FONTES PARA A SALA DE AULA # 014: A Era do Automóvel (fragmento)
Natureza e data do texto:
Crônica de João do Rio um dos pseudônimos do jornalista e escritor Paulo Barreto (1881-1921), um agudo e lúcido cronista das transformações do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX. Foi publicada originalmente em 21/6/1908 com o título “Automóveis” em A Notícia e posteriormente no livro A vida vertiginosa, em 1911. É simplesmente a crônica de abertura do livro, já que para ele o automóvel é o símbolo e o instrumento de transformação da época, marcada pela ânsia de velocidade, da simplificação, da objetividade na perseguição dos objetivos.
“E, subitamente, é a era do Automóvel. O monstro transformador irrompeu, bufando, por entre os escombros da cidade velha, e como nas mágicas e na natureza, aspérrima educadora, tudo transformou com aparências novas e novas aspirações. Quando os meus olhos se abriram para as agruras e também para os prazeres da vida, a cidade, toda estreita e toda de mau piso, eriçava o pedregulho contra o animal de lenda, que acabava de ser inventado em França. Só pelas ruas esguias dois pequenos e lamentáveis corredores tinham tido a ousadia de aparecer. Um, o primeiro, de Patrocínio, quando chegou, foi motivo de escandalosa atenção. Gente de guarda-chuva debaixo do braço parava estarrecida como se estivesse vendo um bicho de Marte ou um aparelho de morte imediata. Oito dias depois, o jornalista e alguns amigos, acreditando voar com três quilômetros por hora, rebentavam a máquina de encontro às árvores da rua da Passagem. O outro, tão lento e parado que mais parecia uma tartaruga bulhenta, deitava tanta fumaça que, ao vê-lo passar, várias damas sufocavam. A imprensa, arauto do progresso, e a elegância, modelo de esnobismo, eram os precursores da era automobilística. Mas ninguém adivinhava essa era. Quem poderia pensar na influência futura do automóvel diante da máquina quebrada de Patrocínio? Quem imaginaria velocidades enormes na carriola dificultosa que o conde Guerra Duval cedia aos clubes infantis como um brinco idêntico aos balanços e aos pôneis mansos? Ninguém! absolutamente ninguém.
– Ah! Um automóvel, aquela máquina que cheira mal?
– Pois viajei nele.
– Infeliz.
Para que ele se firmasse foi necessária a transfiguração da cidade. E a transfiguração se fez: ruas arrasaram-se, avenidas surgiram, os impostos aduaneiros caíram, e triunfal e desabrido o automóvel entrou, arrastando desvairadamente uma catadupa de automóveis. Agora, nós vivemos positivamente nos momentos do automóvel, em que o chofer é rei, é soberano, é tirano.
Vivemos inteiramente presos ao automóvel. O automóvel ritmiza a vida vertiginosa, a ânsia das velocidades, o desvario de chegar ao fim, os nossos sentimentos de moral, de estética, de prazer, de economia, de amor. (…)
O meu amor, digo mal, a minha veneração pelo automóvel vem exatamente do tipo novo que ele cria, preciso e instantâneo, da ação começada e logo acabada que ele desenvolve entre mil ações da civilização, obra sua na vertigem geral. O automóvel é um instrumento de precisão fenomenal, o grande reformador das formas lentas.”
Fonte: RIO,João do. Vida vertiginosa. São Paulo:Martins Fontes, 2006. pp. 7-9.