/Diário 015 – Biscoito de vidro, a última rua, o cavalo Esquecido e a casa da filha

Diário 015 – Biscoito de vidro, a última rua, o cavalo Esquecido e a casa da filha

Diário 015 – Biscoito de vidro, a última rua, o cavalo Esquecido e a casa da filha

Leitores e leitoras sabem que o café-da-manhã é assunto “de minha certa importância”. “Mire veja”: no sábado não havia pão, nem margarina, nem queijo, nem presunto, nem o divino suco de maracujá da Gilciane. Somente café açucarado, Vôte! E pão de queijo borrachudo, indigno das tradições da terra mineira. Talvez uma forma de preparação para o domingo, quando, todos bem sabem, não há desjejum neste insigne estabelecimento da rede hoteleira urucuiana.

O fato é que acordei e dei meu jeito de atravessar o Liso do Sussuarão da falta de pão. Hermínia, servidora fiel e elétrica, fez um café puro e forte, busquei na matula umas bolachas com requeijão e logo estava disposto a enfrentar o Hermógenes, o Ricardão e o Treciziano. Mas preferi uma travessia mais tranquila e fui à feirinha reforçar o de comer.

O que me sovacava? Nem eram oito da manhã e a feira agrícola estava uma balbúrdia de homens humanos e outros nem tanto comendo e bebendo nas barraquinhas. Será que também não há café-da-manhã lá onde eles moram? Mistérios. Para me fortalecer, comi logo dois pastéis de queijo com suco de maracujá na barraca de seu Catarino e filha. Em outra, Dona Roseli me mostrou com alegria seus tesouros. Para começar o ótimo queijo minas que novamente comprei, vero salvador da pátria alviteana. Só que mais tem: biscoito de queijo, rosca doce, bolo de fubá para acompanhar café após o almoço e um pão de queijo de verdade. A maioria das barracas é de comida, embora haja algumas de verduras, como a de seu Rafael, que com uma vistosa camisa vermelha cuidava com orgulho de suas alfaces bem verdinhas.

Na de Dona Maria e seu Marcos, comprei peta, um biscoitinho comprido, macio que parece ter queijo mas não tem, deve ser por isso que tem esse nome, porque “peta” é mentira. Pergunte ao Machado de Assis, que criou com amigos a “Sociedade Petalógica”: se reuniam para tentar contar mentiras mais espetaculares do que as que eram contadas na sociedade da época. Se fosse hoje, seria tarefa impossível. Mas, para não perder o fio da meada, comprei também o famoso “biscoito de vidro”, que para honrar o nome quebra fácil na primeira mordida.

Começo a encontrar pessoas na rua. Saudei seu Diomar, que tem mar no nome mas passa a vida atravessando o rio na balsa que leva pessoas, animais e automóveis e o que mais houver para a outra margem. De qualquer forma, de folga ao domingo, tomando uma garapa (gente, caldo de cana), ele tem o sorriso de um marinheiro em terra.

Vejo também uma professora, aluna do curso, moça que chegou tão atrasada que a saudei com um “boa noite”. Como ela já estava na feira comendo antes da minha chegada, eu tinha uma piada pronta que não desperdicei: — É, atrasadinha, pra comer você acorda cedo, não é? Ao menos não negou, é tardia mas não é mentirosa. Alvito, o misericordioso, não vai dizer o nome dela.

Com os alforjes cheios, passei novamente no hotel, levado com segurança por Alba Valéria, a majestosa. Não conversamos muito, mas nos damos bem, tanto nas subidas quanto nas descidas. Se eu fosse picareta iria escrever um livro de auto-ajuda para casais com esse tema: Salve seu casamento na montanha russa da vida.

De lá partimos novamente em uma aventura que sempre me imponho quando visito cidades pequenas: descobrir onde moram os pobres, onde são os bairros ou o bairro da classe trabalhadora. Certa vez, em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo, saí da praça principal, atravessei a estrada de ferro, peguei a rodovia e acabei esbarrando numa linda procissão de Nosso Senhor do Bonfim que se iniciava numa igrejinha branca de colocar Riobaldo com inveja. Pois ele bem que Queria ver ainda uma igreja grande, brancas torres, reinando de alto sino, no estado do Chapadão.” Bem aqui na região do Urucuia. Creio que o prédio azul horroroso da Congregação Cristã do Brasil não serve, né s Baldo?

Nossa, vocês ainda estão aí? Hoje estou mais sem rumo do que Riobaldo depois de fugir da casa do padrinho. Mas retomemos essa parlanda. Fui procurar a periferia de Urucuia. Imaginem que Urucuia é um quadrado (não é). Um dos lados desse falso quadrado é a rua Riachinho (homenagem a um município próximo). Até 2020 era uma rua de terra. Atrás dela, há um belo charco, onde imagino uma sinfonia de sapos diante do belo céu estrelado. A maior parte das casas está do lado esquerdo, imagino que seja por causa do sol da manhã. Elas foram estão pelo menos um metro abaixo da rua pavimentada. Espero que isso não cause problemas quando de chuvas fortes, mas isso é raridade por aqui. Só vi uma casa de pau-a-pique, o resto de tijolo. A maioria era de uma simplicidade brutal: “quem mói no asp’ro não fantaseia”. Infelizmente, as portas e janelas de madeira pintada foram substituídas por horríveis peças de metal corrugado. Mas uma ou outra ostentava um jardinzinho com flores. Em termos de árvores, a abundância era maior. Muitas, sobretudo as mais antigas, à sombra de acolhedoras mangueiras, que antes davam ao povoado o delicioso nome de Porto de Manga, coisa que já vimos. Reparei também em um quintal com bananeira e dois com mamoeiros.

Sempre me intrigou o fato de Urucuia ser uma cidade que parece planejada, com uma ampla avenida com canteiro central de onde partem ruas em ângulo reto em um traçado de tabuleiro de xadrez. Um morador me contou o milagre e o santo. O prefeito atual está no seu quarto mandato das sete administrações que a cidade teve desde a criação do município em 1992. Originário do sul de Minas, ele vinha a Urucuia para comprar papagaios, à época abundantes. Foi se tornando conhecido e, não sei como, unido a outro político de Riachinho, eles conseguiram emancipar seus municípios da cidade de São Francisco. Havia poucos moradores no distrito. Ele fez o traçado das ruas, distribuiu os lotes e prometeu aos moradores fornecer água por um ano, prazo suficiente para que as pessoas construíssem suas casas. Adivinhem quem se elegeu prefeito? Alerto que não tive tempo (ainda) de pesquisar a fidedignidade desse relato. Digo apenas que a pessoa que me contou essa história não é envolvida em política, não é um inimigo do prefeito, é de confiança e pela função que ocupou durante anos teve acesso fácil a essas informações.

Caminhando até o fim da rua, encontrei dois rapazes simpáticos a cuidar dos seus cavalos, aprontando-os para um passeio ao “centro”. Por vaidade ou para agradar às moças, eles estavam enfeitando as caudas dos cavalos, estilo trancinha. Thálio tem dezoito anos, se formou no Ensino Médio na escola onde estou dando o curso. Segundo o próprio está “enrolado com uma mulher”. Pablo é mais jovem e a única coisa que enrola no momento são caudas de cavalo. Seu animal, da cor da rapadura, se chama Bambuí, nome de uma cidade mineira, aliás. Thálio não sabe o nome do seu cavalo branco, diz que esqueceu de perguntar ao dono, de quem comprou o animal por “três conto” (três mil reais). Peço licença e fico fazendo carinho no pescoço do bicho sem nome. Vocês sabem que eu não me conformo com isso. Já que ele esqueceu o nome, proponho que o tão simpático ginete seja chamado de “Esquecido”. Pablo ri, forma mineira de não dizer nem sim, nem não, de maneira gentil.

Deixo esses meninos grandes a cuidar de suas montarias e vou atrás de seu Cipriano. De novo? Sim. Ele já havia aprovado o texto, mas agora eu queria lhe mostrar o celular e a foto dele. Não estava em casa, tinha ido para a casa da filha, subindo o morro, subidinha tranquila. Mas antes dei uma passada para me refrescar na vereda e meditar-conversar com o buritizal. Assim alcanço o solo rosiano, uma arara, voando e gritando com o espalhafato de sempre, anuncia para a passarada: — O carioca narigudo metido a fotógrafo está na área.

Na Mutuca, encontro o filho de seu Cipriano que opera o bar e é dono da vereda. É verdade, essa vereda tem dono sim, mas está sempre aberta. De qualquer forma, peço licença. Ele tinha colocado o carro impedindo a entrada de outros veículos, de “gente que nunca ajuda e sempre atrapalha”, rapazes e homens (sempre eles) que vêm com carros equipados com caixas de som ensurdecedoras. Rave na vereda? Sem comentários. E as araras fogem de mim?

A água da vereda está sempre fria, embora não seja muito funda (dá sempre pé) e esteja quase o dia todo sob a luz impiedosa do sol urucuiano. As águas me dissolvem, refundem todas as minhas moléculas e me tornam uma outra pessoa. Um bocadinho melhor, eu acho. Mas não sei de nada nem desconfio de muita coisa.

Descubro que seu Cipriano é um Rei Lear que deu certo: dividiu toda a sua propriedade entre os cinco filhos e ficou só com a casinha mais perto da estrada. Hoje, que é Dia das Mães, está na casa da filha. Como ele disse na nossa conversa, no único momento em que apareceu uma réstia de tristeza: — Todo o meu pessoal morreu: minha mãe, meu pai, minha madrinha, meu padrinho. Depois que Alba Valéria sobe a estrada com alguma ajuda das minhas pernas cansadas, chegamos a uma porteira. Está aberta, mas não tenho muita certeza de ir entrando assim. Medroso abusado, adentro a propriedade.

Seu Cipriano estava na varanda, se balançando na rede, mentira não é, não senhor. Descubro que a filha é a vice-diretora da escola, minha aluna no curso, que lá está com toda a família: o marido e as duas filhas. Ele diz que não vê direito, mas bem que se anima quando eu aumento a foto no celular para ele poder se olhar. Como sempre, nos pés nem mesmo chinelos e sem sinal de camisa, esse homem vive de peito aberto.

Seu Cipriano é o rei que ainda não inventaram: o rei descalço, de pés sempre no chão onde viveu e vive.

O senhor admire: isto é o sertão.