/Diário de URUCUIA 019 – Não me convide pra churrasco. Especular ideia e descanso de paz. Faixa bônus – Ueize prascóvio

Diário de URUCUIA 019 – Não me convide pra churrasco. Especular ideia e descanso de paz. Faixa bônus – Ueize prascóvio

Diário de URUCUIA 019Não me convide pra churrasco. Especular ideia e descanso de paz. Faixa bônus – Ueize prascóvio

Não gosto de homem no geral. Só de uns e uns, no varejo. Não é culpa de papai, não, ele nunca me bateu e até o sabão era dado na maior categoria, aquele vozeirão dele, mas sem altear, sem insultar, só corrigindo. Amo meu pai. Mas o fato é que ao longo da vida fui desenvolvendo uma ojeriza profunda pelo bicho homem macho. Olho para eles, sobretudo reunidos em bandos, não posso deixar de pensar nas palavras de Riobaldo:

Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d’Outro, o Muitos-Beiços, o RasgaemBaixo, FacaFria, o FanchoBode, um Treciziano, o Azinhavre… o Hermógenes…”.

Não me convide para churrasco que não vou nem na ponta do sabre. Não suporto bar cheio de homem aproveitando a desculpa do álcool para que eles possam finalmente se abraçar e expressar apreço através da forma enviesada da jocosidade: — Vem cá, seu desgraçado, me dá um abraço, seu corno. Bando de homem reunido só nos maracanãs, cantando juntos, abraçados. Mas isso só ocorre porque estão unidos pelo ódio aos homens que estão fazendo o mesmo do outro lado.

Homem, no geral, é competitivo, quer aparecer, se destacar, não sabe trabalhar em equipe. Até porque homem só funciona à base do elogio, o ego inchado implora por isso. Melhora com a idade? Depende. No geral, vejam bem, no geral, homem não amadurece, apodrece. Eu também sou homem, por isso não tenho a bondade e a compreensão necessárias para entendê-los e perdoá-los. Todo preconceito é ruim, é verdade. Mas esse é meuzinho, de estimação. Do mesmo jeito que Riobaldo, “não sou amansador de cavalos”.

Por isso, imaginem só eu chegando para tomar café-da-manhã tão cercado de homens quanto o bando de Zé Bebelo na Fazenda dos Tucanos. Tudo “homem de firma” como diz meu cunhado: trabalhadores de empreiteiras que prestam serviço para a prefeitura, representantes comerciais de firmas diversas, sempre de macacão ou camisa pólo com o brasão da empresa. Bom dia, até que o pessoal diz. Depois, só aquele silêncio, feito saloon de filme de faroeste, todos esperando para ver quem vai sacar primeiro. O cidadão caixeiro-viajante de uma fábrica de sucos senta em frente a minha pessoa sem um “com licença”, sem o reforço de um “bom dia”. O patrão colocou um café caprichado: dois tipos de pão de queijo e até pão doce tem para agradar os cacundeiros. Mikaele, que não é boba, põe e repõe as coisas do café mas não fica dando sopa, sai logo da sala, é moça jovem e escaldada.

Louco para me livrar da descompanhia deles, descomi meu café em tempo recorde. Estava terminando o diário anterior e por isso cheguei lá pelas sete da manhã, com o café já iniciado. Amanhã não vou dar essa chance para o azar. O senhor não pense que é só homem bruto, sem educação que é assim. No calabouço acadêmico, que frequentei por décadas, vi “coisas que as minhas carnes chegam a tremer” (Paulinho da Viola). Hermógenes? Mil e mil eu conheci, capazes das “maiores ruindades calmas”, na busca alucinada por reputação, fama, poder e uma bolsa de pesquisador do CNPq. E algumas das maiores gentilezas de que desfrutei vieram de amigos da favela de Acari, um lugar com um dia-a-dia difícil, marcado pela necessidade e pela violência. “Mire e veja”, não estou dizendo que é da “natureza” do homem, claro que tudo isso tem raiz histórica e sociológica. Mas, na prática…

Naquela sala do café, daria para ter uma boa conversa com cada um deles, mas quando se vêem reunidos… Dois dias antes, por exemplo, chegou um rapaz moreno, de bigodinho, disse bom dia e se dedicou ao café da manhã como se estivesse estudando uma planilha. Cacei uma prosa com ele, cerquei o bicho de tal maneira que ele teve que conversar comigo. É de Buritis e a família dele mexe com pecuária (termo que usou). Confirmou minha tese dos espiões bovinos, disse que em todo o grupo de bois e vacas, nem todo mundo se deita, sempre ficam um ou dois para a defesa. Trabalha para um banco privado concedendo crédito agrícola, avalia que o banco é muito generoso, concede empréstimo sem estudar bem. Explica que no caso dos pequenos agricultores têm alguns que pegam o dinheiro para comprar carros, são loucos por ter um. Tá vendo? Bem que tivemos um colóquio, mas em todo o tempo o cabra não contou um caso, não forneceu um sorriso. Homem.

Reparem, no Grande sertão: veredas, Diadorim empreende uma verdadeira missão civilizatória visando adequar Riobaldo a seu gosto. Ainda meninos, ensina o filho de Bigrí a apreciar os trabalhos, as flores, os cágados ao sol no de Janeiro. Mais tarde, na vida de jagunços, faz Riobaldo perceber a beleza graciosa dos manuelzinho-da-croa, símbolo de par amoroso com seus beijinhos de biquinquim. Estimula o amigo a tomar banho, a fazer a barba, a ter asseio, pois, como Riobaldo diz anos depois: “Seja, o senhor vê: até hoje sou homem tratado. Pessoa limpa, pensa limpo.” Haja Diadorim para civilizar os Riobaldos deste mundo, transformá-los em homens humanos.

Mas voltemos ao sertão, perdoem a prosa “entrançada”. Depois do café fui dar uma caminhada na enorme avenida principal, ainda era cedo. Cansado do breganejo que impera em toda a parte, apontei meu Spotify para AlvitoRock e fiz meu protesto barulhento ouvindo o bom e velho rock’n’roll sem usar fones de ouvido. O burrinho, que até o passeio de ontem estava sofrendo de abstinência roqueira, me pediu que eu espalhasse o seu evangelho musical: Rolling Stones, Bob Dylan, Traffic, Led Zeppelin e outros santos. O meu contentamento aumentou ao saber ontem que o nome da avenida não é mais Tancredo Neves (com todo o respeito) e sim João Guimarães Rosa. Vocês podem ter lido Guimarães Rosa, mas eu caminhei na avenida João Guimarães Rosa. Tão vendo como homem é competitivo?

Depois da caminhada, um bom banho quente e a decisão de aproveitar os “prazos” e “a folga que me vem”. Decido passar o dia “sem pequenos dessossegos”, norange rede”. É que ontem o burrinho percorreu quase cento e cinquenta quilômetros atrás de uma mirífica e desencontrável queda d’água. Por isso vou cozinhar o galo e engazopar vocês com observações pseudo-sociológicas sobre Urucuia e os urucuianos. Nas palavras de Riobaldo, vou “especular ideia”.

São apenas duas observações. Para começar, uma cidade do tamanho de Urucuia funciona mais ou menos no modelo que a tribo dos antropólogos chamou de sociedades-face-a-face, em que todos estão permanentemente na presença de todos. Todos se conhecem, todos estão de alguma forma relacionados. Vou atravessar a balsa, esbarro no irmão de Nilsinho, Diomar. Atravesso para o lado de lá, seu Zé Geraldo conhece cada um que eu menciono. Estou caminhando na avenida, encontro o menino Thálio e seu cavalo de cauda decorada. Vou comer hamburguer e a dona do estabelecimento é amiga de infância de Marcelo, da Cia. Teatral Grande sertão. Passo por uma rua um dia, dou boa tarde para a senhora que vigia um menino bem pequenino mas que já é um Ayrton Senna da bicicleta. Dois dias depois ela lembra de mim. Na academia, a professora me deixa entrar sem checar matrícula, quem é que tentaria dar um golpe desse para a cidade inteira ficar sabendo? O hotel se chama Plaza, mas experimente falar isso: é melhor ir dizendo logo que você está “lá no Betim”.

É claro que tudo tem vantagens e desvantagens. Como na época da favela de Acari, o “calor humano” é maravilhoso, você não dá dois passos sem encontrar alguém conhecido, sem saudar alguém, sem parar para conversar um pouquinho. Outro dia, em Paris, um fotógrafo famoso teve um ataque e ficou no chão durantes horas e horas até morrer por hipotermia. Mesmo que Urucuia fosse gelada, aqui ele não ficaria cinco minutos deitado na calçada até alguém socorrê-lo. Por outro lado, os grupos deste tipo tendem a funcionar à base da reputação e da honra, os vínculos pessoais sem dúvida acabam por fortalecer os mais poderosos. Todo mundo sabe quem são os filhos e os netos dos homens mais ricos e de maior posição. O aspecto relacional é muito forte, aqui impera o “homem cordial” de Sérgio Buarque, em sua dupla dimensão. Uma dificuldade que tive foi ter que recusar pedidos que feriam a ordenação prevista para as turmas. Tinha professora que queria ficar na turma dos alunos, outra queria que o filho frequentasse a turma dos professores. A regra está em segundo ou terceiro plano, em primeiro lugar vem a relação.

Imagine que você seja bom trabalhador, não cometa nenhum crime, respeite todas as normas, seja educado e gentil. Mas se você não criar a sua rede de relacionamentos não vai prosperar, nem no trabalho e nem na vida. Tudo que você fizer acabará sendo avaliado e julgado pelo grupo. Ontem seu Vanderlei me contou que certa vez apoiou um candidato a prefeito que perdeu. Imagino que como cabo eleitoral ele tenha sido vigoroso como sempre. O candidato dele bobeia, ou, nas palavras dele “dorme de botina” e perde a eleição. Pois bem, diz ele: “tive que ficar sem sair de casa quinze dias, se botava o pé fora da porta o pessoal começava: — Fumeiro! [que tomou fumo, perdeu].” Essa jocosidade reafirma o laço de amizade: “eu só brinco com quem é amigo”, diz ele, mas é uma corda que também não pode ser esticada demais.

Um dos piores aspectos da sociedade face-a-face é que os transgressores ou que são vistos como tal têm a pior das vidas. A cidade grande dilui, uma cidadezinha concentra o preconceito, torna as minorias alvos fáceis. Hoje, na pelada de crianças de dez anos na praça, o menino gordinho aterrorizava o coleguinha aos brados: — Tua mãe não gosta de homem, tua mãe dorme com mulher! Os gritos ecoaram pela rua e não tiveram resposta. Porque não eram xingamentos, eram acusações. Nem consigo imaginar a vida de um homossexual ou de uma mãe solteira como deve ser.

A segunda e última observação decorre da primeira mas apresenta outra faceta. A proximidade significa também uma menor distância física e social (embora não em termos econômicos, é óbvio) entre ricos e pobres. Não há escolas particulares em Urucuia, todos frequentam as mesmas escolas públicas e no caso do Ensino Médio, a única escola pública que vem a ser a Antonio Esteves dos Anjos onde dou minhas aulas. Sendo assim, filhos de ricos e pobres partilham as salas de aula e se conhecem desde pequenos.

Claro que os mais ricos às vezes enviam os filhos para Brasília ou Montes Claros fazer o Ensino Médio ou faculdade. Mas isso depois de completarem quase dez anos de escola comum. Não há condomínios exclusivos, nem bairros inteiramente ricos ou pobres. Até os mais sem recursos moram em uma rua normal da cidade, as mais distantes da avenida oito ou nove quarteirões somente, as últimas de terra batida mas com casas ainda razoáveis, embora simples. Todo mundo anda a pé ou de bicicleta, sem falar dos que andam a cavalo. O carro só é usado em certas ocasiões, mas dentro da cidade quase não é preciso. Mesmo assim, se o dono do hotel tem dois carrões, Mikaele, a moça que prepara o café e arruma os quartos, tem uma motinha verde com a qual também pode passear pela cidade, ir e voltar do trabalho.

Estou há mais de duas semanas aqui. Apesar dos pequenos desconfortos do acampamento, apesar da falta dos meus filhos e da minha gatinha Ilha, apesar disso tudo, estou apreciando deverasmente. Não só a experiência pedagógica, ou o conhecimento da realidade sertaneja, mas também o viver em uma cidade completamente diferente. Andar sem medo pelas ruas, conhecer todo mundo pelo nome, viver fazendo pequenas brincadeiras (mandei a foto de ontem para seu Vanderlei com a legenda: “fotógrafo captura flagrante de atleta olímpico atirando pau à distância”), tudo isso dá “um descanso de paz”.

Não há coisa melhor do que ir andando pela rua e um homem (apenas um) de repente olhar pra você com um “bom sorriso”, dado de coração, falando:

Ê, carioca, tudo bão?

Tudo bão!

Faixa bônus – Ueize prascóvio:

Eram só quatro da tarde e eu já havia tirado soneca, elaborado um episódio do Urucuia podcast e preparado a aula de Grande sertão: veredas para o Bando Diadorim. Havia tempo e resolvi praticar meu esporte preferido: a vagabundagem em grande estilo. Eu e Alba Valéria atravessamos a cidade e enfrentamos a estrada de terra que vara o sertão. Pouco depois havia uma estradinha à direita muito convidativa e lá fomos nós. Segundo as meninas que encontrei no caminho, essa trilha margeia a fazenda Porção de Manga. Tentei fotografar umas vaquinhas mas fugiram de mim, exceto uma, opa, é um garrote, um touro novo, que veio para perto da cerca com cara de poucos amigos. Estava protegendo seu harém feito o touro Calundú de “O burrinho pedrês”. E se a onça fugiu, como é que eu não haveria de bater em retirada? Filmei sim.

Menos de cinco minutos de pedalada e mais um pequeno caminho, mais fechado e misterioso. Descobri um cantinho guararavacânico, cheio de mata, árvores altas (para o Cerrado), nada de plantação nem dessas vacas fujonas que não querem sair na foto. Um recanto tranquilo toda vida, que “acenava para” mimum fino sossego sem notícia”. Fiquei espantado e andei “a meu esmo” como diria Riobaldo. Sonhos de preservação da natureza. Ali eu estava “isolado no mundo” como no samba de Alcides, malandro histórico da Portela, cantado por Monarco e depois por Zeca Pagodinho. Nem esse Ueize prascóvio seria capaz de me localizar. Já sei, não acreditam, não é? Lá vai o vídeo então, seus hereges.

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Em setembro, NOVO curso Lendo Grande sertão: veredas

Inscrições abertas: marcosalvito@gmail.com – apenas 25 vagas

Estudantes, professores e moradores de Urucuia e do sertão mineiro receberão bolsa de 50%

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