O samba e o Estado Novo
Da crítica ao trabalho e exaltação da malandragem:
Se eu precisar algum dia/De ir pro batente,/ Não sei o que será, Pois vivo na malandragem,/E vida melhor não há/ Minha malandragem é fina/ não desfazendo de ninguém/ Deus é quem nos dá a sina/ E o valor dá-se a quem tem/ Também dou minha bola/ Golpe errado ainda não dei/ Eu vou chamar Chico Viola/ Que no samba ele é rei/ Dá licença Seu Mário/ Oi, não há vida melhor/ Que vida melhor não há/ Deixa falar quem quiser/ Deixa quem quiser falar/ O trabalho não é bom/ Ninguém pode duvidar/ Oi, trabalhar só obrigado/ Por gosto ninguém vai lá
(O que será de mim, Ismael Silva e Nilton Bastos, 1931)
Ai, Ai, meu Deus/ Tenha pena de mim/ Todos vivem muito bem/ Só eu que vivo assim/ Trabalho, não tenho nada/ Não saio do miserê/ Ai, ai, meu Deus/ Isto é pra lá de sofrer/ Sem nunca ter nem conhecer felicidade/ Sem um afeto, um carinho, uma amizade/ Eu vivo tão tristonho/ Fingindo-me contente/ Tenho feito força/ Pra viver honestamente
(Tenha pena de mim, Cyro de Souza e Babaú da Mangueira, 1937)
“Meu chapéu do lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no bolso/ Eu passo gingando/ Provoco e desafio/ Eu tenho orgulho/ Em ser tão vadio/ Sei que eles falam de mim/ Deste meu proceder/ Eu vejo quem trabalha/ Andar no miserê/ Eu sou vadio/ Porque tive inclinação/ Eu me lembro, era criança/ Tirava samba-canção/ Comigo não/Eu quero ver quem tem razão/ E ele toca/ E você canta/E eu não dou”
(Lenço no pescoço, Wilson Batista, 1934)
À exaltação do trabalho:
“Deixa de arrastar o seu tamanco/ Pois tamanco nunca foi sandália/ E tira do pescoço o lenço branco/ Compra sapato e gravata/ Joga fora essa navalha/ Que te atrapalha/ Com o chapéu do lado deste rata/ Da Polícia quero que escapes/ Fazendo samba-canção/ Já que tens papel e lápis/ Arranja um amor e um violão/ Malandro é palavra derrotista/ Que só serve pra tirar/Todo o valor do sambista/ Proponho ao povo civilizado/ Não te chamar de malandro/ E sim de rapaz folgado”
(Rapaz folgado, Noel Rosa, 1934)
“Quem trabalha é que tem razão,/ Eu digo e não tenho medo de errar,/ O bonde São Januário/ Leva mais um operário/ Sou eu que vou trabalhar./ Antigamente eu não tinha juízo,/ Mas resolvi garantir o meu futuro,/ Sou feliz, vivo muito bem/ A boemia não dá camisa a ninguém/ E digo bem.
(Bonde São Januário, de Wilson Batista e Ataulfo Alves, sucesso no carnaval de 1941)
“Eu hoje tenho tudo,/ Tudo o que um homem quer./ Tenho dinheiro,/ Automóvel e uma mulher,/ Mas, para chegar/ Até o ponto em que cheguei,/ Eu trabalhei, trabalhei, trabalhei./ Eu hoje sou feliz,/E posso aconselhar,/ Quem faz o que já fiz,/ Só pode melhorar./Quem diz que o trabalho/ Não dá camisa a ninguém/ Não tem razão, não tem, não tem.”
(Eu trabalhei, Roberto Roberti e Jorge Faraj, 1941)
“Vejam só/ A minha vida como está mudada,/ Não sou mais aquele/ Que entrava em casa alta madrugada./ Faça o que fiz/ Porque a vida é do trabalhador/ Tenho um doce lar/ E sou feliz com meu amor./ O Estado Novo/ Veio para nos orientar/ No Brasil não falta nada,/ Mas precisa trabalhar./ Tem café, petróleo e ouro,/ Ninguém pode duvidar, / E quem for pai de quatro filhos,/ O presidente mandou premiar/ É negócio casar.”
(É negócio casar, Ataulfo Alves e Felisberto Martins, c.1940)
Controle e Nacionalismo:
“Ele nasceu sambista / com a tal veia de artista / carteira de reservista / está legal com o senhorio / não pode ouvir pandeiro, não / fica cheio de dengo / é torcida do Flamengo / nasceu no Rio de Janeiro/ Ele trabalha de segunda a sábado / Com muito gosto, sem reclamar / Mas no domingo ele tira o macacão / Embandeira o barracão / Põe a família pra sambar/ Lá no morro ele pinta o sete / Com ele ninguém se mete / Ali ninguém é fingido/ Ganha-se pouco mas é divertido.”
(Ganha-se pouco mas é divertido – Wilson Batista e Ciro de Souza, 1941)
(faixa 2 do CD de Cristina Buarque com o mesmo título, c.1999-2000):
Driblando a censura
“Em 1940, lá no morro, começaram o recenseamento/ E o agente recenseador/ Esmiuçou a minha vida/ Que foi um horror/ E quando viu a minha mão sem aliança/ Encarou para a criança que no chão dormia/ E perguntou se meu moreno era decente/ E se era do batente ou era da folia/ Obediente que sou a tudo que é da lei/ Fiquei logo sossegada e falei então:/ – O meu moreno é brasileiro, é fuzileiro/ É quem sai com a bandeira do seu batalhão/ A minha casa não tem nada de grandeza/ Nós vivemos na pobreza sem dever tostão/ Tem um pandeiro, tem cuíca e um tamborim/ Um reco-reco, e um cavaquinho e um violão/ Fiquei pensando e comecei a descrever/ Tudo, tudo de valor que o meu Brasil me deu…/ Um céu azul, um Pão-de-Açucar sem farelo/ Um pano verde-amarelo/ Tudo isso é meu!/ Tem feriado que pra mim vale fortuna…/ A Retirada de Laguna vale um cabedal!/ Tem Pernambuco, tem São Paulo e tem Bahia/ Um conjunto de harmonia que não tem rival!
(Recenseamento, Assis Valente, 1940)
“Eu já não posso mais / a minha vida não é brincadeira / estou me desmilinguindo / igual a sabão na mão da lavadeira / se ele ficasse em casa / ouvia a vizinhança toda falando / só por me ver lá no tanque / lesco-lesco / me acabando.
Se eu arranjo um trabalho / ele vai de manhã, de tarde pede ‘as conta’ / eu já estou cansado de dar / murro em faca de ponta / ele disse pra mim que está esperando ser presidente / tirar patente / no sindicato dos inimigos do batente.
Ele dá muita sorte, é um moreno forte / ele é mesmo um atleta / mas tem um grande defeito: / ele diz que é poeta / ele tem muita bossa / e compôs um samba e quer abafar (é de amargar) / eu não posso mais / em nome da forra vou desguiar.
(Inimigo do batente – Wilson Batista e Germano Augusto; 1941)
Cheguei cansado do trabalho/ Logo a vizinha me chamou/ Oh, Seu Oscar/ Tá fazendo meia hora/ Que a sua mulher foi embora/ E um bilhete deixou/ E no bilhete assim dizia:/ Não posso mais eu quero é viver na orgia/ Fiz tudo para ver seu bem-estar/ Até no cais do porto eu fui parar/ Martirizando o meu corpo noite e dia/ Mas tudo em vão, ela é da orgia/ É, parei…
(Oh, Seu Oscar, Wilson Batista e Ataulfo Alves, sucesso no carnaval de 1940)
Sambei 24 horas, sambei/ Sambei tanto que a sandália furou/ Ele me viu de madrugada/ Pulando na calçada/ Quando cheguei não quis/ abrir a porta do chatô/ Ai, ai, ai, amor/ Não deixe sua pretinha no sereno/ Que ela vai se resfriar/ Ai, pretinho/ Eu venho de Madureira/ Tô cansada, quero descansar
(Sambei 24 horas, Wilson Batista e Haroldo Lobo)