/Diário do Urucuia 035 – Em busca das corujinhas, os professores abrem o coração, todo mundo merece o peixinho do Vanderlei

Diário do Urucuia 035 – Em busca das corujinhas, os professores abrem o coração, todo mundo merece o peixinho do Vanderlei

Diário do Urucuia 035 – Em busca das corujinhas, os professores abrem o coração, todo mundo merece o peixinho do Vanderlei

Este dia inesquecível começou de modo estúrdio (termo muito utilizado por Riobaldo e que significa bizarro, extravagante, esquisito). Desci para tentar tomar meu café pisca-alerta e me surpreendi com a mesa completa, apesar de ser sábado, dia em que o Habãozinho costuma economizar “porque tem pouca gente e aí não compensa o que cês paga de diária”. Logo entendi o motivo da decência repentina. Atrás de mim sentou um moço, barbudo, socado de carnes, com tanta fome que antes de café e pão já devorava a tela do seu computador. Sentou o bumbum (com certeza avantajado) na cadeira de ferro como se não houvesse ninguém na sala. Mesmo assim, virei e lhe ofereci o meu bom dia. Ele retribuiu que nem o sujeito que devolve às crianças a bola que caiu no seu quintal: de má vontade e sem olhar. Fiquei sabendo que ele era um neo-carioca vindo para fazer um survey da região para instalação de um serviço não sei qual. Foi o que disse a outros. Disse também que só tomava café sem açúcar. Adivinhem? Nosso Habãozinho se fez de gentil e mandou passar um café sem doce (como se diz por aqui, obrigado, Edileison) para o tão ilustre hóspede. Eu fiquei pasmo, porque era o meu trigésimo-segundo dia no estabelecimento sem que tal me fosse oferecido. Habãozinho lambe-botas de Ricardão, faz todo o sentido.

Mas isso não perturbou meu humor, foi apenas uma observação lateral. Pois eu tinha uma nobre missão logo de manhãzinha: tirar uma foto das corujas buraqueiras que vira no dia anterior. Foi fácil achar o local, eu tinha marcado uma casa em frente da qual ficava o refúgio delas. Só que as corujinhas não estavam lá, não senhor. Tirei uma bela foto do buraco onde elas vivem. Me pareceu bem acolhedor. A próxima vez que vier em Urucuia vou me hospedar lá para escapar do Habãozinho e de sua sovinice deplorável, sem falar no rodo depois do banho.

Tudo isso é só aquecimento para o verdadeiramente importante: o último dia de aula do curso LENDO Grande sertão: veredas em Urucuia para os professores. O guieiro estava atacado. Não se contentou em ajudar a entender o texto, em propor interpretações possíveis. Do nada, talvez elétrico por ser o último dia dele no curso e na cidade, se pôs a fazer observações críticas sobre a lógica do capitalismo a partir do exemplo de Riobaldo. Pois ele não vende a alma ao Diabo e sim à riqueza, ao poder, à posição social. O Demo lhe toma o mais vai lhe doer, a vida de Diadorim, seu grande amor, impedindo-o de atirar, de dar ordens, de gritar para manifestar seu desespero. Assiste impotente ao abraço mortal do Bem contra o Mal, ao Diabo na rua no meio do redemunho. O guieiro não poupou nada, nem ninguém, mas sempre com uma raiva doce, de quem se importa, de quem gostaria que esse sertão não estivesse sendo devorado dia e noite pelo capetalismo.

Hoje, uma surpresa: essas maravilhosas senhoras da cozinha prepararam um lanche mineiro completo, com peta, pão de queijo, bolo de aipim e de cenoura e café. Para minha emoção (que disfarcei com brincadeiras) fizeram uma pequena garrafa térmica com café sem açúcar. Me senti condecorado com a ordem de cidadão urucuiano, abracei a garrafa como se tivesse ciúmes dela.

A parte mais relevante da aula foi o momento em que os professores foram instados a fazer uma avaliação do livro e do curso. Eram doze e apenas um havia lido a obra. Duas professoras até revelaram que tinham ojeriza do livro, pois haviam tentado e chegado à conclusão de que o autor era maluco, não dava para entender aquilo de forma alguma. Agora, depois do curso, pretendem ler. Outros professores também haviam tentado e desistido, um na página 12 (duas vezes), outra na página 70, ambos sem conseguir ultrapassar o “Pântano narrativo”. — Mas agora nós sabemos que existe o Pântano narrativo, vamos ler até depois dele, disse a professora Marley, de Arinos. A mesma professora salientou que “o linguajar do livro é o linguajar dos nossos antepassados”, impressão que já havia sido apresentada por dona Leodina, cozinheira da escola e que foi referendada por vários dos professores presentes. E mais, disse que há pessoas de algumas regiões do sertão que ainda usam “esse linguajar”. Aponta que agora se tem um caminho “com tudo isso aqui”, apontando com o material didático. Ela queria que o curso continuasse, se aprofundasse e vai propor aos outros professores de Arinos que façam um grupo de leitura.

A professora Giselha havia começado sem conseguir ler o livro, um pouco pela questão da linguagem mas sobretudo por causa do “embaralhamento cronológico”. Diz que agora está conseguindo ler e que pretende ir até o fim. Ricardo Ximba, misto de historiador, professor e radialista, rubro-negro até morrer, comenta que o mais relevante para ele é o aprendizado do tempo de leitura: “não é um livro que se lê, lendo, é um livro que se lê conversando, dialogando”. Diz ter ficado orgulhoso quando vê que o livro cita rios, locais, fauna, flora e costumes da região. Para ele o livro reforça a identidade, ele se sente pertencendo à história. Vê o cotidiano (ainda hoje) do sertão ser espelhado em Grande sertão: veredas. É ele que está à frente do grupo que quer me levar para Barra da Vaca (hoje, Arinos) no próximo ano.

Outra ponto levantado também pela professora Marley foi o quanto é difícil o final do livro em termos emocionais, pela necessidade de encarar esse “amor que nunca seria realizado”. Ninguém insistiu tanto nesse ponto quanto a professora Gislene. Diz que o livro a emocionou muito por tratar bastante da morte. Recentemente ela perdeu uma filha de 32 anos. É um exemplo doloroso de como o livro nos lê, nas nossas alegrias e tristezas. O seu desespero em busca de conseguir “uma explicação” lembra Riobaldo, inconformado revisitando toda a sua vida no “range rede”, sem nunca estar satisfeito com as respostas. Tem certeza de que o livro será “para a sua vida”. Leninha quer ler até a última página. Conversando com sua mãe, concordaram que é o linguajar das pessoas de tempos atrás. Para ela a leitura é “conseguir viajar na história” e muitas vezes ela conseguiu fazer isso. Lembra que isso do “redemunho” estava presente na vida deles quando crianças. Para ela, a história de Riobaldo nos lembra que “a vida é feita de escolhas e, às vezes, por medo, a gente não escolhe o que a gente tem que viver”. A professora Celia tem fé de que agora vai conseguir ler o livro que tenta ler desde 1990, instigada pela série da TV Globo com Bruna Lombardi e Tony Ramos. Detalhe: Bruna Lombardi tem um pequeno grande livro sobre a experiência que teve no sertão: Diário do Grande sertão.

Quando chegou na minha vez, confessei que também tinha muitas dificuldades com o livro. Que achava até que era um objeto enfeitiçado, pois quando o abria ele sempre se transformava, era sempre outro. Por isso, cada vez que o lia era sempre a primeira vez. É um livro perigoso: envolvente e infinito não prende a gente somente até a última página e sim por toda a vida.

Seria injusto não assinalar os comentários favoráveis e os agradecimentos que os professores e professoras me fizeram, mui generosamente. Guardo-os comigo com carinho e alegria, mas não precisam ser explicitados aqui.

Para encerrar, uma outra brincadeira. Todos teriam que apontar, em uma só palavra, o que mais gostaram no livro. Eis o resultado:

infinito (dois votos)

ázigo (único)

crescimento

aprendizado

curiosidade

amor (dois votos)

conhecimento

Escolhi “Menino”, apontando para o episódio da travessia inicial de Riobaldo, metáfora maior acerca da coragem necessária para viver uma vida de aprendizagem.

Em seguida, festa que ninguém é de ferro. Fomos todos comer peixinho no bar do seu Vanderlei. Foi quase todo mundo, apenas duas professoras, com obrigações administrativas, ficaram na escola. A comida fez sucesso, vieram também Judson e Luciana da Cia. Teatral Grande sertão. Pensei que seis anos atrás eu me batizava rosiano nas água do Urucuia bem ali em frente. No meio da conversa descontraída, os professores reforçaram a ideia de que muita coisa da infância deles aparece no livro, inclusive o Romãozinho, que é mencionado por Riobaldo e que era usado pelas mães como em outros lugares se usa o bicho-papão: — Se comporta senão o Romãozinho vem te pegar. E disse mais: quando viam um redemoinho de vento, os pais usavam o indicador para fazer uma cruz e afastar o mal, denotando a presença cotidiana do Demo na vida dos moradores do sertão.

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Quando tudo terminou, fui dar um abraço em seu Vanderlei, que estava cercado por uma jagunçada braba, era uma multidão de uns cinco homens, Vôte, esconjuro, Deus esteja, minha Nossa Senhora da Abadia me dê proteção. Seu Vanderelei contra cinco? Aposto nele e dou dois torresmos de vantagem.

Tinha acordado muito cedo, mas ao voltar para o acampamento resolvi não sonecar. Queria dormir por volta das 20 horas para poder acordar às 3 da manhã no dia seguinte. Primeiro dia do retorno.

Vocês acham que acabou? No bolso do colete ainda tenho mais uma surpresa: vou atender a um pedido que o Rosinha me fez em Belo Horizonte.

Já que falamos em Bruna Lombardi, não percam as cenas dos próximos capítulos.

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Em setembro, NOVO curso Lendo Grande sertão: veredas

Inscrições abertas: marcosalvito@gmail.com – apenas 25 vagas

Estudantes, professores e moradores de Urucuia e do sertão mineiro receberão bolsa de 50%

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