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Lucrécio Barba-de-bode: um cabo eleitoral violento na Primeira República

Lucrécio Barba-de-Bode

Natureza e data do texto:

Passagem de A Numa e a Ninfa [publicado em folhetim em 1915], de Lima Barreto (1881-1922)

“O copeiro interrompeu-os e avisou o patrão de que estava aí o Lucrécio que lhe queria falar.

Lucrécio, ou melhor: Lucrécio Barba-de-Bode, por sua alcunha, que tão intempestivamente interrompia o almoço do Deputado Numa Pompílio*, não era propriamente um político, mas fazia parte da política e tinha o papel de ligá-la às classes populares. Era um mulato moço, nascido por aí, carpinteiro de profissão, mas que há muito não exercia o ofício. Um conhecido, certo dia, disse-lhe que ele era bem tolo em estar trabalhando que nem um mouro; que isso de ofício não dá nada; que se metesse em política. Lucrécio julgava que esse negócio de política era para os graúdos, mas o amigo lhe afirmou que todos tinham direito a ela, estava na Constituição.

Já o seu amigo fora manobreiro da Central, mas não quis ficar naquela ‘joça’ e estava arranjando coisa melhor. Dinheiro não lhe faltava e mostrou vinte mil réis: – Sabes como arranjei ? fez o outro. Arranjei com o Totonho do Catete, que trabalha para o Campelo.

Lucrécio tomou nota da coisa e continuou a aplainar as tábuas, de mau humor. Que diabo? Para que esse esforço, para que tanto trabalho?

Fez-se eleitor e alistou-se no bando do Totonho, que trabalhava para o Campelo. Deu em faltar à oficina, começou a usar armas, a habituar-se a rolos eleitorais, a auxiliar na soltura dos conhecidos, pedindo e levando cartas deste ou daquele político para as autoridades. Perdeu o medo das leis, sentiu a injustiça do trabalho, a niilidade do bom comportamento. Todo o seu sistema de idéias e noções sobre a vida e a sociedade modificou-se, se não se inverteu. Começou a desprezar a vida dos outros e a sua também. Vida não se fez para negócio… Meteu-se numa questão de jogo com um rival temido, matou-o e foi sagrado valente. Foi a júri e, absolvido por isto ou aquilo, o Totonho fez constar que o fora por empenho do Dr. Campelo. Daí em diante se julgou cercado por um halo de impunidade e encheu-se de processos. Quando voltou a noções mais justas e ponderou o exato poder de seus mandantes, estava inutilizado, desacreditado, e tinha que continuar no papel…

Vivia de expedientes, de pedir a este ou àquele, de arranjar proteção para tavolagens em troco de subvenções disfarçadas. Sentia necessidade de voltar ao ofício, mas estava desabituado e sempre tinha a esperança de um emprego aqui ou ali, que lhe haviam vagamente prometido. Não sendo nada, não se julgava mais operário; mesmo os de seu ofício não o procuravam e sentia-se mal no meio deles. Passava os dias nas casas do Congresso; conhecia-lhes o regimento, os empregados; sabia dos boatos políticos e das chicanas eleitorais. Entusiasmava-se nas cisões por ofício e necessidade. Era este o Lucrécio que, ao entrar, fez com toda a jovialidade:

– Bons dias.”

* Numa Pompílio: 2º rei de Roma segundo a lenda; ironia de Lima Barreto, para contrastar a venerável tradição encarnada no nome versus a realidade política corrompida que o deputado representava.