que até hoje gosta de política. Além da sua família, que é grande, conseguia influenciar um bom número de pessoas. Sem comprar votos, coisa que ela diz que acontece muito mas que nunca fez, até porque: “— O sujeito recebe pelo voto e depois vota em quem ele quiser, não é verdade?”
Conta que foi ela que ensinou o atual prefeito a fazer política, a apertar a mão e a dizer o nome das pessoas, a se comportar diante do povo. Deve ser boa professora, porque o sujeito está no quinto mandato e Nilsinho, que a sucedeu, se elegeu vereador quatro vezes. Diz que o tempo de Porto de Manga foi muito bom, mesmo sem energia elétrica, sem água. E que hoje a cidade está muito abandonada pelas autoridades… Ah, se ela pegasse na palmatória, mesmo sem furinhos…
Que ninguém se engane com a doçura desta matriarca. Os filhos dela, fora Dianil que mora longe, vêm tomar café todos os dias na casa dela. As noras pedem a benção, embora estejam dispensadas do beija-mão. Costuma mandar fazer mais comida, sempre aparece alguém para almoçar ou jantar. Hoje, por exemplo, vieram dois filhos e dois netos, sem falar em um carioca. Conversar com ela foi uma delícia. Se eu não estivesse tão cansado teria sacado Belarmino, meu secretário (o gravador do celular) e registrado uma entrevista com ela.
SEGUNDA E ÚLTIMA PARTE da Entrevista com Zezito Guerreiro
Embora esteja focado nos estudos, Zezito participa ativamente da vida do município. Na última eleição concorreu a vereador para que o Partido dos Trabalhadores não fechasse na cidade. E trabalha no Museu Histórico de Arinos, decidido a resgatar a história do município juntamente com o historiador Ricardo Chimba. Todas as crianças em idade escolar visitam o museu e lá aprendem como era a vida dos seus antepassados através dos objetos lá expostos.
Pergunto a ele o que faria se fosse eleito vereador e ele não titubeia: sua atenção seria voltada para a cultura e indo pro lado meio-ambiente também, “mas focado na cultura, em manter ela, em manter a história, porque eu sei que se você tem uma história, você tem uma vida, pra saber como você veio, como você tá, até onde você vai chegar, você sabendo sua história você vai querer evoluir ela.” Por isso gosta de trabalhar no museu, os objetos antigos o ajudam a pensar na história.
Sobre a questão ambiental, é categórico: havia mais peixe, mais caça, mais matas e árvores. Durante um bom tempo fazer carvoaria eram um bom negócio, acabaram com a vegetação para comprar caminhão e outros bens. Toda a hora saíam caminhões de carvão para a siderúrgica de Itaúna, que fica mais ao sul, entre Belo Horizonte e Divinópolis. Quando mudaram a lei para dificultar o desmate, triplicando o valor da multa, o estrago já estava feito: “tudo já virou pasto e quem vai desmanchar o gado de fazendeiro, boi grande, o negócio deles é dinheiro”. A pior coisa é que isso tudo afetou a água. Há exatos 100 anos, o Major Saint-Clair Fernandes Valadares (1871-1848) mandou construir uma lancha a vapor que navegava pelo Urucuia até sua foz, entrando no São Francisco até Pirapora. Hoje o assoreamento impede a navegação fluvial. Os vapores do São Francisco, por exemplo, não funcionam mais, antes iam até a Bahia.
Sobre a questão do racismo, acha que agora a situação está mais calma, mas na época em que estudou se sentiu até um pouco injustiçado. Certa vez “fiz uma confusão danada por causa das palavras que uma professora lá falou” pergunto que palavras mas ele evita dizer “falou umas coisas lá”. Também sentia um tratamento diferenciado, isso não tem 10 anos, estava fazendo o terceiro ano do Ensino Médio. Ainda acontece: “cidade pequena ainda tem o maioral, berço de ouro, eles têm aquela contradição com a cor”. Acha que hoje o colégio trabalha para mudar essa perspectiva. Até porque os negros são a maioria em Minas Gerais, ele lembra.
Dona Geraldina, sua mãe, está viva ainda e estudando, estimulada e apoiada pelos filhos. Pretende fazer faculdade. Irmãos são pastores e pastoras, pai colocou todo mundo para estudar, só um não estudou.
Gosta de todo o tipo de literatura, mas sobretudo de poesia, de todos os estilos. Ia se inscrever para fazer Administração, mas uma menina que o conhecia da escola falou: — Sabendo escrever desse jeito, como é que você vai fazer administração? Aí mudou a inscrição. É difícil mas “vai sair onde eu quero”. Pretende ensinar literatura envolvendo os adolescentes na prática da escrita. No momento certo, se couber, vai mencionar a sua trajetória.
Pergunto a ele o que a literatura pode representar para um menino que vive numa condição difícil e a resposta é linda:
“o desenvolvimento da mente do menino vai ser uma outra coisa, vai ter entendimento, ele vai ver que a própria vida dele pode ser uma literatura, ele vai ver que aquilo que ele tá passando pode ser literatura, pode transformar em literatura depois. A literatura engloba um aprendizado muito grande.
Porque distrai, dá foco de outra visão, sua cultura vai melhorar, seu falar, seu entendimento. Toda a literatura é importante, ela revela um sentido de vida, a vida passada, ela revela o jeito da pessoa lutar, ela engloba tudo. A literatura te dá a base para responder a qualquer pergunta. A literatura abre a mente.”
Este é Zezito Guerreiro, minha gente.
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