/Lima Barreto e o coronelismo

Lima Barreto e o coronelismo

Lima Barreto e o Coronelismo

Natureza e data do texto:

Passagem do romance de Lima Barreto Recordações do escrivão Isaías Caminha, de 1909. O personagem central tem um tio que foi capanga de um coronel, tendo como tarefa eleitores ou até mesmo perpetrar execuções. O tio foi aquinhoado com o emprego de carteiro e ainda goza de certa “gratidão” por parte do antigo chefe. Em nome disso o coronel aceita pedir a um deputado que acolha o sobrinho do seu capanga no Rio de Janeiro. Aqui temos a teia de dependência, favores, ilegalidade e violência claramente delineada.

“Gostava dele [o tio de Isaías Caminha]. Era um homem leal, valoroso, de pouca instrução, mas de coração aberto e generoso. Contavam-lhe façanhas, bravatas portentosas, levadas ao cabo, pelos tempos em que fora, nas eleições, esteio do partido liberal. Pelas portas das vendas, quando passava, cavalgando o seu simpático cavalo magro, com um saco de cartas à garupa, murmuravam: ‘Que songamonga ! Já liquidou dois…’

Eu sabia do caso, estava mesmo convencido de sua exatidão; entretanto, apesar de minhas idiotas exigências de moral inflexível, não me envergonhava de estimá-lo, amava-o até, sem mescla de terror, já pela decisão do seu caráter, já pelo apoio certo que nos dera, a mim e a minha mãe, quando veio a morrer meu pai, vigário da freguesia de ***. Animara a continuar os meus estudos, fizera sacrifícios para me dar vestuário e livros, desenvolvendo assim uma atividade acima dos meus recursos e forças.

Durante os dois anos que passei, depois de ter concluído humanidades, o seu caráter atrevido conseguia de quando em quando arranjar-me um ou outro trabalho. Desse modo, eu ia vivendo uma doce e medíocre vida roceira, sempre perturbada, porém, pelo estonteante propósito de me largar para o Rio. Vai Isaías ! Vai !

Meu tio ergueu a cabeça, passou o olhar demoradamente sobre mim e disse:

– Fazes bem !

Acabou de tomar o café, pediu o capote e convidou-me:

– Vem comigo. Vamos ao coronel… Quero pedir-lhe que te recomende ao doutor Castro, deputado.” (…)

“Durante quarenta minutos, patinhamos na lama do caminho, até à casa do Coronel Belmiro. Mal tínhamos empurrado a porteira que dava para a estrada, o vulto grande do fazendeiro assomou no portal da casa, redondo, num longo capote e coberto de um largo chapéu de feltro preto. Aproximamo-nos.

– Oh! Valentim! fez preguiçosamente o coronel. Você traz cartas? Devem ser do Trajano, conhece? Sócio do Martins, da Rua dos Pescadores…

Não senhor, interrompeu meu tio.

– Ah! É seu sobrinho… nem o conheci… Como vai, menino? Não esperou a minha resposta; continuou logo em seguida:

– Então, quando vai para o Rio? Não fique aqui… Vá… Olhe, o senhor conhece o Azevedo ?

– É disso mesmo que vínhamos tratar. Isaías quer ir para o Rio e eu vinha pedir a Vossa Senhoria..

O quê? Interrompeu assustado o coronel.

– Eu queria que Vossa Senhoria, senhor coronel, gaguejou o tio Valentim, recomendasse o rapaz ao doutor Castro.

O coronel esteve a pensar. Mirou-me de alto a baixo, finalmente falou:

– Você tem direito, Seu Valentim… É … Você trabalhou pelo Castro… Aqui pra nós: se ele está eleito, deve-o a mim e aos defuntos, e a você que desenterrou alguns.

Riu-se muito, cheio de satisfação por ter repetido tão velha pilhéria e perguntou amavelmente em seguida

O que é que você quer que lhe peça ?

– Vossa Senhoria podia dizer na carta que o Isaías ia ao Rio estudar, tendo já todos os preparatórios, e precisava, por ser pobre, que o doutor lhe arranjasse um emprego.

O coronel não se deteve, fez-nos sentar, mandou vir café e foi a um compartimento junto escrever a missiva.

Não se demorou muito; as suas noções gramaticais não eram suficientemente fortes para retardar a redação de uma carta. Demoramo-nos ainda um pouco, e quando nos despedíamos, o coronel abraçou-me dizendo:

– Faz bem, menino. Vá, trabalhe, estude, que isto aqui é uma terra à-toa com licença da palavra, de m… O Castro deve fazer alguma coisa por você. Ele foi assim também… O pai, você o conheceu, Seu Valentim?

 

Sim, coronel, disse meu tio.

– … era muito pobre, muito mesmo… O Hermenegildo, o Castro, quis estudar. Nós… nós, não, eu, principalmente, que era presidente, arranjei-lhe uma subvenção da Câmara… E foi assim. Hoje, acrescentou o coronel imediatamente, não é preciso, o Rio é muito grande, há muitos recursos… Vá menino!”

Fonte: Recordações do escrivão Isaías Caminha [1909], cap. I.