/Na verdade, lado a lado com o preconceito, a modinha era adorada

Na verdade, lado a lado com o preconceito, a modinha era adorada

O sucesso de Ricardo Coração dos Outros

Natureza e data do texto:

Passagem do romance O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, escrito em 1911. A personagem central da obra, o funcionário público Policarpo Quaresma, tenta aprender violão com seu amigo Ricardo Coração dos Outros – o qual seria um retrato do famoso Catulo da Paixão Cearense. Fica claro, neste trecho, o baixo conceito desfrutado por aqueles que faziam música popular, no caso, a modinha. O romance é ambientado na década de 1890, com ênfase no período de Floriano e da Revolta da Armada (1893-4).

Ver texto anterior. Nesta passagem, esboça-se uma contradição: embora o violão e a modinha fossem estigmatizados, Ricardo Coração dos Outros fazia sucesso crescente e acabava por ser requisitado a tocar na casa de pessoas “respeitáveis”.

Texto:

“Acabava de entrar em casa do Major Quaresma o Senhor Ricardo Coração dos Outros, homem célebre pela sua habilidade em cantar modinhas e tocar violão. Em começo, sua fama estivera limitada a um pequeno subúrbio da cidade, em cujos ‘saraus’ ele e seu violão figuravam como Paganini e a sua rabeca em festas de duques; mas, aos poucos, com o tempo, foi tomando toda a extensão dos subúrbios, crescendo, solidificando-se, até ser considerada como cousa própria a eles. Não se julgue, entretanto, que Ricardo fosse um cantor de modinhas aí qualquer, um capadócio. Não; Ricardo Coração dos Outros era um artista a frequentar e a honrar as melhores famílias do Méier, Piedade e Riachuelo. Rara era a noite em que não recebesse um convite. Fosse na casa do Tenente Marques, do doutor Bulhões ou do ‘Seu’ Castro, a sua presença era sempre requerida, instada e apreciada. (…)

Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da alta sociedade suburbana. (…)

Ricardo, depois de ser poeta e o cantor dessa curiosa aristocracia, extravasou e passou à cidade, propriamente. A sua fama já chegava a São Cristóvão e em breve (ele o esperava) Botafogo convidá-lo-ia, pois os jornais já falavam no seu nome e discutiam o alcance de sua obra e da sua poética…”

“Ricardo Coração dos Outros morava em uma pobre casa de cômodos de um dos subúrbios. Não era das mais sórdidas, mas era uma casa de cômodos dos subúrbios.”

“Chegou a vez de Ricardo. Ele ocupou um canto da sala, agarrou o violão, afinou-o, correu a escala; em seguida, tomou o ar trágico de quem vai representar o Édipo-Rei e falou com voz grossa: ‘Senhoritas, senhores e senhoras’. Parou. Concertou a voz e continuou: ‘Vou cantar ‘Os teus braços’, modinha de minha composição, música e versos. É uma composição terna, decente e de uma poesia exaltada’. Seus olhos, por aí, quase lhe saíam das órbitas. Emendou: ‘Espero que nenhum ruído se ouça, porque senão a inspiração se evola. É o violão instrumento muito… mui…to ‘dê-li-cá-do’. Bem.’

A atenção era geral. Deu começo. Principiou brando, gemebundo, macio e longo, como um soluço de onda; depois houve uma parte rápida, saltitante, em que o violão estalava. Alternando um andamento e outro, a modinha acabou.

Aquilo tinha ido ao fundo de todos, tinha acudido ao sonho das moças e aos desejos dos homens. As palmas foram ininterruptas. O general abraçou-o, Genelício levantou e deu-lhe a mão, Quinota, no seu imaculado vestido de noiva também.”

Fonte: BARRETO,Lima. O Triste Fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d. pp.26-27; 121;