Samba e Estado Novo
Natureza e data do texto:
Passagens do livro Os morros cariocas no novo regime, escrito pelo jornalista Henrique Dias Cruz e publicado em 1941. Trata-se de uma obra encomiástica, verdadeiro louvor ao Estado Novo e a Getúlio Vargas. Apregoa inúmeros progressos que o “novo regime” teria proporcionado às favelas da então capital e a seus moradores. Afirma, entre outras coisas, que os malandros haviam se transformado em sambistas…
A – O surgimento e a transformação do ‘malandro’ (em sambista)
“Dando baixa, os soldados, pela falta de trabalho, que constituía crise séria na época, continuaram na colina. Surgiu, então, o ‘malandro’, pejorativo profundamente injusto para homens que queriam trabalhar e não tinham onde, como ainda mais injusto o prêmio para brasileiros que acabavam de dar o sangue pela pátria.
O qualificativo ‘malandro’ corrompeu-se com o tempo. Agora designa o indivíduo esperto, que não se deixa iludir, e, também, não se lamenta, salvo quando a cabrocha abandona o ‘barraco’…
Não é mais pois, o malandro, homem da desordem, que agride, que mata. A navalha e o revólver foram substituídos pelo pandeiro, pelo violão, pelo cavaquinho. É tangendo esses instrumentos que ele ‘desacata’. Aquele tipo clássico, de calças largas e inteiriças, de salto carrapeta, chapéu de banda, desapareceu, civilizou-se. No lugar do lenço, a gravata. Não senta mais à beira do barranco para compor sambas. Vem para a Avenida. Vem fazê-los à mesa do Nice. Usa roupas de bom alfaiate.
A transformação foi completa. E explicável. Facilmente explicável. Valorizou-se a música popular. Habilidades foram aproveitadas. O povo canta. Os salões repetem. Dão sua arte, seu talento à poesia, à música popular, nomes de realce. O povo, que é sempre justo, aprecia, sente no interessante ‘argot’ das trovas musicadas, nos queixumes e nas alegrias dos cancioneiros ‘do morro’ toda a policromia da própria vida que passa na simplicidade da verdade, que dia a dia nos depara.”
B – A vingança do homem da favela: a música
“O homem das favelas, agora, vinga-se, zomba batendo chapéu de palha e tangendo o ‘pinho’, orando à luz da lua, cuja luz entra pelos buracos do zinco, iluminando todo o ‘barraco’…
A bondade dos que governam influe, reflete-se direta e profundamente na consciência popular.”
C- “SAMBA – A GÊNESE DESSA CANÇÃO POPULAR” (que para o autor não nasceu na favela)
“Mulata da Baía… saias de renda… requebros…
Daí, talvez, o atribuir-se ao morro a origem do samba, nestas terras. A gente do morro só se preocupou com esse ritmo depois da ‘gente da cidade’ haver composto alguns sambas.
(…) Em linguagem africana é queixume como adoração. E do rito Jurubana, da Macumba, que, na Baía, tem grande divulgação. Foi do grande estado nortista, que o recebera do Congo, ainda na sua primitiva barbaria. A terra do Sr. do Bonfim soube, porém, condimentá-la para mandá-lo de presente aos cariocas…
O ambiente do morro renovou, revificou, mesmo, essa canção popular. Também na terra do angu deixara os ‘terreiros’ das ‘macumbas’ e fora para as folganças do povo. Tornou-se um amálgama de coisas de ‘candomblê’ e carnaval. Chiste, mofina, sátira.
Qual samba que não tem esses ‘condimentos’ ?
Ilustrando ainda mais a origem, os afrólogos explicam que a ‘chula’ integra o samba. Aquela dansa, movimentada, quente, buliçosa, que os palhaços dansavam com as pernas em arco, era um dos números de maior sucesso nos circos de cavalinhos. O ‘clown’ que melhor dançasse a chula era o preferido da platéia. Benjamin de Oliveira, o mais velho dos palhaços vivos – 70 anos de idade e mais de 50 de picadeiro – foi exímio dansarino de ‘chula’.
Era natural, ritmo popularíssimo, melodia fácil – o carnaval é disso um exemplo – o samba, em que se falava tanto de ‘malandro’ e ‘malandragem’, que o homem do morro, por fatalidade atávica, dele fizesse música caracteristicamente sua.
Chiquinha Gonzaga, Sinhô, Eduardo Souto, os velhos, Ari Barroso, Freire Jr., os novos, como outros autores da melodia tão popular nunca moraram na Favela. Nem uma só vez – quem sabe ? – subiram os caminhos tortuosos e escorregadios que vão dar na ‘Pedra Lisa’ ou no ‘Grotão’ …
Foi Sinhô quem compôs o primeiro samba no Rio. Entre todos, esse compositor era o melhor. Era o que mais flagrantemente sabia aproveitar os motivos populares. Eduardo Souto é mais músico que trovador, na verdadeira compreensão do termo. Chiquinha Gonzaga só mandava, na maioria, para o povo suas músicas admiráveis através do teatro. Mas Sinhô fazia tudo na rua, entre o povo. Numa mesa de botequim, numa noite de boêmia, compôs ‘Malandragem’, dos seus maiores sucessos. Sucesso tão grande que serviu de tema para outros inúmeros sambistas sem igual inspiração.
O primeiro samba, em que se falou da Favela, nasceu de um processo em que o saudoso compositor traduziu toda a angústia dessa gente. Realmente, o prefeito Carlos Sampaio pretendeu dar a esse morro o mesmo destino que dera ao do Castelo.
Pois sim! … O poeta, então, cantou:
Minha cabrocha
A Favela
Vai abaixo
Isso é obra do despeito
Da flor sumítica
E amarela.
Essa ‘flor sumítica e amarela’ era o ‘homem da cidade’…
Maus políticos, os que iludiam a consciência do povo, esses tinham, no samba, o verdadeiro ‘tribunal popular’. Fosse qual fosse. Muitas marchinhas carnavalescas e não carnavalescas valeram mais, muito mais do que vários discursos de esbofados oradores, quer os pronunciasse na antiga Cadeia Velha, quer no velho palácio do Conde dos Arcos.
O povo sabe bem o que quer…”
D – Bamba:
“Samba lembra ‘bamba’, que se atribue, igualmente, à Favela. É da mesma origem africana. Em livros de assuntos afro-brasileiros encontramos páginas inteiras sobre o ‘bamba’. É nacional do Congo. Significa homem muito forte, destemido, agressivo mesmo. Lenda deveras interessante. E ao valente de verdade se aplica bem essa denominação. É um gigante e, cada passo que dá, anda uma légua…”
E – Verdadeiramente do morro é a batucada [pernada], que é diferente do samba
“Do morro, legitimamente, é a batucada. O samba é dolente. Arrastado. Preguiçoso. Mas a batucada é ação, agilidade, destemor. Ela foi preocupação máxima dos antigos capoeiras. Um batuque, quase sempre, valia por um duelo de morte. Tinha tôda a rudeza da maldade, da sanguinolência. Essa herança o tempo desvirtuou, apagou-lhe a selvageria. Tornou-se mero divertimento, em que o homem do morro mostra não só habilidade coreográfica, como destreza, vigor físico.
Forma-se uma roda. A mulher também entra. (Há algumas que batucam melhor do que os homens…) Os tamborins, pandeiros, recos-recos e a popularíssima cuíca fazem a cadência, acompanham o cantor que tem como que orgulho de si mesmo. Os parceiros, um a um, experimentam os da roda. Fortes joelhadas. O corpo bamboleia. O mais forte, o mais ‘bamba’ o substitui no meio do círculo. É assim, corre toda a roda. Horas e horas seguidas, sem cessar, a batucada enche o ar com a sua cadência, as suas canções.
Hoje, a batucada é a maior atração do carnaval da Praça Onze. De todos os morros, de todas as favelas descem grupos festivos, fantasiados, cores alegres, mulheres de saias vermelhas, azúes, verdes, muito rodadas, muitos colares, balangandãs…
Todos esses batuqueiros reunem-se no ‘salão de festas da Favela’, durante quatro dias e outras tantas noites. Ordem absoluta. Prazer imenso. Constituem essas festas, até, número de turismo dos mais admiráveis e admirados.
O Govêrno faz bem. É festa legítima do povo. E só é alegre quem é feliz.”
Fonte: CRUZ,H.Dias. Os morros cariocas no novo regime – notas de reportagem. Sem indicação de local ou editora. Datado de 1941. (livro encontrado na Biblioteca Nacional)