Diário de URUCUIA 017 – A outra margem do rio, a tabelinha Drummond-Paulinho da Viola e a promessa do guieiro
Nada como acordar e ter um café da manhã cinco estrelas (ou quase isso) te esperando: havia dois tipos de pão e até mamão. Pois é, “uma pergunta, em hora, às vezes, clarêia razão de paz”. Por interpelar o dono do hotel no dia anterior é que eu estava mordendo aquele pão com manteiga e uma fatia de queijo. Confesso que já estava até preparado para fazer as malas novamente só não sei para onde.
Calcei minhas botas pois hoje iria atravessar para o outro lado do rio, “queria novidade quieta para os meus olhos”.
Seu Diomar estava, como sempre, bem humorado, ancho sorriso urucuiano. Também, pudera: apesar de ter que puxar aquela corda para atravessar a balsa (eu ajudei, não é leve não), o resto do tempo ele fica pescando ou de prosa. Tem dia que fisga dois, tem dia que fisga doze. Riobaldo afirma ser crença popular que “Urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol ”. O senhor ache e não ache”. O que sei é que seu Diomar, meu amigo, diz que ali já pescou surubim e dourado.
Enquanto ele conversava no celular, fiquei pensando que bom espião ele poderia ser, sabe de tudo: todo mundo e todas as coisas acabam passando por ali. No livro, o barqueiro do São Francisco que atravessa Riobaldo, Diadorim, Jesualdo e Alaripe pede notícias do sertão, parece querer se inteirar do que estava acontecendo.
A balsa funciona de segunda a domingo, de oito às dezoito horas. Mas ele não tem folga, pois em caso de emergência, do tipo uma mulher em trabalho de parto, telefonam para o seu celular. Antes eram dois balseiros e ele diz que vai fazer greve para contratarem novamente mais um na função.
Quando estou atravessando, não deixo de tirar fotos e fotos do meu Urucuia, sempre diferente, renascido em beleza. “Mesmo na hora em que eu for morrer, eu sei que o Urucuia está sempre, ele corre.” Foi ele que me trouxe aqui, nele me batizei rosiano e rosiano sou.
Atravesso para o lado de lá, o lado onde há as fazendas. Chegando na outra margem dá para perceber o estrago que a cheia do final do ano passado fez na mata ciliar: “a cheia vem e tudo escavaca”. Dizem que o Urucuia subiu de 6 a 8 metros. À época, me mandaram vídeos de plantações inundadas, de gado sendo tocado a nadar na água.
Mas essa “destruição” teve um lado bom: subiu o nível do rio, renovou a água de lagoas que haviam secado, coloriu a vegetação, em suma: trouxe mais vida. No ano passado eu e minha filha estivemos aqui em julho, também de bicicleta, mas não conseguimos pedalar (seu Diomar avisou), porque a terra, de tão seca que estava, tinha virado areia fina.
Desta vez, Alba Valéria pode desfilar por todo o caminho, que estava completamente diferente. Em 2021 não vimos sinal de água. Desta vez havia um verdadeiro charco, até com patinhos nadando. Encontrei curicacas, um pássaro de bico fino e bem recurvo que antes só havia visto no Mato do Grosso do Sul, estado onde fica o Pantanal. Nilsinho, que é doido pela fauna e flora do Urucuia, jura que aqui podemos achar todos os pássaros que tem no Pantanal.
Em certo trecho havia um canal com bastante água marcando o fim da pastagem e outro até dividindo duas propriedades. Essa abundância aquática é um paraíso para todos os animais. Em um charco, havia até uma pequena ilha, onde imaginei ver “o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima de rio-abaixo e rio-acima: o que se chama o manuelzinho-da-croa”, símbolo do amor de Riobaldo e Diadorim, encarnação da ternura.
Chego no sítio de seu Zé Geraldo e Natalina, caseiros das terras de um fazendeiro que tem “somente” 400 cabeças de gado. O advérbio se justifica pelo fato de que, ali perto, um sujeito tem 5 mil, 6 mil cabeças. “Chapadão do Urucuia, aonde tanto boi berra”, repete Riobaldo mais de uma vez. Só que o patrão de seu Zé Geraldo, um homem que veio de fora, tem mais três ou quatro fazendas em outros lugares de Minas Gerais.
Fico de olho em um jumento acastanhado, isolado, preso sozinho em um cercado. Seu Zé Geraldo diz que eu posso até passar a mão nele, mas que o bicho é brabo demais com cavalo, sai logo mordendo o pescoço pra matar. Depois de cruzar faz o mesmo com as éguas, tem que tirar elas logo de perto. Mas já fez uma boa tropa de burros que anda por ali. Quer dizer, o jumento é feroz mas não brinca em serviço. Por mim eu colocava nele o nome de “Padrim Selorico”, feito Riobaldo batizou um cavalo que “era meio sendeiro e historiento”.
Quando cheguei no sítio a cachorrada quase vem em cima de mim com aquela falsa coragem típica de cachorro. Eram uns seis ou sete, tudo viralata bonito, bem tratado. Seu Zé Geraldo gostava de cachorro até quando morava na cidade, perto do meu cinco estrelas; mas gosta mais da tranquilidade do campo.
Além de cuidar do rebanho, seu Zé Geraldo planta capim, vendido para servir de alimento ao gado. E haja capim viçoso e alto feito esse. A cheia deu trabalho ao pessoal dali. Os bois tiveram que ser evacuados de caminhão para outra região.
Para ele e a mulher, os dois têm umas galinhas soltas e um chiqueiro com alguns porcos que ele fez questão de mostrar. Os bichos, grandes, sem falar nos leitões, ficam em espaços mínimos, algo como três metros quadrados cada tabique. Fiquei desgostoso, deu amargor. Depois de olhar nos olhos deles, mais tarde no almoço eu pedi dois ovos para acompanhar feijão com arroz e salada.
No varal do quintal, dona Natalina faz carne seca de porco: fica pronta em quatro, cinco dias, segundo dona Natalina, graças ao vigor do sol urucuiano. Para ela e seu Zé Geraldo não é uma questão de gosto, é parte da sobrevivência.
Eles têm também uma hortinha bem útil para cozinhar e fazer uma salada: cheiro verde, rúcula, tomate, pimentão. É bonito ver as mudinhas bem verdes em contraste com a terra escura, decerto adubada.
Seu Zé Geraldo me ensina o caminho até o rio, uma pequena trilha que desemboca em uma canoa a remo. A vontade é subir nela e sair navegando o Urucuia.
Depois sigo caminho, na direção da fazenda onde ele diz que tem muito gado. Ele vem atrás, montado no seu cavalo branco (desta vez eu esqueci de perguntar o nome) e sua matilha de vira-latas, contentes por passearem, correndo atrás de todo e qualquer pássaro que viam no caminho.
Em certo ponto nossos caminhos se separam, ele entra numa trilha à esquerda e fala para eu seguir em frente. No total eu pedalei uns 10, 12 minutos e só vi pasto.
Exceto por um trecho onde um pedacinho de mata foi preservado e era tão gostoso de se estar que parecia o Guararavacã do Guaicuí. Lembrei das palavras de Riobaldo: “o Urucúia — lá onde houve matas sem sol nem idade.A Mata-de-São-Miguel é enorme — sombreia o mundo…”.
Se Drummond dizia que “Minas não há mais”, Urucuia, nesse sentido das matas infinitas, também não há mais.
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Chego finalmente no lugar do pasto onde há algumas árvores “sombrosas” onde vacas e bois descansam “como um açúcar se derretendo no campo”. Quer dizer, descansavam, pois assim que me viram, já de longe, ficaram em alerta. Teve até um bezerro que meio que se escondeu detrás de uma árvore e ficou me olhando de esguelha. É incrível como todos os bichos têm medo de homem humano. Alba Valéria e eu somos sempre saudados por revoadas de pássaros em fuga, como o lindo bando de periquitos que vi hoje. Galos, galinhas e pintinhos se espalham para todos os lados, em desespero. Até cavalos que antes pastavam tranquilos buscam outro rumo.
E foi o que aconteceu com o rebanho bovino. Primeiro dois sentinelas, de pé, um boi e uma vaca, ficaram me espiando, sérios. Depois devem ter dado o sinal à turma: — Lá vem um homem. Foram se levantando e tratando de ir embora para bem longe. Decerto ouviram aquela música que o Paulinho da Viola: “a maldade [da raça humana] não tem fim”. Os bois e vacas, antes de escaparem, olham você nos olhos. Pelo jeito não os convenci das minhas boas intenções.
Os pastos estão cada vez extensos, mas agora não carecem mais de fechos, por toda a parte a terra está cercada com arame liso, as porteiras demarcando a entrada das propriedades, mata-burros para evitar a saída dos rebanhos.
Iniciei o caminho de volta, desta vez sem pedalar, para observar melhor. Avistei aquele que, para mim, é um dos mais belos pássaros do Urucuia, o gavião-caboclo. Fotografei, consegui até pegar ele voando, mas eu estava do outro lado da cerca, meio longe. Depois vou colocar como capa da página uma foto linda que tirei de um à margem do Urucuia.
Ao retornar, “era uma felicidadezinha que eu principiava”, por perceber que de um ano para o outro, com o diferencial da chuva e da cheia, a vida se renova, se recupera, os pássaros voltam, a mata verdeja forte. Por outro, a melancolia de perceber que ainda não inventamos um modelo de conversa com a natureza que não seja baseado na destruição descontrolada. A propriedade privada, já dizia um velho anarquista, é um roubo. Um roubo até mais profundo do que ele pensava. Com dinheiro e um título de propriedade dão direito a devastar um patrimônio de vida que deveria pertencer a todos. Mais de quinhentos anos depois o país vive de vender o corpo e a alma da terra. É a pergunta de Drummond sempre ecoando: “E agora, José?”
“A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero”. Por isso eu me alegro tanto ao ver todos os meus alunos da turma de meninos e meninas retornarem para a aula, desta vez sem atraso nenhum. Começamos com uma recapitulação na forma de uma folha com sete dicas para ler Grande sertão: veredas. Fico feliz quando alguns deles topam ler os itens da folha e o fazem bem. Em seguida, saltando o “Pântano narrativo” vamos direto para o episódio de Riobaldo e do Menino em sua travessia do São Francisco.
Insisto, usando exemplos do texto, na noção de ambiguidade essencial para entender o texto: o de Janeiro é nome do rio, mas também significa o episódio primeiro da vida de Riobaldo, o “primeiro fato”, como ele define. A passagem de suas águas claras para a imensidão de águas turvas e vermelhas (como o sangue) do São Francisco configuram o desafio da passagem da infância tranquila para os desafios da vida adulta, onde “carece de ter coragem”. Mostro que Rosa escreve numa falsa prosa, que deve ser lida com atenção poética. Procuro exemplos que sejam próximos da experiência deles, de meninos e meninas de Urucuia. Eu mesmo leio, lentamente, explicando os termos mais difíceis, dando uma entonação dramatizada. Como expliquei, apontando para o peito de um aluno, o texto deve ser lido de fora para dentro e depois, de dentro para fora, com o coração, deixando que Grande sertão: veredas faça aflorar as suas próprias questões, as suas emoções, a sua própria vida.
É uma turma atenta e dedicada, o que eles não compreendem, desconfiam. Olho para eles, carinhas de criança em corpo de gente grande. Minha vontade, refreada, é de dar um abraço em cada um. Não é o conhaque, Drummond, nem a lua, mas estou “comovido como o diabo”. Por mais que a canoa do entendimento balance, eles têm brio e acreditam que vão fazer a travessia para a outra margem. Ah, vão, esse guieiro promete, mas não vai ser a porrete não.
Além dos jovens, há também duas mulheres adultas completando o Ensino Médio, ambas na casa dos quarenta. Uma delas, ao final da aula, me diz entusiasmada: — Agora já sei o que vou fazer, vou cursar literatura!
Doutor, por acaso o senhor já viu nascerem rosianos em botão?
Como diz Riobaldo: “tudo neste mundo podia ser beleza”.
Isso sim é que seria alcançar a terceira margem do rio.