/O preconceito contra o violão e a modinha no fim do século XIX em um romance de Lima Barreto

O preconceito contra o violão e a modinha no fim do século XIX em um romance de Lima Barreto

O estigma do violão e o preconceito contra a modinha

Natureza e data do texto:

Passagem do romance O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, escrito em 1911. A personagem central da obra, o funcionário público Policarpo Quaresma, tenta aprender violão com seu amigo Ricardo Coração dos Outros – o qual seria um retrato do famoso Catulo da Paixão Cearense. Fica claro, neste trecho, o baixo conceito desfrutado por aqueles que faziam música popular, no caso, a modinha. O romance é ambientado na década de 1890, com ênfase no período de Floriano e da Revolta da Armada (1893-4).

Texto:

“Eram esses os seus hábitos; ultimamente, porém, mudara um pouco; e isso provocava comentários no bairro. Além do compadre e da filha, as únicas pessoas que o visitavam até então, nos últimos dias, era visto entrar em sua casa, três vezes por semana e em dias certos, um senhor baixo, magro, pálido, com um violão agasalhado numa bolsa de camurça. Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhança. Um violão em casa tão respeitável! Que seria ?

(…)

Sentado no sofá, tendo ao lado o tal sujeito, empunhando o ‘pinho’ na posição de tocar, o major, atentamente, ouvia: ‘Olhe, major, assim’. E as cordas vibravam vagarosamente a nota ferida; em seguida o mestre aduzia: ‘é ‘ré’, aprendeu?’.

Mas não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que cousa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!

Uma tarde de sol – sol de março, forte e implacável – aí pelas cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma rua de São Januário povoaram-se rápida e repentinamente, de um e de outro lado. Até da casa do general vieram moças à janela! Que era? Um batalhão? Um incêndio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça baixa, com pequenos passos de boi de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço um violão impudico.

É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em papel, mas o vestuário não lhe escondia inteiramente as formas. À vista de tão escandaloso fato, a consideração e o respeito que o Major Policarpo Quaresma merecia nos arredores de sua casa, diminuíram um pouco. Estava perdido, maluco, diziam. Ele, porém, continuou serenamente nos seus estudos, mesmo porque não percebeu essa diminuição.

(…)

[diálogo de Policarpo Quaresma com a irmã]:

“- Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio – não é bonito!

(…)

– Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que todo o homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede.”

Fonte: BARRETO,Lima. O Triste Fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s.d. pp.18-20;