Lima Barreto, a Revolta da Armada (1893-4) e o positivismo
“Estava repleto [o trem, chegando ao Rio de Janeiro], muitas fardas de oficiais; a avaliar por ali o Rio devia ter uma guarnição de cem mil homens. Os militares palravam alegres, e os civis vinham calados e abatidos, e mesmo apavorados. Se falavam, era cochichando, olhando com precaução para os bancos de trás.
A cidade andava inçada de secretas, ‘familiares’ do Santo Ofício Republicano, e as delações eram moedas com que se obtinham postos e recompensas.
Bastava a mínima crítica, para se perder o emprego, a liberdade, – quem sabe ? – a vida também. Ainda estávamos no começo da revolta, mas o regímen já publicara o seu prólogo e todos estavam avisados. O chefe de polícia organizara a lista dos suspeitos. Não havia distinção de posição e talentos. Mereciam as mesmas perseguições do governo um pobre contínuo e um influente senador; um lente e um simples empregado de escritório. Demais surgiam as vinganças mesquinhas, a revide de pequenas implicâncias… Todos mandavam; a autoridade estava em todas as mãos.
Em nome do Marechal Floriano, qualquer oficial, ou mesmo cidadão, sem função pública alguma, prendia e ai de quem caía na prisão, lá ficava esquecido, sofrendo angustiosos suplícios de uma imaginação dominicana. Os funcionários disputavam-se em bajulação, em servilismo… Era um terror, um terror baço, sem coragem, sangrento, às ocultas, sem grandeza, sem desculpa, sem razão e sem responsabilidades… Houve execuções; (…)
Os militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os alferes, os tenentes e os capitães. Para a maioria a satisfação vinha da convicção de que iam estender a sua autoridade sobre o pelotão e a companhia a todo esse rebanho de civis; mas, em muitos outros, havia sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade. Eram adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento do regímen normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, de fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso, enfim, com inscrições em escritura fonética e eleitos calçados com sapatos de sola de borracha…
Os positivistas discutiam e citavam teoremas de mecânica para justificar as suas idéias de governo, em tudo semelhantes aos canatos e emirados orientais.
A matemática do positivismo foi sempre um puro falatório que, naqueles tempos, amedrontava toda a gente. Havia mesmo quem estivesse convencido que a matemática tinha sido feita e criada para o positivismo, como se a Bíblia tivesse sido criada unicamente para a Igreja Católica e não também para a Anglicana. O prestígio dele, portanto, era enorme.
O trem correu, parou ainda em uma estação e foi ter à praça da República. (…) Albernaz e Bustamante entraram no Quartel-General. Penetraram no grande casarão, no meio do retinir de espadas, de toques de cornetas; o grande pátio estava cheio de soldados, bandeiras, canhões, feixes de armas ensarilhadas, baionetas reluzindo ao sol oblíquo…
Fontes estava indignado, todo ele era horror, maldição contra os insurrectos, e propunha os piores castigos.
Hão de ver o resultado… Piratas! Bandidos! Eu, no caso do marechal, se os pegasse… ai deles!
O tenente não era feroz nem mau, mas antes bom e generoso, mas era positivista e tinha da sua República uma idéia religiosa e transcendente. Fazia repousar nela toda a felicidade humana e não admitia que a quisessem de outra forma que não aquela que imaginava boa. Fora daí não havia boa fé, sinceridade; eram heréticos interesseiros, e, dominicano do seu barrete frígio, raivoso por não poder queimá-los em autos-de-fé, congesto, via passar por seus olhos uma série enorme de réus (…) “
Fonte: O Triste Fim de Policarpo Quaresma, pp.179-181.